ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Para inglês ver? Revisitando a experiência do Reino Unido com a provisão privada de saneamento

Texto da interação ONDAS-Privaqua*
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PARA INGLÊS VER? REVISITANDO A EXPERIÊNCIA DO REINO UNIDO COM A PROVISÃO PRIVADA DE SANEAMENTO
Autora: Isadora Cruxên [**]

Sempre que a privatização de serviços ganha espaço no debate público, aumenta a curiosidade acerca de experiências semelhantes em outros países ou contextos. O saneamento não foge à regra. A participação privada no setor tem ganhado visibilidade no ideário político e na agenda de políticas públicas brasileira, sobretudo após a aprovação da reforma do marco legal do setor (Lei 14.026/2020) e de “badalados” leilões na B3 como o da CEDAE, a companhia de saneamento do Rio. A provisão privada de serviços de água e esgoto também tem estado em voga no noticiário do Reino Unido – um dos principais “garoto-propaganda” da privatização desde os anos 1980. Os motivos para tal visibilidade, no entanto, são menos entusiastas do que no contexto brasileiro. As companhias privadas de saneamento na Inglaterra têm sido questionadas na mídia por causa de baixo investimento, altas dívidas e pouco comprometimento com a sustentabilidade ambiental.[1] Há pouco menos de um mês, o jornal Financial Times publicou uma análise mordaz da companhia South West Water. O jornal apontou que a companhia, controlada pelo grupo privado de infraestrutura Pennon Group e situada no sudoeste da Inglaterra, investia pouco e poluía mais do que devia, apesar de cobrar as tarifas mais altas do país.[2]

Após quase três décadas, qual o balanço da experiência do Reino Unido com a participação privada na provisão de saneamento? Que lições e alertas podemos extrair dessa experiência para pensar a efetiva, sustentável e equitativa provisão de serviços de saneamento no Brasil em um contexto de ampliação da participação privada? A própria Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), a qual abarcou algumas funções regulatórias após a reforma do marco legal do setor, tem buscado parcerias com o Reino Unido com vistas a apoiar a execução de suas novas competências.[3] Nesse contexto, vale colocar em prática a velha lente comparativa para entender o que tem rolado nas águas britânicas.

Para explorar as perguntas acima, neste ensaio discuto um relatório publicado pelo pesquisador e professor David Hall (University of Greenwich) no final de janeiro deste ano examinando as finanças das companhias privadas de saneamento no Reino Unido.[4] O relatório condensa uma série de pesquisas recentes feitas por Hall e colaboradores sobre a privatização do saneamento no Reino Unido e é motivado por crises recentes de inundações de esgoto e poluição de rios e águas costeiras que geraram comoção e contestação pública no país. O relatório usa dados extraídos dos relatórios das companhias privadas para examinar tanto os investimentos das empresas como a distribuição de dividendos. Dividendos, de forma simplificada, são uma parcela dos lucros que são pagos aos acionistas da companhia ao invés de serem reinvestidos no negócio em si. Olhar para esses fatores – investimentos e dividendos – nos dá uma noção de para onde vai o dinheiro que gira na provisão de serviços.

Um dos principais argumentos mobilizados em prol da participação privada, tanto historicamente quanto no debate público recente no Brasil, é de que ela pode injetar maiores investimentos na ampliação e melhoria da provisão de infraestrutura – uma tarefa tão necessária quanto custosa. No entanto, apesar de alguns ganhos de eficiência e investimentos iniciais, o panorama que emergiu ao longo do tempo no contexto britânico é menos otimista. Tanto o relatório de Hall como análises de jornais como o Financial Times tendem a reforçar críticas à participação privada que têm sido levantadas há tempos na literatura. Em suma, a pesquisa de Hall aponta que houve uma tendência à redução do investimento no longo prazo; o dinheiro para os investimentos não necessariamente tem vindo de investidores privados, mas das tarifas cobradas dos consumidores; os financiamentos contraídos no mercado aumentaram o endividamento das companhias, mas não para apoiar investimentos e sim para cobrir o pagamento de dividendos para acionistas. Talvez o alerta mais importante que emerge do relatório de Hall, no entanto, tem a ver com a questão da transparência. O autor aponta que as empresas têm usado uma série de estratégias para “esconder” o real nível de distribuição de dividendos. Os números reportados são, em alguns casos, “para inglês ver.”

 Seguindo o dinheiro: investimentos e dividendos
 No que tange aos investimentos, as pesquisas conduzidas por Hall e colaboradores demonstram que os acionistas praticamente não fizeram aportes adicionais de capital (equity) ao longo do tempo, após o investimento inicial nas companhias. Com base em análise realizada por Yearwood, Hall nota que o recurso utilizado pelas companhias para investir em ampliação, manutenção ou melhoria da infraestrutura tem origem, em grande parte, nas receitas provenientes da provisão do serviço – em outras palavras, do bolso do consumidor. Ao mesmo tempo, apesar de as dívidas contraídas ao longo tempo terem aumentado, esse aporte financeiro tem sido usado principalmente para pagar dividendos aos acionistas.

Essa análise é corroborada por um artigo recente do Financial Times,[5] que mostra que as despesas totais de capital das dez maiores companhias privadas de água e esgoto no Reino Unido, caíram 15% desde 1990, indo de 5,7 bilhões para 4,8 bilhões de libras por ano. A exceção foi a Thames Water, que atua na região de Londres. A empresa aumentou gastos no período, mas, segundo o jornal, “não o suficiente para estancar vazamentos e canos estourados.” O jornal mostra ainda que, durante o mesmo período, as empresas, que haviam sido vendidas sem dívidas, “tomaram emprestado cerca de 53 bilhões de libras, equivalente a 2,000 libras por família. Muito dessa quantia foi usado não para novos investimentos, mas para pagar 72 bilhões de libras em dividendos.” Em outra matéria recente, o Financial Times também chama à atenção para os altos salários pagos a executivos-chefes das empresas.[6] Por exemplo, em 2021 a empresa Southern Water pagou cerca de 1,08 milhão de libras a seu executivo-chefe, incluindo um bônus de 550.000 libras. No mesmo ano, a empresa havia sido multada em 90 milhões de libras por despejar bilhões de litros ilegalmente em rios e águas costeiras.

Em comparação, Hall ressalta em seu relatório que a Scottish Water, empresa pública que atua na Escócia, investiu cerca de 35% a mais por família (household) desde 2002 e a um custo menor para os consumidores do que a média das empresas privadas na Inglaterra. A comparação busca mostrar que a provisão pública não necessariamente é ineficaz e pode gerar ganhos para a população. Uma limitação dessa análise, no entanto, é agregar as experiências entre empresas privadas. Tendo em vista que, como o próprio Hall reconhece, existe variação no desempenho dessas empresas, seria interessante explorar mais à fundo o que explica essas variações, inclusive olhando mais de perto para como estruturas de capital e relações com o setor público influenciam estratégias adotadas pelas companhias em diferentes momentos ao longo do tempo. Esse é um ponto que levanto na minha própria pesquisa sobre participação privada no mercado de saneamento no Brasil.[7] Outro aspecto que teria enriquecido a comparação seria explicar por que, apesar de gastar mais com despesas de capital do que a média das empresas privadas inglesas entre 2002 e 2010, os gastos da Scottish Water declinaram após esse período, chegando a patamares próximos aos das demais em anos mais recentes.

No que tange aos dividendos, Hall mostra que as empresas inglesas de água e saneamento pagaram cerca de 18,9 bilhões de libras em dividendos aos seus acionistas entre 2010 e 2021, uma média anual de 1,6 bilhão de libras. Apesar da variação entre companhias, o autor nota que o volume total de dividendos pagos entre 1991 e 2018 (57 bilhões de libras) equivale a quase metade (46%) das despesas totais de capital no período. Um artigo do jornal The Guardian, traduzido e republicado pelo ONDAS em 2020, já trazia dados semelhantes.[8] Hall argumenta que o pagamento de dividendos tem aumentado os custos para os consumidores em 69 libras por ano, na média, para cada família na Inglaterra nos últimos 12 anos – é um custo de 1,30 libras a mais por semana.

Essa análise traz o primeiro alerta importante, sobretudo no contexto recente de estagnação salarial, crescente dívida familiar, pressão inflacionária e aumento do custo de vida – tanto na Inglaterra quanto no Brasil. Nesse contexto, a pergunta “quem vai pagar a conta?” ganha um duplo sentido: sinaliza tanto o potencial custo extra para a população das pressões geradas pelo pagamento de dividendos a acionistas, como o risco de que os consumidores não consigam acompanhar potenciais aumentos de custo – o que é ruim para todo mundo, seja o cidadão, seja a empresa, seja o investidor.

Jogo de esconde-esconde?
O segundo alerta que emerge do relatório de Hall tem a ver com questões de accountability e transparência na maneira como as empresas divulgam suas atividades. Hall nota que as empresas privadas inglesas questionaram os números relativos aos dividendos, reportados em sua pesquisa, apesar de os números terem sido extraídos de relatórios das próprias companhias. Em parte, o problema é que os dados que Hall traz não são apresentados da mesma maneira que as empresas os apresentam – em muitos casos colocando detalhes importantes em rodapés.

Hall destaca três estratégias ou narrativas que segundo ele foram usadas pelas empresas privadas inglesas para obscurecer ou justificar o volume de dividendos que distribuem na prática. A primeira é o ‘adiamento’ (deferral): empresas como Anglian Water e Northumbrian Water reportaram pagar nenhum dividendo para os acionistas durante o exercício financeiro, mas notaram em rodapés terem realizado os pagamentos após o fechamento do exercício. Dessa forma, quando reportam zero de dividendos pagos, o número não revela os pagamentos que foram feitos depois. A segunda estratégia é o argumento ‘nenhum pagamento aos investidores finais’: empresas como Thames Water e Southern Water argumentaram que nenhum dividendo foi pago aos “investidores finais” (parent shareholders), sugerindo que o dinheiro teria ficado dentro do sistema e não beneficiado investidores financeiros. No entanto, o argumento não faz muito sentido na medida em que os acionistas finais são donos das empresas ou holdings intermediárias que controlam as companhias e receberam os dividendos, de modo que os recursos podem ter chegado a eles de qualquer forma. A terceira estratégia é o que Hall chama de ‘indo e voltando’ (round-tripping): diferentes empresas argumentaram que os dividendos pagos foram usados para cobrir empréstimos feitos entre as companhias e seus donos, sugerindo que não necessariamente foram retirados do ecossistema da empresa. No entanto, isso também não significa que os recursos tenham sido reinvestidos no serviço. Segundo o autor, várias companhias empregaram mais de uma estratégia.

O problema nesses casos não é necessariamente que as empresas privadas distribuam dividendos, já que em geral são legalmente obrigadas a fazê-lo dependendo de sua estrutura de capital e acordo de acionistas. O problema – e o alerta – é a tentativa de ofuscar para o público como essas distribuições ocorrem e o peso que têm sobre as contas das companhias. É preciso que haja transparência. Senão, como dizem, o diabo pode se entranhar nos detalhes.

[1] Ver, por exemplo, Financial Times, “Sewage spills highlight decades of under-investment at England’s water companies,” 28 dezembro 2021. Disponível em: https://www.ft.com/content/b2314ae0-9e17-425d-8e3f-066270388331 (acesso em 14 março 2022).

[2] Financial Times, “South West Water: spending cuts and dismal pollution record in tourist hotspot,” 19 fevereiro 2022. Disponível em: https://www.ft.com/content/0c9f1644-1c7d-41d7-b3dd-02e2a9e3d2d1 (acesso em 14 março 2022).

[3] A seguinte matéria do jornal Valor Econômico menciona que a ANA firmou parceria com a embaixada britânica: Valor Econômico, “ANA gera apreensão no setor de saneamento,” 20 dezembro de 2021. Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2021/12/20/ana-gera-apreensao-no-setor-de-saneamento.ghtml (acesso em 14 março 2022).

[4] David Hall, “Water and sewerage company finances 2021: dividends and investment – and company attempts to hide dividends” (Working paper), 28 janeiro 2022. Public Services International Research Unit (PSIRU). Disponível em: https://blogs.gre.ac.uk/psiru/2022/02/01/water-and-sewerage-company-finances-2021-dividends-and-investment-and-company-attempts-to-hide-dividends/ (acesso em 23 fevereiro 2022).

[5] Ver nota de rodapé 1.

[6] Financial Times, “UK water companies told to link executive pay to performance,” 21 fevereiro 2022. Disponível em: https://www.ft.com/content/671d3cc9-ef98-4ba9-8453-54f52fa357a4 (acesso em 14 março 2022).

[7] Isadora Cruxên, Disordering Capital: The Politics of Business in the Business of Water Provision (Tese de doutorado), 2022. Massachusetts Institute of Technology.

[8] Disponível em: https://ondasbrasil.org/as-empresas-privatizadas-de-agua-e-esgoto-da-inglaterra-pagaram-57-bilhoes-de-libras-em-dividendos-desde-1991/ (acesso em 14 março 2022).

Autora:
[**] Isadora Cruxên participa do Privaqua e é professora da Queen Mary University of London na Inglaterra.

* Privaqua é um projeto de pesquisa que busca entender o impacto da privatização dos serviços de água e saneamento nos direitos humanosRegularmente, o site do ONDAS publica notas do Privaqua de forma a dar transparência ao projeto e compartilhar alguns de seus achados preliminares.

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