ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

100 dias da operação da Águas do Rio: há motivos para comemorar?

 

Texto da interação ONDAS-Privaqua*
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100 DIAS DA OPERAÇÃO DA ÁGUAS DO RIO: HÁ MOTIVOS PARA COMEMORAR?
Autores: Suyá Quintslr, Bruno Puga [*]

No dia 11 de fevereiro de 2022, a Águas do Rio, concessionária do grupo AEGEA, lançou um vídeo comemorativo dos 100 dias de operação dos serviços de saneamento no estado do Rio de Janeiro pela empresa em suas redes sociais, enaltecendo as mudanças ocorridas em tão pouco tempo. A julgar pelos comentários motivados pelas postagens do vídeo , entretanto, não há muito a comemorar.

Figura 1: nuvem de palavras feita a partir dos comentários. Quanto maior a palavra, maior a frequência em que aparece.

Com o objetivo de reproduzir uma breve avaliação desses “100 dias”, compilamos todos os comentários nas redes sociais da empresa (Twitter, Facebook e Instagram) [1] que reagiram ao vídeo celebrando os 100 dias da operação. Ao todo são 210 comentários que denotam uma insatisfação generalizada. Os poucos comentários positivos aparentam terem sido feitos por entusiastas ou funcionários da empresa (com “emoji” de coração azul, um padrão de seu time de marketing). A Figura 2 apresenta a classificação dos comentários (positivo, negativo ou neutro) e a Figura 3 demonstra o tipo de insatisfação apresentada. Tirando as insatisfações gerais (sem definir um problema específico), a maior parte das reclamações citam o aumento da falta d’água e a elevação da tarifa ou cobrança indevida. Isto pode ser um sinal de que o “oceano azul” prometido à população fluminense pode esbarrar em uma série de problemas estruturais, sociais e institucionais.

Figura 2: comentário nas redes sociais segundo a avaliação (positiva, negativa, neutra)


Figura 3: comentário nas redes sociais segundo o tipo de problema reportado.

A história da Águas do Rio teve início em abril do ano anterior quando, após uma disputa política e judicial, a AEGEA arrematou, em leilão na Bolsa de Valores de São Paulo (B3), dois dos quatro blocos de municípios que tinham seus serviços operados pela CEDAE (Blocos 1 e 4, segundo modelagem realizada pelo BNDES). Em seguida, retirou sua proposta para o Bloco 3, declarado sem vencedor.

Os blocos 1 e 4 compreendiam bairros das Zonas Norte, Sul e Centro do município do Rio de Janeiro, além de municípios da Região Metropolitana (Baixada Fluminense e Leste metropolitano) e alguns municípios do interior. Assim, o grupo AEGEA, que já operava os serviços em cinco municípios da Região dos Lagos através da Prolagos, tornou-se responsável pela operação dos serviços de água e esgoto em mais 27 cidades do estado. A empresa atende, atualmente, cerca de 10 milhões de pessoas, ou 60% da população do estado.

A partir da assinatura do contrato com o estado do Rio de Janeiro, no dia 11 de agosto de 2021[2], teve início a operação assistida prevista para durar 180 dias, prorrogáveis por mais 90. Nesse período, destinado ao aprendizado institucional, técnico e operacional, a empresa deveria acompanhar de perto as atividades da CEDAE – que continuava responsável direta pela operação do sistema e beneficiária das receitas. Todavia, acordo entre as partes possibilitou a antecipação do fim da operação assistida e o início da operação exclusiva dos sistemas de água e esgotos pela Águas do Rio a partir do dia 1º de novembro de 2021. Tal antecipação gerou inconvenientes ao planejamento da CEDAE – tais como a redução da receita prevista para 2021 e problemas com fornecedores[3] – e, ao que parece, privou a nova concessionária do que poderia ser uma ajuda importante na compreensão de sistemas complexos de abastecimento.

Em que pese a experiência do grupo Equipav[4], atual controlador da AEGEA, na área de infraestrutura desde a década de 1960 e, na área de saneamento, desde 2010, negligenciar o conhecimento técnico da CEDAE adquirido ao longo de quase 50 anos e a capacidade desenvolvida para operar serviços em um território geográfica e socialmente desigual, além de permeado por tantos conflitos como o RJ, pode ser decisivo para o futuro da prestação privada.

Os problemas de saneamento na área de concessão não são uma novidade para os fluminenses. Existem dificuldades técnicas para atendimento de determinadas áreas (para as quais, certamente, há soluções de engenharia). O grande número de moradias em morros não urbanizados, por exemplo, resulta na necessidade de um complexo sistema de bombeamento e reservatórios que nem sempre funciona – ocasionando intermitências no abastecimento de água. As dificuldades para implantação de rede de esgotos em vias não urbanizadas não são menores.

Até a passagem dos serviços para a Águas do Rio no final de 2021, alguns municípios da área concedida tinham os serviços de água e esgoto prestados por companhias distintas e, em certos casos, mesmo os serviços de água não estavam sob responsabilidade de um único operador, como fica claro na tabela 1.

Tabela 1: Operadores dos serviços de água e esgoto nos municípios da área de concessão no ano de 2020.

Município Água Esgotos
Aperibé CEDAE Prefeitura Municipal de Aperibé
Belford Roxo CEDAE CEDAE
Cachoeiras de Macacu CEDAE
Cambuci CEDAE Prefeitura Municipal de Cambuci
Cantagalo CEDAE Prefeitura Municipal de Cantagalo
Casimiro de Abreu CEDAE e Serviço Autônomo de Água e Esgoto Serviço Autônomo de Água e Esgoto
Cordeiro CEDAE CEDAE
Duas Barras CEDAE
Duque de Caxias CEDAE CEDAE
Itaboraí CEDAE CEDAE
Itaocara CEDAE Prefeitura Municipal de Itaocara
Japeri CEDAE
Magé CEDAE Prefeitura Municipal de Magé
Maricá CEDAE CEDAE
Mesquita CEDAE CEDAE
Miracema CEDAE Prefeitura Municipal de Miracema
Nilópolis CEDAE CEDAE
Nova Iguaçu CEDAE CEDAE
Queimados CEDAE CEDAE
Rio Bonito CEDAE Prefeitura Municipal de Rio Bonito
Rio de Janeiro * CEDAE CEDAE
São Francisco de Itabapoana CEDAE
São Gonçalo CEDAE CEDAE
São João de Meriti CEDAE Concessionária Águas de Meriti LTDA
São Sebastião do Alto CEDAE
Saquarema ** CEDAE e Concessionária Águas de Juturnaíba S/A Concessionária Águas de Juturnaíba S/A
Tanguá CEDAE Prefeitura Municipal de Tanguá

Fonte: elaborada pelos autores com base nos dados do SNIS 2020.

Em parte da área de concessão, territórios controlados por milícias e pelo tráfico de drogas acumulam dificuldades – que vão desde a garantia de segurança dos trabalhadores da empresa para fazer reparos ou lidar com os “gatos” de água[5] até a competição com a provisão informal de água por diferentes grupos. Tais grupos controlam e cobram a distribuição de água em algumas áreas, além de atuarem na venda de caminhões-pipa e galões de água mineral. Mais recentemente, milícias começaram a desviar tubulações da CEDAE para o atendimento em suas áreas de influência na Baixada Fluminense.[6] [7] [8]

Além disso, a área agora sob responsabilidade da Águas do Rio é permeada por grandes desigualdades sociais e no acesso dos serviços de saneamento básico. Como resultado desse quadro, os índices de inadimplência que a companhia deve enfrentar são igualmente elevados. A tabela 2, elaborada a partir dos dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), sintetiza alguns dados dos 27 municípios em questão, ilustrando as diferenças nos indicadores municipais.

Município Índice de hidrometração (IN009) Índice de coleta de esgoto (IN015) Índice de tratamento de esgoto (IN016) Índice de atendimento urbano de água (IN023) Índice de atendimento total de esgoto (IN056)
Aperibé 99,81 100 100 92,43
Belford Roxo 34,05 37,62 32,97 100 43,23
Cachoeiras de Macacu 22,4 11,17
Cambuci 98,52 94,43 65,75
Cantagalo 97,46 100 100
Casimiro de Abreu 88,96 74,84 33,87 51,07
Cordeiro 99,98 32,01 33,75 100 40,26
Duas Barras 99,98 94,97
Duque de Caxias 34,37 36,65 24,21 89,02 37,47
Itaboraí 39,32 65,8 11,33 26,62 21,29
Itaocara 98,85 100 75,66
Japeri 9,98 92
Magé 8 21,74 5,16
Maricá 90,58 12,72 77,93 40,41 4,61
Mesquita 49,12 43,29 28,84 99,96 50,3
Miracema 90,13 100 95,25
Nilópolis 79,64 42,81 35,4 100 50,17
Nova Iguaçu 47,56 34,66 2,58 78 31,52
Queimados 41 35,56 0 91,8 38,2
Rio Bonito 72,5 62,49 72,8
Rio de Janeiro * 42,18 85 92,05 100 66,45
São Francisco de Itabapoana 74,21 71,56
São Gonçalo 50,01 32,18 48,15 90,18 33,49
São João de Meriti 51,05 100 60,38
São Sebastião do Alto 99,97 97,86
Saquarema ** 99,93 78,83 100 6,66 73,94
Tanguá 39,96 26,26 48,91

Fonte: produzidas pelos autores com base nos dados do SNIS 2020

Quando verificamos os dados referentes ao atendimento urbano de água (IN023) (a concessão não incluiu as áreas rurais dos municípios), podemos observar que, ainda que 10 municípios estejam próximos à universalização, em vários casos a rede de abastecimento não chega a metade dos domicílios urbanos. Em casos extremos, a rede mal alcança ¼ da população (Cachoeira de macacu, Casimiro de Abreu, Itaboraí, Magé, Maricá, Saquarema e Tanguá).

As diferenças na hidrometração (IN009) também são grandes e temos na área tanto municípios com praticamente 100% das ligações de água micromedidas – a exemplo de Aperibé, Cambuci, Cordeiro, Duas Barras, Itaocara, São Sebastião do Alto e Saquarema – quanto com índices abaixo dos 10% – caso de Itaocara e Japeri. Mesmo municípios com índices um pouco melhores podem ter um número absoluto muito grande de residências sem hidrômetro, como é o caso do Rio de Janeiro.

Os indicadores de atendimento das residências pela rede de esgotamento (IN056) são insuficientes em quase todos os municípios em questão, só ultrapassando 90% em três pequenos municípios do interior (Aperibé, Cantagalo e Miracema). Quando comparado o volume de esgoto gerado com o coletado (IN015), os indicadores não são melhores. O mesmo vale para a proporção entre o esgoto tratado e o coletado – em apenas três casos foi informado que mais de 90% do esgoto coletado é tratado (Aperibé, Rio de Janeiro e Saquarema).

A melhoria destes indicadores é fundamental tanto para o bem-estar da população fluminense quanto para a recuperação dos corpos hídricos da região. A situação do rio Guandu, do qual depende o abastecimento de mais de 9,5 milhões de pessoas na RMRJ, e a da Baía de Guanabara, vem sendo amplamente reportada pela mídia.

Com efeito, nesses primeiros 100 dias de operação, o que parece ter ficado claro para a população fluminense e para a Águas do Rio é que os complexos problemas de saneamento na área da concessão não possuem soluções simples e que uma mudança na forma de prestação – de pública para privada – está longe de conseguir apresentar melhorias significativas em um período tão curto. Resta saber se os prazos, também exíguos, sugeridos na Lei 14.026/2020 e nos contratos de concessão para a universalização dos serviços serão cumpridos. Na política, costuma-se considerar que, nos primeiros 100 dias, a população tem forte tolerância com os erros dos que estão chegando ao governo. Se os 100 primeiros dias da Águas do Rio foram assim, o que esperar dos dias futuros?

[1] Extraídos dos links https://twitter.com/aguas_do_rio/status/1492172333301252113?s=20&t=32QbUQSwcwg_QxNN0LqPGg ,
https://fb.watch/baoEe33klO/ , https://www.instagram.com/tv/CZ1SD3_DhMj/?utm_source=ig_web_copy_link  e https://www.instagram.com/p/CZ4hhkXv6vG/?utm_source=ig_web_copy_link

[2] https://www.aegea.com.br/2021/08/12/aguas-do-rio-assina-contrato-de-concessao-da-cedae-no-rj/

[3] https://odia.ig.com.br/colunas/informe-do-dia/2021/10/6246996-rs-15-bilhao-a-menos-no-caixa.html

[4] https://www.grupoequipav.com.br/nossa-historia/

[5] https://projetocolabora.com.br/ods6/medo-abastece-o-desperdicio-de-agua-no-rio/

[6]https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/policia-faz-operacao-para-prender-milicianos-que-atuam-na-baixada-fluminense.ghtml

[7] http://www.bandnewsfmrio.com.br/editorias-detalhes/milicia-perfura-tubulacao-da-cedae-para-ligac

[8]https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/04/areas-ocupadas-por-trafico-e-milicia-sao-desafio-para-concessao-da-cedae.shtml

* Privaqua é um projeto de pesquisa que busca entender o impacto da privatização dos serviços de água e saneamento nos direitos humanosRegularmente, o site do ONDAS publica notas do Privaqua de forma a dar transparência ao projeto e compartilhar alguns de seus achados preliminares.

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