Neste artigo, a Professora Sonaly Rezende [1] examina e detalha a nona medida proposta pelo ONDAS em Carta à Sociedade Brasileira a propósito da epidemia do COVID-19, que teve o endosso da Fiocruz e do Relator da ONU para os Direitos à Água e ao Saneamento:
- Apoiar os pequenos municípios e as comunidades rurais que operam diretamente seus serviços públicos de saneamento de forma a garantir o pleno abastecimento de água.
A COVID-19 traz à tona uma questão que apenas em momentos de crise é capaz de mobilizar a maior parte da sociedade, a de que, em um contexto de pandemia, é difícil definir quem estará a salvo, dada a interdependência que surge com as necessidades recíprocas dos seres humanos. A despeito do grande potencial de contágio do vírus, que tem provocado mortes em diferentes contextos socioeconômicos, as formas de evitá-lo e de tratar dos doentes são muito variadas. No Brasil, as desigualdades socioeconômicas têm gerado grande preocupação, dada a maior propensão de contágio em ambientes com baixa disponibilidade de água, representados pelas periferias urbanas e áreas rurais.
O estudo que subsidiou a formulação do Programa Nacional de Saneamento Rural (PNSR) envolveu reflexões sobre o Brasil rural e suas múltiplas faces – ou ruralidades – e mostrou o quão distante o País se encontra da universalização do abastecimento de água e da garantia desse direito humano. As condições de saneamento básico são reveladoras da atuação desigual do poder público frente às suas distintas demandas. A água destinada ao consumo humano é considerada de uso prioritário, mas, na medida em que os serviços públicos prevalecem apenas nos centros urbanos (sobretudo os maiores), essa prioridade é seletiva. Aos que habitam as áreas rurais, desde as periferias urbanas até as regiões de maior isolamento, além de, em grande medida, não poderem contar com serviços públicos, ainda há o ônus de conviver com a poluição causada pelos esgotos coletados em áreas urbanas e despejados em cursos de água e pelo uso indiscriminado de agrotóxicos.
O Censo Demográfico de 2010, após uma década, ainda é a melhor fonte de informações para retratar o panorama de distribuição da população rural no território brasileiro. De acordo com a metodologia do PNSR, que resultou na reclassificação de setores censitários do IBGE, 39.914.415 pessoas residiam em áreas rurais do Brasil, em 2010, (21% do total), número significativamente superior ao apurado pelo IBGE, cerca de 29,54 milhões de habitantes (15,57% do total). Nessa perspectiva, dentre os 5.565 municípios existentes no País, em 2010, 3.311 (59,6% do total) possuíam 50% de sua população residindo em áreas rurais. Nas macrorregiões a distribuição é a seguinte:
N = 58,8%; NE = 50,5%; SE = 21,8%; S = 49,3%; CO = 27,5%. Em 40,4% dos municípios, nos quais predomina a população rural, existem 886 (16% do total) cuja população rural abrange percentuais superiores a 70%, e 256 municípios (4,6% do total) possuem acima de 90% de sua população residindo em áreas rurais. Essa breve análise mostra como o “rural” é amplo e, face às precariedades intrínsecas ao modo de vida que se estabelecem nesses espaços, a ameaça representada pela COVID-19 é bastante real, podendo tornar-se avassaladora.
Em municípios pequenos as condições de acesso a serviços públicos de abastecimento de água são relativamente piores do que em municípios de maior porte populacional. Dados do Censo demográfico de 2010 revelam que, em municípios com até 20 mil habitantes, o atendimento médio por rede geral aos domicílios é de aproximadamente 66%. Na faixa populacional de 20 mil a 50 mil habitantes, o atendimento médio domiciliar por rede geral é igual a 70%, e para municípios com população superior a 50 mil habitantes, a média do atendimento domiciliar por rede geral é cerca de 82%.
Um dos maiores desafios para a gestão do saneamento é representado pela ausência e falta de precisão e consistência de dados. Quando se analisa, por exemplo, a base de dados do Sistema Nacional de Informações de Saneamento (SNIS), verifica-se que entre os municípios menores há um elevado número de declarações “simplificadas”, sendo a maior parte das respostas inexistente. Isso mostra como é difícil interpretar de forma segura a realidade sanitária dos 3.925 pequenos municípios brasileiros, que, em 2010, representavam cerca de 17% da população do País, e, assim, planejar uma atuação mais efetiva por parte do poder público.
Nas regiões rurais situadas às margens das cidades formais, identificadas pelo PNSR como aglomerações próximas do urbano, existiam, de acordo com o Censo demográfico de 2010, cerca de 10 milhões de habitantes residindo em cerca de 2,9 milhões de domicílios, dos quais, 75% possuíam atendimento por rede geral de distribuição de água, contra 93% de atendimento aos domicílios essencialmente urbanos, seus vizinhos. Esses domicílios têm como particularidade estarem conectados aos centros urbanos, pelas relações de trabalho e de apropriação de bens e serviços, mas sua condição sanitária está aquém da situação vigente em áreas urbanas. As pessoas residentes nas áreas de extensão urbana têm elevado grau de exposição ao contágio pela COVID-19, pela frequente circulação nas cidades, mas apresentam maior chance de propagação da doença nos lugares que habitam, onde há maior precariedade nas condições de abastecimento de água e é recorrente a intermitência do seu fornecimento.
A situação do atendimento por abastecimento de água é ainda mais precária em áreas rurais isoladas, de baixa aglomeração de domicílios ou de dispersão no território. No rural disperso, onde habitam cerca de 24 milhões de pessoas, 80% dos domicílios não estão vinculados a sistemas de abastecimento de água – 43% destes são abastecidos por mananciais subterrâneos (poços ou nascentes); 33% possuem a chamada “outra forma” de abastecimento de água (proveniente de mananciais superficiais e transportada pelos próprios usuários ou em carros pipa) e 4% apresentam como fonte principal as cisternas de água de chuva (aproximadamente 290 mil domicílios, sendo 270 mil localizados na macrorregião Nordeste).
Quando miramos as macrorregiões, a pior situação é encontrada no norte do País, onde cerca de 91% do atendimento se dá de duas maneiras que caracterizam o atendimento precário: poço ou nascente (50%) e outras formas de abastecimento (41%). Nessa região, populações indígenas de diversas etnias, e comunidades tradicionais, têm sofrido com o avanço do garimpo ilegal e do desmatamento, em meio à flexibilização da implementação de leis e fiscalização dessas atividades nas reservas indígenas e em áreas de preservação ambiental. Além dos danos ambientais, estas atividades predatórias poderão introduzir a COVID-19 nas aldeias e pequenas comunidades isoladas, que se encontram a grandes distâncias do sistema de saúde, dificultando o atendimento de suas populações, extremamente vulneráveis do ponto de vista sanitário.
O PNSR tem como objetivo atender as demandas das populações do campo, da floresta e das águas, segundo os preceitos de direitos humanos, da promoção da saúde, da erradicação da extrema pobreza e do desenvolvimento sustentável e solidário, além de se pautar nos princípios da universalidade, equidade, integralidade e intersetorialidade. A gestão do Programa representa uma oportunidade para envolvimento de distintos atores e interesses e para a mobilização de recursos humanos e econômicos, o que requer planejamento, implementação, acompanhamento e monitoramento. A coordenação do PNSR, de responsabilidade da Funasa, somente poderá se tornar realidade se forem criadas novas instâncias de gestão capazes de fomentar o diálogo amplo e irrestrito, de todos os entes envolvidos, a exemplo de Fóruns nos níveis federal e estaduais e a constituição de Salas de Situação visando ao acompanhamento das ações do Programa. Sem a atuação conjunta do poder público e da sociedade será improvável que o abastecimento de água se estabeleça como um direito humano.
Na atual conjuntura, medidas relacionadas ao isolamento físico devem ser estrategicamente adotadas pelos governantes a fim de se evitar a entrada do vírus nos pequenos municípios e em comunidades rurais. Mas é urgente que os moradores dessas localidades sejam visibilizados e recebam a devida atenção para que seja garantido o abastecimento de água em suas residências, em quantidade e qualidade suficiente, de forma acessível, física e financeiramente, para que possam se mobilizar no enfrentamento da COVID-19.
[1] Professora do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental e do Programa de Pós Graduação em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos da UFMG. Engenheira Civil, Mestre pelo Programa de Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos e Doutora em Demografia, pela UFMG.
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