ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Sistemas urbanos de esgotos e drenagem das águas pluviais- poluição difusa e interconexões

Ricardo Moretti e Edson Aparecido Silva, ambos integrantes do ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento – publicaram artigo que segue, baseado em texto que foi recentemente incluído na Enciclopédia dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, publicada em língua inglesa (https://doi.org/10.1007/978-3-319-70061-8_186-1).  A Enciclopédia aborda os ODS de forma integrada e inclui 17 volumes, cada um dedicado a um dos 17 ODS. Este volume é dedicado ao ODS 6 ” Garantir a disponibilidade e a gestão sustentável da água e do saneamento para todos “. Água e saneamento são fundamentais para o bem-estar humano. A gestão integrada dos recursos hídricos é essencial para garantir a disponibilidade e gestão sustentável da água e do saneamento para todos e para a realização do Desenvolvimento Sustentável. No texto, os autores tratam dos problemas relacionados às interconexões entre os sistemas de água da chuva e de esgotos e os desafios no enfrentamento da poluição difusa. São analisadas as abordagens de infraestrutura verde e desenvolvimento de baixo impacto, que visam contrabalançar as graves influências trazidas pelo processo de urbanização no ciclo das águas. São apontadas a importância e os desafios associados à identificação e desconexão das ligações cruzadas entre as redes de águas pluviais e a necessidade de contemplar, nos projetos de manejo das águas urbanas, o enfrentamento da poluição difusa, mesmo que sua implantação não se viabilize a curto prazo.
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SISTEMAS URBANOS DE ESGOTOS E DRENAGEM DAS ÁGUAS PLUVIAIS- POLUIÇÃO DIFUSA E INTERCONEXÕES
Ricardo de Sousa Moretti[1] e Edson Aparecido da Silva[2]

Texto baseado no que foi publicado em língua inglesa pelos mesmos autores na UN Sustainable Development Goals (W. Leal Filho et al. (eds.), Clean Water and Sanitation, Encyclopedia of the UN,2021. https://doi.org/10.1007/978-3-319-70061-8_186-1)

Introdução
Há dois sistemas de condução e destinação das águas pluviais e esgotos. O sistema separador absoluto (SSA) é um sistema que coleta a água da chuva em uma tubulação e a despeja diretamente em um curso d’água, enquanto o esgoto sanitário coletado de residências, empresas e indústrias é coletado em uma tubulação de esgotos e levado para a estação de esgoto para tratamento antes de ser lançado em cursos d’água. O sistema unitário (SU) é um sistema de esgoto simples que transporta esgoto e água da chuva, em uma mesma tubulação,  para uma estação de tratamento de esgoto antes de ser lançado em um curso d’água (Moretti e Yazaki, 2008) No SU, com chuvas moderadas a intensas, o sistema atinge capacidade, transborda e lança o esgoto combinado e a água da chuva diretamente no oceano, córregos ou rios, sem tratamento, no chamado transbordamento combinado de esgoto (EPA, 2021)

A água da chuva é bem diferente do esgoto: a primeira é proveniente das precipitações pluviais e a segunda é a água que antes era potável, mas agora carrega excrementos e outros poluentes domésticos. Em muitas cidades onde existe um sistema separador de esgoto, há interconexões de infraestrutura e, infelizmente, o sistema de água da chuva contém esgoto e os dutos de esgoto contêm água da chuva. Nestes casos, o esgoto pode poluir as águas urbanas, ou os encanamentos de esgoto podem ficar sobrecarregados durante chuvas fortes, o que também resulta na poluição da água urbana. O sistema separador de esgoto (SSA) tem sido mais comum para os sistemas construídos desde meados do século XX. Recentemente, devido à poluição das águas pluviais e aos problemas criados pelas interconexões de sistemas, alguns países reintroduziram o sistema unitário de esgoto (SU). O SU é uma opção bastante cara em locais com chuvas intensas, pois exige um sistema mais sofisticado de captação de água da chuva e dutos de maior diâmetro para cada rua.


Figura 1– Sistema Separador Absoluto (SSA) de esgotos. A linha azul representa o encanamento da água da chuva que vai até um rio. A linha preta representa a rede de esgoto que está ligada a uma estação de tratamento de esgoto e, somente após o tratamento, o efluente é lançado no curso d’água

Existem diferenças importantes entre esgoto e água da chuva em termos de quantidade total, fluxo e poluição. Para compreender essas diferenças, considere um domicílio com três pessoas em um lote de 250 m2 completamente impermeável, em uma cidade onde a precipitação média anual é de 1500 mm. Sem infiltração no solo, drenagem ou evaporação, a água chegaria a 1,5 m, e esse lote em particular reteria uma quantidade total de 375 m3 de água da chuva em um ano. Esse mesmo domicílio gera aproximadamente 105 m3 de esgoto por ano, supondo-se três ocupantes consumindo 120 litros de água por dia (0,12 m3) e que 80% da água potável se transforme em esgoto. Nesse caso, a quantidade total anual de água da chuva é 3,5 vezes a quantidade total de esgoto.

No entanto, essa diferença de volume é muito maior quando se analisam os valores diários. Como a chuva precipita intensamente em ocasiões isoladas, e não igualmente ao longo do ano, o volume de água da chuva em um dia (às vezes em apenas algumas horas) pode na verdade ser 100 vezes maior do que o volume de esgoto. Por esse motivo, os dutos de água da chuva são geralmente muito maiores do que os de esgoto.

Outra diferença entre as redes de esgoto e de água da chuva é que o esgoto é conduzido apenas em dutos, enquanto parte da água da chuva em uma cidade é direcionada para canais abertos geralmente localizados em locais próximos aos locais onde existia um curso de água natural, como um córrego. A rede de esgoto é totalmente protegida por sifões e outros tipos de proteções hidráulicas para evitar insetos, animais e mau cheiro. O sistema de águas pluviais geralmente não possui esse tipo de proteção.

Poluição das primeiras chuvas
A poluição difusa, é aquela de fontes dispersas como resultado do escoamento superficial, especialmente alta no início das chuvas (Zeng et al. 2019). A poluição advinda das primeiras chuvas é a primeira descarga do escoamento superficial, no início de um evento chuvoso, Portanto, a primeira descarga é o escoamento superficial inicial de uma tempestade e a água que entra nos bueiros em áreas com altas proporções de superfícies impermeáveis é normalmente mais poluída em comparação com o restante da água da chuva (Zeng et al.2019).

Embora seja frequentemente assumido que a água da chuva é um líquido de boa qualidade, na verdade é um sério problema de poluição em áreas urbanas e rurais. A primeira descarga em particular pode ser bastante perigosa. Nas cidades, a chuva lava a atmosfera, os telhados e as ruas. Consequentemente, carrega conteúdo seriamente contaminado, incluindo produtos químicos, derivados de petróleo, metais pesados e até bactérias infecciosas associadas a excrementos de animais (Argue, 2004). Uma pesquisa conduzida na comunidade de Guangzhou em 2019 mostrou que amônia, nitrogênio e fósforo foram os principais poluentes na primeira descarga da área de estudo (Zeng et al.2019). Nas áreas rurais, a água da chuva pode transportar pesticidas, fertilizantes e outros produtos associados ao uso de terras agrícolas. A poluição difusa é, portanto, originada pelo escoamento de água da chuva não tratada em áreas rurais ou urbanizadas (SEPA, 2021).

Causas de interconexões e poluição difusa: o papel da educação ambiental
A lista de motivos para interconexões em sistema separador absoluto inclui conexões irregulares feitas por proprietários de residências e por empresas de saneamento. Também inclui infiltração de água subterrânea em dutos de esgoto ou esgoto em dutos de água da chuva, que são devidos a vazamentos e rupturas em ambos os dutos.

As causas predominantes variam de país para país e mesmo de cidade para cidade no mesmo país. A rede de águas pluviais inclui diversas estruturas de canais abertos que facilitam o lançamento de esgoto por meio de ligações irregulares feitas por quem não tem acesso a uma rede formal de coleta de esgoto. E em cidades de países em desenvolvimento, esse tipo de ligação irregular também é feita por empresas de saneamento que fazem a rede local de esgotamento sanitário e jogam seu conteúdo em canaletas a céu aberto, já que ainda não foi construída a grande rede de dutos que conduz o esgoto até a estação de tratamento. Mas o esgoto também é lançado em encanamentos pluviais, geralmente nas estruturas ao redor dos bueiros ou relacionados à manutenção do encanamento.

A ligação irregular da água da chuva em redes de esgoto é um pouco diferente, pois muitas vezes é realizada por donos de domicílios ou moradores, seja por falta de informação ou no esforço de evitar os custos de uma tubulação para despejar a água da chuva nas ruas.

Para reduzir a poluição difusa, é necessária uma política eficiente de gestão de resíduos sólidos, bem como a melhoria da qualidade do ar. A educação ambiental eficaz também pode ter um impacto significativo na redução da poluição difusa. Qualquer lixo que não seja coletado prontamente pode chegar ao sistema de drenagem e cursos de água durante uma tempestade, portanto, incentivar o descarte adequado de todo o lixo é vital. Uma atividade particular de educação ambiental em Campinas, Brasil, durante a qual os alunos foram convidados a pintar peixes nas ruas, perto de bueiros e bueiros, ilustra a conexão entre o descarte correto de lixo e a proteção da vida natural nos cursos d’água.

Problemas de água da chuva
O escoamento da água da chuva é a porção da precipitação que não é absorvida pelas plantas, não evapora nem penetra no solo. Quando a água da chuva não se infiltra efetivamente no solo, ela flui superficialmente ou por meio de dutos até seu destino final em córregos, rios ou oceano. (Tucci e Bertoni, 2003)

O processo de urbanização leva a grandes mudanças no processo natural de escoamento das águas pluviais. Em condições naturais, partes da chuva se infiltram, evaporam ou fluem na superfície para os cursos d’água. Parte da precipitação é interceptada por folhas e galhos das plantas na serapilheira e pelo solo da floresta. Mudanças na vegetação natural e impermeabilização do solo associadas à urbanização reduzem a quantidade total de água que evapora e se infiltra no solo. Consequentemente, o escoamento é muito maior e atinge os cursos d’água mais rapidamente, resultando em picos de vazão que acontecem antes do que aconteciam anteriormente à urbanização (Tucci e Bertoni, 2003)

No início do século XX, quando a teoria dos miasmas ainda estava presente, as pessoas em geral – incluindo engenheiros – desconfiavam de reter água nas áreas urbanas. Entendia-se que essa retenção de água era uma das causas dos “miasmas” que causavam muitas doenças infecciosas. Desde então, as medidas de desenvolvimento urbano evitaram a retenção de água e os sistemas de drenagem foram supervalorizados: a água deveria ser transportada rio abaixo o mais rápido possível. As medidas sanitárias tomadas para enfrentar pandemias e problemas de saúde pública tiveram uma influência significativa na legislação de desenvolvimento urbano. Esse conceito hegemônico direcionou o manejo das águas pluviais para uma drenagem rápida e extensiva, incluindo todas as superfícies úmidas das áreas urbanas, mesmo as naturais, como manguezais e várzeas. Esse conceito, infelizmente, ainda está presente em projetos de sistemas de águas pluviais.

A rápida condução da água da chuva para jusante, às vezes chamada de solução cinza, levou a diferentes tipos de problemas de enchentes. Por exemplo, projetos de canalização de córregos em grande escala que evitam inundações locais levam a fluxos ainda maiores de água da chuva a jusante. Esse processo desencadeia um ciclo vicioso, no qual investimentos maiores são sistematicamente demandados, embora os problemas de enchentes não sejam resolvidos. Os eventos extremos de chuva mais frequentes devido às mudanças climáticas também destacam a importância de uma nova abordagem para o gerenciamento das águas pluviais nas cidades. O conceito predominante de que a água da chuva não precisa de tratamento também precisa de revisão. Considerando que as cidades são muito maiores hoje em dia e que as pessoas dependem muito mais da mobilidade motorizada, a qualidade da água da chuva diminuiu consideravelmente e surgiram sérios problemas de poluição.

Soluções verdes para água da chuva e desenvolvimento de baixo impacto
O desenvolvimento de baixo impacto é uma abordagem para o gerenciamento de águas pluviais urbanas que aplica o conceito de controle de fonte com foco na infiltração local. Essas modificações de pequeno impacto na paisagem incluem a redução da superfície impermeável, seções de canal aberto, ampliação da infiltração no subsolo e uso de áreas de bioretenção e filtração das águas (PGDER1999) Soluções verdes são soluções de gerenciamento de águas pluviais baseadas no conceito de controle na fonte, que envolvem melhorias em pequena escala capazes de reter, tratar e maximizar a infiltração de precipitação perto de onde ela cai (Wright2011) As soluções cinza são soluções de gerenciamento de águas pluviais que coletam e transportam a água da chuva o mais rápido possível. Isso envolve drenagem em grande escala e instalações hidráulicas de grande porte localizadas no fundo das áreas de drenagem (Yazaki et al., 2018).

Muitas expressões foram usadas para descrever a nova abordagem para a gestão da água em ambientes urbanos: controle na fonte, gestão de águas pluviais no local, sistema de drenagem sustentável, projeto urbano sensível à água, sistema de drenagem natural, solução verde e técnica compensatória. Hannah Wright apresenta questionamentos à expressão de solução verde para as águas de chuva (Wright, 2011). Porém, as diferentes expressões transmitem o mesmo princípio de estruturas de pequena escala que retêm, tratam e maximizam a infiltração da água da chuva perto do local onde ocorreu a precipitação. Uma publicação de 2018 produzida por Yazaki e outros, apresenta diretrizes para projetar e dimensionar essas soluções verdes para águas pluviais (Yazaki et al.2018).

A expressão desenvolvimento de baixo impacto (LID) é mais comumente usada no Canadá e nos Estados Unidos. O LID também direciona o planejamento do uso do solo e a engenharia para esta nova abordagem de impacto mínimo, de retenção, tratamento e infiltração da água da chuva perto de sua origem. Objetivos, diretrizes e orientação para projetar estruturas LID foram publicados em 1999 (PGDER, 1999) Um trecho desta publicação (pI-2) apresenta seus principais objetivos:

“O objetivo principal dos métodos de Desenvolvimento de Baixo Impacto é imitar a hidrologia do local anteriormente à ocupação, usando técnicas de design que armazenam, infiltram, evaporam e detêm o escoamento. O uso dessas técnicas ajuda a reduzir o escoamento para fora da área onde ocorreu a precipitação e visa garantir a recarga adequada das águas subterrâneas.”.

Os principais objetivos do LID são:
-Reduzir as inundações, minimizando o fluxo de escoamento da água da chuva;
-Tratamento natural da poluição difusa por meio de vegetação e áreas úmidas;
-Aumentar a recarga das águas subterrâneas, garantindo um maior fluxo de córregos e rios durante as estações secas;
-Incorporar água limpa às paisagens urbanas e permitir a existência de vida selvagem natural dentro da cidade.

Entre as organizações que estudam o desenvolvimento de baixo impacto estão incluídas: UC Davis Center for Water and Land Use, que mapeou aproximadamente 40 estudos de caso de LID na costa oeste dos Estados Unidos e especificou um procedimento de cálculo para os sistemas de manejo das águas pluviais, Center for Watershed Protection, que oferece orientação prática para a redução do escoamento; Low impact Development Center, uma organização de pesquisa de qualidade da água ligada à infraestrutura verde, práticas LID, projetos e recursos de águas pluviais; e Alberta Low Impact Development Partnership.

Muitas cidades ao redor do mundo estão agora implementando infraestrutura verde e desenvolvimento de baixo impacto em um esforço para criar um ambiente urbano mais sustentável, embora as soluções cinzas obsoletas ainda estejam presentes (Garrido Neto et al. 2019)

Sistema unitário de esgotos e controle do transbordamento
Conforme descrito antes, os sistemas unitários misturam água da chuva e esgoto na mesma tubulação, às vezes incluindo águas residuais industriais. A rede de dutos normalmente conduz essa mistura para uma estação de tratamento, de onde a água tratada é despejada em um curso d’água. A vazão em tempo seco é o fluxo médio diário para uma estação de tratamento de águas residuais durante um período sem chuva. A vazão de um sistema de esgoto unitário aumentará quando chover. Este fluxo pode variar sazonalmente devido a mudanças nos níveis de infiltração de esgoto e números da população.

Durante as chuvas intensas, parte da água que chega à estação de tratamento é despejada diretamente no curso d’água, pois sua capacidade de tratamento não suporta os altos volumes de água da chuva. Essa descarga, chamada de transbordamento (CSO- combined sewer overflow), contém não apenas água da chuva, mas também resíduos domésticos e industriais não tratados. Algumas cidades têm simultaneamente o sistema unitário, geralmente nos setores mais antigos onde o desenvolvimento urbano ocorreu há muitos anos, e o sistema separador absoluto, onde o crescimento urbano aconteceu mais recentemente. O transbordamento- CSO- é um grande problema e esforços massivos são necessários para controlá-lo e reduzi-lo, seja maximizando a capacidade de tratamento ou expandindo a retenção de esgoto e chuva para tratamento posterior.

A situação que acabamos de descrever é típica de cidades de países desenvolvidos, onde o transbordamento é considerado um problema ambiental. A poluição do dia-a-dia relacionada ao esgoto e à água da chuva já foi resolvida e o problema remanescente está relacionado às fortes chuvas, quando ocorre o transbordamento. Em cidades de países em desenvolvimento, a realidade é bem diferente: os sistemas de abastecimento de água potável têm prioridade sobre a coleta e o tratamento de esgoto. Mesmo onde há um sistema unitário, raramente há uma estação de tratamento disponível. Além disso, em países em desenvolvimento, é comum que tubulações de coleta de esgoto adequadas, fornecidas por uma empresa de saneamento, estejam disponíveis exclusivamente em áreas ricas da cidade. Nas áreas urbanas periféricas mais pobres, essas linhas de tubos são construídas informalmente pela população e descarregam diretamente em córregos e outros cursos de água.

Sistema separador de esgoto e seus problemas
O sistema separador de esgoto, com dutos distintos para água de chuva e esgoto, parte do princípio de que o tratamento do esgoto é mais fácil e obrigatório devido ao seu menor volume e risco patogênico associado aos dejetos humanos. A suposição de que a água da chuva não é um problema de poluição relevante e que pode ser descartada diretamente nos cursos de água era razoável no passado (Moretti e Yazaki, 2008). No entanto, as circunstâncias mudaram ao longo do tempo (considerando a escala crescente das cidades, a contaminação do ar e a poluição relacionada aos veículos motorizados) de tal forma que a poluição difusa é agora uma preocupação mais séria.

A poluição química na água da chuva por resíduos industriais não tratados ou contaminantes presentes no ar e nas ruas é um desafio, especialmente quando os cursos d’água que passam pelas cidades são um suprimento essencial de água para áreas a jusante, às vezes bem próximas de onde a poluição se origina. A mistura de esgoto e água da chuva nos dutos, conforme mencionado anteriormente, é um problema adicional.

Em termos de poluição difusa e interconexões de infraestrutura, as cidades dos países em desenvolvimento, com sistema separador absoluto, enfrentam grandes desafios na direção do estabelecimento de um ambiente sustentável:
-Expansão da infraestrutura verde e implementação de desenvolvimento de baixo impacto;
-Prestação de serviços de saneamento universal, especialmente para pessoas vulneráveis e de baixa renda;
-Tratamento de água da chuva, quando nem mesmo sistemas de tratamento de esgoto estão amplamente disponíveis;
-Erradicação de interconexões irregulares entre sistemas de esgoto e águas pluviais.

Tratamento de Tempo Seco: Possibilidades e Limitações
Com a ocorrência de interligações no sistema de esgotamento sanitário separado, o esgoto não tratado dos dutos de águas pluviais é lançado nos cursos d’água, mesmo no período de seca. As estruturas de coleta de água da chuva, considerando que os diversos tipos de bueiro, normalmente não contém sifão ou outro tipo de selo hidráulico, podem exalar odores desagradáveis e ficar infestadas de ratos e insetos.

As interconexões irregulares também fazem com que a água da chuva seja desviada para a tubulação de esgoto. Conforme explicado, o fluxo de água da chuva pode ser cem vezes maior do que o fluxo de esgoto, então a quantidade total de água residual a ser tratada na estação de tratamento de esgoto é muito maior durante os períodos de chuva. Geralmente, essas plantas não são equipadas para lidar com o volume adicional e seu funcionamento fica comprometido. A água da chuva em dutos de esgoto, que foram projetados com diâmetros menores para transportar muito menor vazão, também causa transbordamento. Esse transbordamento altera o regime de fluxo, adiciona pressão aos tubos e faz com que o esgoto seja despejado em casas localizadas em terrenos baixos.

É muito difícil interromper as interligações irregulares entre esgoto e água da chuva, e o consequente lançamento de esgoto nas águas urbanas. Por isso, a estratégia de tratamento de tempo seco é utilizada em pontos estratégicos da cidade, mesmo em locais em que se construiu um sistema separador absoluto. Nesse caso, o fluxo no sistema de água da chuva, na ausência de chuva, é provavelmente o esgoto que foi divergido erroneamente. Se essa água puder ser encaminhada para uma estação de tratamento de esgoto, pelo menos durante os períodos sem chuvas fortes, é possível reduzir a poluição das águas urbanas. Esse desvio intencional da rede pluvial para a rede de esgoto é feito em dutos pluviais ou em canais abertos de águas pluviais, com presença expressiva de vazão de esgoto nos períodos de estiagem. (Figura 2).

Essa estratégia fornece uma solução paliativa porque despolui rapidamente os esgotos dos cursos d’água, pelo menos na ausência de chuvas fortes. Embora muito conveniente em alguns casos, essa abordagem evita mudanças estruturais eficientes que identificariam e eliminariam as interconexões irregulares entre a água da chuva e as tubulações de esgoto e, assim, perpetua um sistema separador deficiente. Questões relacionadas a este método utilizado na cidade do Rio de Janeiro, Brasil, são identificadas e analisadas por Dias e Rosso (2011).


Figura 2– Tratamento de tempo seco. A linha azul representa a tubulação da água da chuva e canais abertos. Durante os períodos de precipitação baixa ou ausente, a água da chuva é desviada para a estação de tratamento de esgoto. A linha azul pontilhada representa o encanamento ou canal de água da chuva que conduz a água mesclada com esgotos, diluídos, diretamente para o curso d’água durante eventos de chuva moderada ou forte

Identificação de interconexões
Identificar as interconexões de água da chuva em dutos de esgoto não é uma tarefa fácil. É necessário medir e controlar a vazão em seções delimitadas do sistema de esgoto para localizar a infiltração irregular da água da chuva. Se a vazão na seção do tubo de esgoto analisada for maior do que o normal quando chove, é porque a água da chuva está entrando indevidamente na rede de esgoto em um local a montante. Quanto maior o número de pontos de controle de vazão, mais fácil é identificar onde está localizada a interconexão. Outra abordagem é a injeção de fumaça nas tubulações de esgoto. Tecnicamente, a fumaça não deveria sair deles porque o sistema de esgoto é protegido por sifões e selos d’água para evitar que o mau cheiro entre em casas e empresas. No entanto, os dutos de água da chuva usualmente não têm sifão ou outro tipo de selo hídrico e, portanto, se houver uma interconexão entre os dois sistemas, a fumaça aparecerá nos ralos, possibilitando identificar a interconexão irregular.

A medição da vazão no sistema de esgoto não é tão simples quanto pode parecer. Uma vez que a rede está em operação, instalar o equipamento necessário para avaliação de fluxo é bastante complicado. Além disso, a maioria das redes de esgoto não foi projetada para controle de fluxo generalizado.

Encontrar vazamentos de esgoto no sistema de águas pluviais é ainda mais complexo. Um procedimento básico é introduzir um corante em vasos sanitários e outros acessórios hidráulicos que direcionam os resíduos para a rede de esgoto e investigar se o corante chega ou não ao sistema de águas pluviais. Essa estratégia exige que um técnico entre em todas as residências e comércios, logo, evidentemente, uma campanha e operação ambiental massiva são necessárias para que a operação seja viável. Outra abordagem, de alta tecnologia, é inspecionar os dutos de água da chuva durante os períodos de seca com um robô equipado com uma câmera para localizar locais inadequados de descarga de esgoto. Esta operação exige um planejamento detalhado e o robô deve ser projetado especificamente para a tarefa, pois todos os tipos de detritos são encontrados dentro da tubulação de água da chuva.

O Desafio de uma Política Pública de Interrupção de Interconexões
Em sistema separador absoluto, a identificação e desconexão do despejo irregular de esgoto em encanamentos pluviais e vice-versa são cruciais para garantir a qualidade adequada da água urbana. Além das dificuldades técnicas discutidas acima, existem também questões burocráticas e institucionais que muitas vezes limitam os esforços de desconexão.

Em muitos lugares, as organizações responsáveis pela manutenção das tubulações de águas pluviais e pela operação do sistema de esgoto não são as mesmas. Cada organização busca transferir a responsabilidade da desconexão para a outra, por isso, políticas públicas efetivas são necessárias para que funcionem em conjunto. O fato de os dutos de água da chuva e de esgoto serem estruturas enterradas complica a questão porque as irregularidades não são visíveis.

O fornecimento de água potável geralmente é cobrado com uma tarifa ou taxa, e é comum que a conta de água inclua o serviço de esgoto, medido indiretamente a partir do consumo de água potável. No entanto, a manutenção do sistema de água da chuva normalmente não é cobrada. O modelo predominante de empresas de água e esgoto almeja operadoras do serviço   autossustentáveis em termos financeiros. Seus bons resultados financeiros são alvos importantes, mesmo quando se trata de empresas de serviços públicos responsáveis por tarefas ambientais e sociais. A pressão por um resultado financeiro lucrativo, combinada com a falta de preocupação com a qualidade adequada da água urbana, desencoraja as empresas de saneamento a encontrar e desconectar conexões irregulares entre a água da chuva e os sistemas de esgoto.

O Desafio de uma Política Pública de Controle da Poluição Difusa e Desenvolvimento Futuro de Sistemas de Esgoto e Águas Pluviais
Da mesma forma, o controle da poluição difusa é um grande desafio. A redução do lixo urbano e do entulho requer políticas públicas eficazes que apoiem a limpeza intensiva da cidade e a educação ambiental. Cada cidade tem seu próprio conjunto de desafios, mas o mais importante é que o impacto da poluição da água da chuva, especialmente a primeira descarga, deve ser levado tão a sério quanto o impacto do esgoto, e algum tipo de tratamento da água da chuva deve ser colocado em ação. Algumas cidades em países desenvolvidos optaram por direcionar as primeiras descargas para estações de tratamento de esgoto e construir estações com maior capacidade. Outras cidades estão construindo grandes reservatórios, para que a água da chuva possa ser gradualmente direcionada para uma estação de tratamento específica. O que acontecerá nas cidades mais pobres não é conhecido. Fornecer água potável de boa qualidade e sistemas de coleta / tratamento de esgoto para todos os cidadãos é uma prioridade, inclusive em lugares onde as pessoas não podem pagar por esses serviços. O acesso aos serviços de saneamento deve ser considerado um direito humano básico. Isso requer recursos públicos e políticas que considerem o saneamento uma prioridade de saúde pública.

É inegável que, apesar das dificuldades, é necessário pensar e projetar, para o futuro, como se dará o controle da poluição difusa, pois a proteção das águas urbanas, num contexto de crise hídrica, é uma prioridade evidente e é muito mais difícil enfrentar esse desafio se o problema não tiver sido previamente previsto e sua solução equacionada, mesmo num cenário de dificuldades financeiras para sua implementação imediata. Isso se aplica também em locais onde a poluição difusa ainda não é uma preocupação no momento, pois pode ser considerado inevitável o aumento do problema, na medida em que se amplia o processo de urbanização e torna-se necessário definir estratégias para enfrentar o problema no futuro. É preciso reservar espaço nas cidades para as instalações que se farão necessárias para a melhoria da qualidade da água da chuva que serão construídas no futuro. Também é essencial que os planos diretores da cidade e as diretrizes da legislação urbana orientem e estimulem o desenvolvimento de baixo impacto e as práticas de infraestrutura verde. Isso pode quebrar o ciclo vicioso de crescentes problemas de enchentes que afetam as cidades dos países em desenvolvimento, agravados pelas mudanças climáticas e pela presença de esgoto nas águas urbanas,

Tanto a prevenção da poluição difusa quanto o desligamento das ligações irregulares entre as águas pluviais e as redes de esgoto dependem de uma política pública que sistematicamente monitore a qualidade das águas urbanas e que priorize sua melhoria. Sem essa política, cidades com serviços de esgoto 100% completos correm o risco de ter 100% de seus cursos d’água e águas subterrâneas seriamente poluídos.

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[1]Ricardo de Sousa Moretti – Professor do Programa de Planejamento e Gestão do Território da UFABC e integrante do ONDAS- Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento. E-mail: [email protected]

[2] Edson Aparecido da Silva – Sociólogo, Me. em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC e Secretário Executivo do ONDAS- Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento. E-mail: [email protected]

➡️ Download do texto: https://ondasbrasil.org/wp-content/uploads/2021/08/Sistemas-urbanos-de-esgotos-e-drenagem-das-águas-pluviais-poluição-difusa-e-interconexões.pdf

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