Caroline Rodrigues da Silva, João Roberto Lopes Pinto, Alice Vieira Lima Cavalcante, Danilo George Ribeiro e Ary Gabriel Girota de Souza*
Em 2020 foi aprovada a Lei Federal 14.026/2020, que alterou a Política Nacional de Saneamento (Lei 11.445/2007) e aprofundou o processo de mercadorização das águas no Brasil. Nesse contexto, o então vice-governador Cláudio Castro (PSC) deu continuidade ao processo de concessão da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), a qual teve início em 2016, quando o governo de Luiz Fernando Pezão (MDB) deu aval para que a Companhia entrasse no Programa de Parcerias e Investimentos (PPI) de Moreira Franco (MDB) e Michel Temer (MDB).
Em 2017, devido ao Estado do Rio de Janeiro ter decretado “Estado de Calamidade Financeira”, a Cedae foi dada como garantia do Plano de Ajuste Fiscal firmado entre o Governo do Estado do Rio de Janeiro e a União Federal. Desde então o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ficou responsável pela modelagem financeira de concessão da Companhia que só se tornou pública em junho de 2020.
Cláudio Castro (PSC) chegou a colocar em dúvida o processo de privatização da Cedae dizendo que “O Rio, com pressa, já fez maus negócios simplesmente pela questão financeira, isso não se repetirá”, no entanto, autorizou a abertura do Leilão da Cedae (Edital 01/2020) com base na modelagem do BNDES no apagar das luzes do ano legislativo de 2020 por meio do Decreto 47422/2020.
Vale lembrar que a abertura do leilão da Cedae deu-se em meio a diversos questionamentos técnicos, jurídicos e sociais. A Fiocruz, por exemplo, publicou uma Nota Técnica analisando os potenciais impactos do Edital 01/2020 à saúde e aos direitos humanos; o Departamento de Recursos Hídricos e Meio Ambiente da UFRJ publicou outro estudo com apontamentos no campo da engenharia sanitária e ambiental. No campo jurídico o Tribunal de Contas do Estado, por meio do processo TCE-RJ 100.167-5/2021, apontou irregularidades no Edital 01/2020 e a própria ALERJ chegou a aprovar o Projeto de Lei Complementar 57/2021 suspendendo os efeitos do Decreto 47422/2020 e, por conseguinte, o próprio leilão. No entanto, em ato autoritário o governador Claudio Castro passou por cima da ALERJ e deu aval para a continuidade do processo. No campo social diversas manifestações foram feitas, com destaque para as denúncias da sociedade civil sobre os riscos da concessão aumentar a injustiça hídrica na região metropolitana do Rio de Janeiro já que as áreas de favelas e periferias não serão priorizadas para os investimentos das concessionárias privadas. Nas vésperas do leilão uma carta com 140 assinaturas de entidades da sociedade civil foi enviada aos parlamentares da ALERJ solicitando o cancelamento do leilão.
Apesar destes questionamentos o leilão da Cedae, maior empresa pública do estado do Rio e única lucrativa, ocorreu no dia 30 de abril de 2021 na Bolsa de Valores de São Paulo (B3).
Prevendo inicialmente outorga mínima de 10,6 bilhões, a operação do leilão da Cedae finalizou com outorga de 22,6 bilhões. Considerando que o Estado do Rio de Janeiro encontra-se no vermelho pelo menos desde 2017 esse valor pode parecer um êxito, contudo, as aparências enganam conforme demonstraremos: i) 17 bilhões destes 22,6 bilhões poderão ser financiados pelo recursos públicos do BNDES, ou seja, vende-se o patrimônio público e ainda paga-se a conta; ii) Apenas 85% (19,2 bilhões) dos 22,6 bilhões irão para o Estado e 15% (3,4 bilhoes) para os municípios; iii) Destes 19,2 bilhões, 4,5 bilhões já estão comprometidos com o pagamento da dívida contraída pelo Estado junto ao Banco BNP Paribás; iv) A Cedae é a única estatal do estado que tem lucro anual de 1,3 bilhões, o que significa que em poucos anos ela própria já retornaria aos cofres públicos o valor pela qual está sendo alienada.
Para garantir viabilidade econômica ao leilão da Cedae o estado do Rio de Janeiro foi dividido em quatro grandes blocos formados por municípios da região metropolitana e municípios do interior, divisão que não respeitou regras de planejamento urbano tão pouco as dinâmicas locais. Houve quatro consórcios1 interessados no leilão, no entanto, apenas dois ganharam, são eles: O consórcio Agea ganhou os blocos 1 e 4. Já o consórcio Iguá Saneamento levou o bloco 2. O bloco 3 não foi leiloado. Como se pode observar, o leilão da Cedae exemplifica bem o oportunismo das empresas privadas de ampliar sua margem de lucro a partir dos serviços de saneamento brasileiros.
Fraude no Leilão da Cedae?
A partir de trabalho de pesquisa e investigação sobre as estruturas acionárias das empresas, matérias veiculadas na grande mídia e comunicados ao mercado por parte das empresas, foram mapeados alguns dados que apontam para possíveis fraudes no leilão da Cedae, ilustradas pela formulação do infográfico anexo.
O consórcio Agea enviou proposta para os blocos 1, 2, 3 e 4, tendo retirado a proposta ao bloco 3 no momento do leilão. Ao final levou os blocos 1 e 4. Este consórcio tem entre seus controladores o Fundo Soberano de Cingapura (GIC), a Corporação Financeira Internacional (IFC, do Banco Mundial) e o grupo Itaú.
O consórcio Iguá enviou proposta para os blocos 1 e 2, e ao final levou o bloco 2. Este tem como controladores o Canada Pension Plan Investment Board (CPPIB) e o BNDESPAR, braço de participações do BNDES que controla 11% do capital da Iguá. Sendo o BNDES o responsável pela modelagem do leilão, a Iguá pode ter tido acesso à informação privilegiada.
O Consórcio Redentor, participante derrotado do leilão da Cedae, foi liderado pela Equatorial Energia (empresa de geração, transmissão e distribuição de energia), que, por sua vez, tem como controladores o Fundo de Investimento Canadense CPPIB, o Fundo Soberano de Cingapura – GIC. Já o Itaú participa do capital da Equatorial Distribuição, uma subsidiária da Equatorial Energia. O Consórcio Redentor enviou proposta para os blocos 1, 2 e 4 e não levou nenhum. Curioso notar que GIC, CPPIB e ITAÚ atuam juntos em uma Joint Venture com a Cyrela, uma das maiores incorporadoras imobiliárias do país.
Note-se que as supostas concorrentes no leilão da Cedae, a Iguá Saneamento e a Aegea possuem controladores comuns aos controladores do Consórcio Redentor como o CPPIB e GIC e Itaú, respectivamente. O entrelaçamento entre os proprietários dos três consórcios põe em questão a ocorrência de uma efetiva concorrência no leilão, sugerindo que possa ter havido acordo prévio entre os ditos consórcios, o que configuraria fraude.
No caso da participação do grupo Itaú na Aegea, chama a atenção o fato de que o grupo adquiriu 10% do capital dessa empresa de saneamento, no valor de R$1,3 bilhão, três dias antes do leilão. Destaque também para a atuação de pessoas ligadas ao Itaú, financiando tanto a criação do partido NOVO quanto o diretório estadual do partido na eleição de 2018, favorecendo as campanhas de deputados estaduais como os deputados Alexandre Freitas e Adriana Balthazar, ambos deputados do partido que entraram com mandado de segurança para a suspensão dos efeitos do Projeto de Lei Complementar 57/2021, o qual acabou sendo desautorizado pelo ato autoritário do governador Claudio Castro.
Entre os pontos abertos por esta breve descrição e que podem ser elementos de investigação destacam-se: a apuração de qual foi o real interesse da Equatorial Energia, sem qualquer atuação na área de saneamento, em participar do leilão da Cedae; e a investigação sobre relação entre o Consórcio Redentor, liderado pela Equatorial Energia, e as duas empresas vitoriosas no leilão, na medida o trabalho de pesquisa e investigação demonstrou que há um entrelaçamento entre os proprietários da Equatorial e os da Aegea e Iguá, botando em dúvida a lisura do processo de concorrência pública.
O quarto consórcio que participou do leilão, o Rio Mais Operações de Saneamento, reunia a BRK Ambiental e a Águas do Brasil. A BRK, Aegea, Iguá e Águas do Brasil, controlam mais de 80% do mercado privado de saneamento no país2. Segundo dados de 2018, do Sistema Nacional de Informação do Saneamento (SNIS), 5,2% dos serviços do setor de água e saneamento são prestados por empresas privadas, enquanto 95% são prestados por empresas públicas municipais e estaduais. Essas atendem 72% de todo o país, e estão sob a responsabilidade de 27 empresas públicas estaduais, avaliadas em mais de R$200 bilhões.
Embora também derrotada no leilão da Cedae, a BRK Ambiental já havia sido contemplada na primeira privatização de saneamento do governo Bolsonaro, ocorrida em 2020, da Companhia de Saneamento de Alagoas (CASAL). Na sequência, ocorreu a segunda privatização em Cariacica-ES e a empresa vitoriosa foi a Aegea. Ou seja, no contexto recentes privatizações no setor, já se observa uma alternância entre as três maiores do setor na vitória em leilões.
Considerando que já estão previstos para este ano mais três leilões de saneamento (estados do Amapá, Rio Grande do Sul e no município de Porto Alegre), existe grande chance de que as quatro gigantes do setor sigam se alternando no controle das empresas privatizadas.
Outro ponto que pode ser tópico de investigação é O Canadian Union of Public Employees (CUPE), maior sindicato do setor público do Canadá, que está exigindo que o Plano de Pensão Público Conselho de Investimentos do Fundo de Pensão Canadense (CPPIB, na sigla em inglês) do país abandone os planos para investir em um grande esquema de privatização da água no Brasil, especialmente na compra da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae).
“É ultrajante que nosso plano de previdência pública esteja usando os fundos de aposentadoria dos trabalhadores para lucrar com a necessidade das pessoas por água potável e tratamento de esgoto seguro. Esses são direitos humanos essenciais para a sobrevivência. O acesso aos serviços de água já é frágil e desigual no Brasil. A privatização vai piorar as coisas e queremos que ela seja eliminada”, disse o presidente nacional do CUPE, Mark Hancock.
1 O Consórcio Redentor, que foi liderado pela Equatorial Energia que é uma empresa de geração, transmissão e distribuição de energia sem experiência no setor de saneamento; e o Consórcio o Rio Mais Operações de Saneamento que reunia a BRK Ambiental e a Águas do Brasil apresentaram propostas, mas não levaram.
2 Segundo pesquisa do Instituto Mais Democracia sobre “Quem São os Donos do Saneamento no Brasil”. Para consultar acesse <https://www.youtube.com/watch?v=tL31Y0ReTeY>
*Caroline Rodrigues da Silva é Assistente Social e Educadora da ONG FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, doutoranda do Programa de estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC-SP, membro do Núcleo de Estudos sobre Movimentos Sociais (NEMOS).
*João Roberto Lopes Pinto é professor de políticas públicas no Departamento de Estudos Políticos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e coordenador do grupo de pesquisa ECOPOL/NELUTAS. Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e coordenador do Instituto Mais Democracia.
*Alice Vieira Lima Cavalcante é cientista política e assessora parlamentar do mandato da Deputada Renata Souza (PSOL – Rio de Janeiro). Mestranda em ciência política pelo CPDA/UFRRJ.
*Danilo George Ribeiro é historiador e assessor parlamentar do mandato do Deputado Estadual Flavio Serafine (PSOL- Rio de Janeiro). Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).
*Ary Gabriel Girota de Souza é funcionário da Cedae e presidente do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgoto do Leste Fluminense (SINDÁGUA-RJ). Graduado em Pedagogia. É membro do Conselho Fiscal do ONDAS.
Artigo publicado originalmente em Outras Palavras
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