autor: Amauri Pollachi*
Publicado originalmente pelo site Outras Palavras
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O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, tem o condão de produzir repercussões negativas de seus atos. Nesta semana, não foi diferente: na chacina do Guarujá, na eliminação de livros didáticos e no festivo anúncio da privatização da água por meio de venda da Sabesp, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo.
A conveniente dissimulação adotada durante a campanha eleitoral de que “avaliaria a eventual vantagem de privatizar” a terceira maior empresa de saneamento básico do planeta, foi dissipada logo após o resultado das urnas. Os movimentos de Tarcísio à frente do Executivo paulista cumpriram com enorme celeridade essa “avaliação” de venda. Sua primeira etapa foi concluída em 31 de julho, com a divulgação do modelo de privatização elaborado por um ligeiro estudo da International Finance Corporation (IFC), contratada sem licitação pelo governo estadual em abril de 2023 e que também se tornou credora de empréstimo de um bilhão de reais à Sabesp em junho de 2023.
A iniciativa de Tarcísio traz insegurança para a população paulista, pois tem o condão de submergir em águas turvas a sólida trajetória em direção à – muito próxima – conquista do acesso à água limpa e ao esgotamento sanitário dignos para todos os habitantes do estado de São Paulo, sem distinção de gênero, cor, local de moradia e condição socioeconômica.
Tarcísio contraria o senso comum, as evidências de resultados e o óbvio ululante de Nelson Rodrigues ao insistir na venda dessa empresa. É preciso dissecar tamanha insensatez.
Constituída em 1973 a partir da união de seis entes estaduais, a Sabesp presta os serviços de água e esgotos para mais de 30 milhões de paulistas em 375 municípios. É uma empresa de economia mista sob controle majoritário do Estado (50,3% das ações) e o restante de seu capital negociado nos mercados da B3 de São Paulo e da Bolsa Nova Iorque. Portanto, há 50 anos, a Sabesp atua é a responsável por garantir esse direito essencial a mais de dois terços da população paulista,
O modelo de venda da empresa pelo governo de Tarcísio seria por meio da oferta pública de um lote adicional de ações adquirido por dois ou três grupos de investidores, reduzindo-se o capital acionário do Estado para um percentual em torno de 20%. Esses grupos de investidores comprariam perto de 30% das ações e, em conjunto com o percentual já em poder do mercado, teriam cerca de 80% das ações e assumiriam o controle e a gestão da empresa, incluindo a definição de prioridades de investimentos. Ao Estado restaria o mero papel de acompanhamento da gestão.
Para justificar o negócio, foram apresentados dois benefícios centrais. O primeiro diz respeito às metas de universalização do atendimento à população urbana, que devem ser atingidas até 2033 conforme o Marco Legal do Saneamento: 99% com abastecimento de água, 90% com coleta de esgotos e 100% de tratamento para os esgotos coletados. Porém, não é necessário vender a Sabesp para isso. Ao contrário, se for privatizada o risco de não acontecer aumentará sobremaneira.
Tarcísio argumenta que a venda das ações iria trazer investimentos que possibilitariam antecipar essas metas. Talvez, na pressa em fazer negócio antes das eleições municipais, o governador propositalmente deixou de lado importantes informações.
Por exemplo, desconsiderou 310 municípios que já alcançaram a universalização, cujos prefeitos mostram com orgulho para qualquer visitante os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário de sua cidade, pressupostos da saúde pública, dos rios limpos e do desenvolvimento econômico.
O governador desprezou que, em 2021, a Sabesp demonstrou à agência de regulação a sua plena capacidade de investimento para cumprir as metas de universalização, mediante investimento de R$ 47,5 bilhões. Desse total, R$ 26,2 bilhões serão investidos entre 2023 e 2026. Mantida a média anual de investimentos, até 2030 o direito humano de acesso à água e ao esgotamento sanitário estará assegurado em todos os municípios.
Ao dizer que antecipará a universalização para 2029 se vender a Sabesp, um ano antes das eleições gerais de 2030, Tarcísio parece que adotou essa data sem apoio na realidade paulista. Para citar apenas um aspecto do mundo real, grande parte do déficit de atendimento está em comunidades e assentamentos precários de população de baixa renda nos maiores municípios paulistas, em que as prefeituras devem implantar ações integradas de urbanização, de saneamento, de redução de riscos e provimento de moradias dignas, ações que têm uma dinâmica de maturação que se estende por vários anos e está fora da alçada da Sabesp.
Por que não considerou que a prática da Sabesp é superar as metas da lei? Por exemplo, no município de São Paulo, foi superada a meta de coleta de esgotos com 94,2%, mas os 600 mil paulistanos que não têm acesso à coleta de esgotos serão atendidos até 2030. Outra referência é no município de Franca, em que a empresa alcançou e mantém 100% de atendimento em água e esgotos há muitos anos!
Poderia o governador argumentar que a Sabesp não tem condições de realizar um plano de investimentos desafiador? De forma alguma! Pois a empresa tem sido responsável por um terço dos investimentos em saneamento no Brasil e é reconhecida pela solidez financeira atestada por várias instituições do mercado há pelo menos 20 anos, por exemplo, com a classificação AAA da agência Fitch.
O segundo principal benefício anunciado é a “redução de tarifas no dia seguinte à privatização.”. Reduzir tarifas consequentemente reduz arrecadação, lucros e dividendos. Parece que esse coelho tirado da cartola não agradou o mercado, pois as ações da Sabesp tiveram queda de 9% no fechamento da semana na B3.
Sob qualquer hipótese, essa medida obscura tem grande potencial de atribuir tributação indireta aos paulistas ou reduzir a qualidade dos serviços prestados. É incompreensível vincular redução de tarifa para o dia seguinte à privatização. Por que Tarcísio não trabalha para reduzir já? Por que não estende o benefício da tarifa social para todas as famílias de baixa renda já?
É preciso fazer um alerta à sociedade e ao povo paulista: a birra de Tarcísio de Freitas em vender a Sabesp, movida por razões que fogem à racionalidade aprendida nas escolas militares, poderá trazer, em curto prazo, consequências nefastas e riscos absolutamente desnecessários para o bolso e a saúde dos paulistas, bem como para nossas águas.
Dentro da Sabesp já está em curso a preparação da privatização com a repulsiva receita invariavelmente aplicada nessas situações: eliminar as pessoas mais experientes e competentes, quebrar a cultura organizacional, centralizar decisões e deteriorar a qualidade dos serviços. Daí, a mídia martelará que “o vazamento não foi consertado, o serviço está ruim, etc.”. Irá para o esgoto a recente pesquisa realizada com a população atendida que apontou o índice de 83% de satisfação com a empresa. Usando essa simples receita, cria-se artificialmente um ambiente na opinião pública muito favorável à venda.
Atentos à fritura da empresa, os atuais diretores, conselheiros e dezenas de assessores, que aportaram à Sabesp com paraquedas e sem vida em saneamento público, estão determinados a incluir esse grande negócio em seus currículos ou ganhar os salários estratosféricos pagos aos barões das empresas privadas de saneamento no Brasil.
Uma descrição dos feitos permite avaliar a qualidade dessa gestão nestes primeiros sete meses. Colocaram na rua 15% do quadro de pessoal, gente com décadas de experiência em postos-chave, pondo sob risco a operação e a manutenção de instalações e serviços essenciais. Mudaram a estrutura organizacional sem alterar os sistemas de gestão informatizados, praticamente paralisando gestão de contratos e controles internos. Prestadores de serviços estão com pagamentos atrasados, algo inédito desde 1995. Foram criadas unidade que sequer têm suas atribuições definidas. Não resta dúvida que a atual gestão da Sabesp, sob o comando de Tarcísio de Freitas, será marcada como a mais incompetente nos 50 anos de vida da empresa.
Apesar disso, encontraram disposição e recursos para contratar uma reforma dos escritórios do edifício sede da Sabesp absolutamente desnecessária no valor estimado de R$ 31 milhões, montante que equivale a executar 68 mil novas ligações de esgoto que beneficiariam cerca de 270 mil pessoas, isto é, as cidades de Osasco, Carapicuíba e Franco da Rocha atingiriam a meta de universalização.
Brincar de “Banco Imobiliário” com a Sabesp não é a função de um governante que se preocupa com o futuro de seus governados. Os exemplos desastrosos mundo afora deveriam servir para impedir aventuras insensatas. As contas d’água sobem muito, os pobres são afastados de seus direitos, os investimentos são feitos somente onde há lucro certo. Não adianta regulação, multas etc. Os ingleses (muito mal) servidos pela Thames Water estão pagando um preço alto para descobrir isso.
As justificativas de Tarcísio de Freitas para vender a Sabesp não se sustentam. É uma manobra completamente errada na condução do saneamento paulista que exige mobilização imediata para combatê-la. É preciso evitar o choro sobre o leite derramado: recuperar o saneamento de São Paulo para o controle do estado é uma disputa judicial que certamente se arrastará por anos a fio.
*Amauri Pollachi é engenheiro, Conselheiro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS) e ex-presidente da Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp (APU).