ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Saneamento: a mais básica das necessidades e o mais genuíno direito

 

Texto da interação ONDAS-Privaqua*
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SANEAMENTO: A MAIS BÁSICA DAS NECESSIDADES E O MAIS GENUÍNO DIREITO

Autora: Laura Magalhães Rocha e Silva – Mestre em Saúde Coletiva, Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas e Direitos Humanos em Saúde e Saneamento – Instituto René Rachou/Fiocruz-MG. Engenheira Ambiental e Sanitarista – CEFET-MG

Carros elétricos, inteligência artificial, ligações simultâneas, crescemos cada dia mais em tecnologia e velocidade de informações. Ultrapassamos as barreiras físicas da distância, sendo possível estar virtualmente em qualquer lugar quando se desejar. Há algumas décadas não pensaríamos ser possível tal realidade. Porém, apesar desses avanços, algumas distâncias continuam existentes gerando lacunas complexas, barreiras sociais, raciais, socioambientais e financeiras, que agregam um grande rol de vulnerabilidades como a fome, o analfabetismo, o desemprego e até mesmo limitam o acesso à água, item vital e indispensável. Nesse guarda-chuva de inequidades, destaca-se o acesso ao abastecimento de água e ao esgotamento sanitário, serviços essenciais para promoção da saúde e da dignidade.

Apesar da inestimável contribuição da tecnologia nos diversos campos da vida humana nos últimos anos, a demanda no setor de saneamento sempre existiu e ainda permanece com grandes brechas e impactos negativos. Heller (1995) destaca uma importante prática sanitária romana, a chamada Cloaca Máxima de Roma, evidenciando esta temporalidade. A relação entre o saneamento e doenças passa cada vez mais a ser compreendida e utilizada para articulação de instrumentos de saúde (Heller, 1995). No Brasil, a universalização do saneamento é uma meta ainda não alcançada, apesar de sua importância para a saúde pública. Para isso, é necessário um esforço amplo e uma presença do Estado para que o setor seja fortalecido como política pública (Borja, 2014).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma em seu Art. 1 que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. […]”, e em seu Art. 6 afirma que “todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei” (Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948).  A resolução A/RES/64/292 da ONU reconhece o direito à água potável e ao esgotamento sanitário (DHAES) como um direito humano imprescindível para a plena realização de outros direitos já reconhecidos, além de delegar aos Estados a responsabilidade pela proteção e promoção destes direitos (UNGA, 2010).

O jurista Dalmo Dallari assinala que, por vezes, o conceito de cidadão é apresentado com uma dependência do Estado. Com isso, o autor ressalta que, por esta visão, os direitos da cidadania poderiam variar de acordo com as leis que regem um local, afetando os direitos da pessoa humana. Logo, seria mais importante falar sobre a pessoa humana do que do cidadão, pois a pessoa possui necessidades intrínsecas à sua existência, que independe de um Estado e de suas leis (Dallari, 1984). Como exemplo dessas necessidades, a onda de calor que acometeu algumas regiões do país em setembro deste ano impactou todos os seres humanos e seres vivos, que necessitam de água para seguir com saúde e bem-estar apesar do clima e das leis existentes.

Nessa perspectiva, o acesso aos recursos de água e esgoto são necessidades básicas do ser humano, que devem ser priorizadas em todos os locais. O conteúdo normativo do DHAES (disponibilidade, acessibilidade física, acessibilidade financeira, aceitabilidade, qualidade e segurança) é um importante instrumento que poderia contribuir para a inclusão de pessoas em situação de vulnerabilidade sanitária no país (OHCHR, 2010; Albuquerque 2014). Há de se destacar a oportunidade perdida de se incluir na política de saneamento do país, com o Novo Marco do Saneamento no ano de 2020, os Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário e seu conteúdo legal.

Ter acesso à água limpa e a serviços seguros de esgotamento, em quantidade e qualidades suficientes, com aceitabilidade cultural e acessibilidade física a todas as pessoas, em suas diferentes necessidades, que possam acessar os serviços de forma compatível com sua condição financeira, são pressupostos para uma política que visualize a pessoa humana em sua condição básica de existência. Independentemente de onde moram, quanto ganham ou quem sejam, estes serviços devem ser vistos como substanciais e necessários para todos.

Para alcançar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (UN, 2015), em especial o objetivo número 6, referente à água potável e ao saneamento, precisamos olhar os serviços pelo prisma dos Direitos Humanos, em detrimento da visão econômico-financeira. A essencialidade dos serviços deveria impedir que sejam visualizados, planejados ou executados como instrumentos de lucro e ganhos políticos. Nesse contexto, avançamos como sociedade em tecnologias, mas precisamos avançar em dignidade, equidade e saúde. Assim, ainda há um longo caminho a ser percorrido.

Espera-se que as políticas de saneamento incluam cada vez mais os diversos “Brasis”, as diversas realidades do globo. Os quilombolas, os aglomerados, o meio rural, as populações ribeirinhas, as pessoas em situação de rua, as comunidades isoladas, os povos indígenas, os campos de refugiados, a população LGBTQIAP+. Que o saneamento para além do domicílio também se faça presente, nas escolas, hospitais, presídios e espaços públicos. São diversas as realidades e necessidades, e assim deveriam ser as soluções.

As características e necessidades da pessoa são pré-existentes ao Estado e não podem ser anulados por ele (Dallari, 1984). Sob essa perspectiva, deseja-se que o saneamento seja planejando sempre em vista da dignidade e do direito humano existentes. Também é necessário reconhecer o saneamento como importante promotor de novas conquistas sociais, principalmente para as populações mais vulnerabilizadas, como possibilidade de acesso à escola, habitação saudável, bem-estar e oportunidades de emprego, além da necessidade básica. Deseja-se que, de forma progressiva e sem retrocessos, os DHAES sejam aplicados em todas as etapas dos serviços de forma a promover pleno acesso, saúde e qualidade de vida, sem discriminação.

 

DALLARI, D. de A.. Ser cidadão. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, v. 1, n. 2, p. 61–64, set. 1984.

United Nations General Assembly (UNGA). Human Right to Water and Sanitation. Geneva: UNGA; 2010. UN Document A/RES/64/292

ALBUQUERQUE, C. de; ALBUQUERQUE, C. de. Glossary, bibliography and index. Bangladore, India: [s. n.], 2014(Realising the human rights to water and sanitation : a handbook / by the UN Special Rapporteur Catarina de Albuquerque, 9.2014).

BORJA, P. C. Política pública de saneamento básico: uma análise da recente experiência brasileira. Saúde e Sociedade, [S. l.], v. 23, n. 2, p. 432–447, jun. 2014. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902014000200432&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 27 set. 2023.

UNITED NATIONS (UN). Resolution adopted by the General Assembly on 25 September 2015. Transforming our world: the 2030 Agenda for Sustainable Development. Geneva: UN; 2015

 

* INTERAÇÃO ONDAS-PRIVAQUA: DE OLHO NA PRIVATIZAÇÃO DO SANEAMENTO

Privaqua é um projeto de pesquisa que objetiva entender processos de privatização dos serviços de água e esgotos, tendo por orientação teórico-analítica o marco dos direitos humanos. Neste espaço do site do ONDAS, o Privaqua publica periodicamente textos curtos sobre a temática do projeto, visando divulgar achados parciais, compartilhar reflexões e disseminar elementos da literatura científica sobre o tema. A intenção é a de dialogar com um público não necessariamente familiarizado com a linguagem acadêmica e com os veículos tradicionais de comunicação científica. Trata-se de uma tentativa de exercitar o que se denomina de divulgação científica, para público não-especializado, transpondo os chamados “muros acadêmicos”. O desafio é de, sem perder o rigor, disseminar aspectos do tema da privatização dos serviços de saneamento, visando sobretudo qualificar as atividades da militância do setor.

➡️ Clique aqui e leia todos os textos já publicados da interação ONDAS-Privaqua 

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