ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

A diáspora venezuelana e a acolhida brasileira

Autoras: Renata de Faria Rocha Furigo e Gabriela Vieira Capobiango, ONDAS

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Desde o ano de 2014, uma grave crise econômica e humanitária tem provocado a fuga diária de milhares de venezuelanos daquele País. Eles saem em busca de refúgio nos países vizinhos ou se aventuram em trilhas maiores e perigosas, seja para América Central, seja para o Chile. Segundo a Plataforma de Coordenação Interagencial para Refugiados e Migrantes da Venezuela (R4V)[1], foram registrados até maio deste ano, 7,32 milhões de refugiados e migrantes para todo o mundo, sendo 6,14 milhões na América Latina e Caribe. A ONU já classifica este movimento migratório como a maior crise de deslocamento no mundo na atualidade[2]. Na América Latina, os países que mais ofereceram abrigo, em ordem decrescente, foram a Colômbia, com 2,48 milhões de pessoas, o Peru, com 1,52 milhões, o Equador, com 502,2 mil, o Chile, com 444,4 mil e o Brasil, com 449,7 mil venezuelanos acolhidos.

No cotidiano brasileiro, quando se recebe uma visita inesperada, é comum dizer que onde comem três, comem quatro ou quantos vierem. Mesmo com tantas dificuldades de ordem política, social ou econômica, a América Latina tem demonstrado bastante solidariedade com os venezuelanos. Junto com as agências internacionais ligadas a ONU, os países têm se organizado para administrar a crise com alguma altivez. A Operação Acolhida, organizada em 2018 pelo Governo Federal, é a principal resposta do Brasil frente a essa conjuntura. Trata-se de uma força-tarefa humanitária que tem como estratégias controlar as fronteiras e receber os migrantes e refugiados venezuelanos, dar-lhes abrigo e promover sua interiorização.

A Medida Provisória n. 820/2018 convertida na Lei n. 13.684/2018 pelo Congresso Nacional, estabelece as ações de assistência emergencial para acolhimento dessas pessoas. Essa operação é presidida pela Casa Civil da Presidência e reúne diversas instituições governamentais, internacionais e da sociedade civil. Dentre elas, podemos citar o Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate a Fome (MDS), as Forças Armadas, a Defensoria Pública, o Ministério do Trabalho, , o Tribunal de Justiça de Roraima, a Agência das Nações Unidas para Migrações (OIM), Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), ONU Mulheres e Comitê Internacional da Cruz Vermelha[3].

A estratégia principal da Operação Acolhida é atuar pela interiorização dos migrantes, que pode se dar de quatro maneiras: institucional, quando os venezuelanos saem de abrigos em Roraima para abrigos de outras cidades parceiras; reunificação familiar, em que os migrantes vão para casa de familiares que residem regularmente no País; reunião social, em que os migrantes se reúnem com pessoas com quem possuem vínculos de amizade ou afetividade, desde que tenham condição de garantir o sustento e a moradia; e a vaga de emprego sinalizada, em que empresas brasileiras de qualquer região do país recebem os migrantes com oportunidade de trabalho, sendo que, neste caso, as equipes da Operação Acolhida verificam os antecedentes das empresas para prevenir situações de exploração laboral.

Complementarmente, na linha de operação da Plataforma R4V, foram organizados setores em países da América Latina e do Caribe, que atuam na busca pelo acesso aos direitos e serviços básicos da comunidade acolhida. Entre eles, está o setor de WASH, que trata dos eixos de abastecimento de água, esgotamento sanitário, gerenciamento de resíduos sólidos, promoção de higiene e limpeza, incluindo estratégias de educação. No Brasil, é co-liderado pelo UNICEF e Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais – ADRA. As ações desenvolvidas acontecem tanto em nível local, com um grupo de trabalho atuando em Roraima (GT WASH), como em nível nacional, a partir de uma Coordenação de WASH que articula com parceiros governamentais e não governamentais, sobretudo nos estados da Amazônia e Pará, que recebem maior número de migrantes, após Roraima[4].

Apesar desses esforços, o acesso a água e ao saneamento para migrantes e refugiados preocupa tanto quanto para o conjunto da população brasileira. Na escala em que se apresenta, este fenômeno da migração pode somar os venezuelanos ao conjunto de brasileiras e brasileiros que sofrem violações de direitos humanos a água e ao saneamento, seja pela falta de acesso físico ou econômico, à falta de informação adequada, entre outros pontos que são constantemente denunciados. Essa relação é evidenciada no relatório de análise das necessidades de refugiados e migrantes da Venezuela no Brasil, realizado em 2022 pela Plataforma R4V, ao demonstrar que os domicílios venezuelanos, sem infraestruturas adequadas de WASH, estão concentrados nas regiões Norte e Nordeste, coincidindo assim com os maiores déficits de serviços de saneamento básico no Brasil.

Vejamos as condições de saneamento nos dois principais territórios que recebem os venezuelanos: Pacaraima e Boa Vista. A primeira é uma cidade de fronteira com a Venezuela, ao norte de Roraima, que em 2013 tinha algo em torno de 11 mil habitantes, mas que em 2022, o Censo do IBGE contou 19.305, um crescimento de 69% em 10 anos. A cidade tem serviço de abastecimento de água prestado pela CAER (Companhia de Água e Esgoto de Roraima), mas não conta com serviço público de coleta e tratamento de esgotos. O índice de atendimento de abastecimento de água é de 43%, concentrado, portanto, na área urbana da cidade. O mesmo índice representa a cobertura de serviços de coleta de lixo. Boa Vista, por sua vez, tinha cerca de 310 mil habitantes em 2013, e hoje tem 413 mil pessoas, um crescimento populacional de 34% em dez anos. Os serviços de água e esgoto são geridos pela CAER, sendo o índice de atendimento total de água igual a 97%, coleta de esgoto de 95% e tratamento de 100% dos esgotos coletados. O lixo é coletado em toda a área urbana, resultando num índice total de atendimento do serviço de 97% da população da cidade. Os dados de cobertura de serviços foram extraídos do Sistema Nacional de Informações de Saneamento (SNIS) para o ano de 2021. Não há dúvida de que esse crescimento populacional se deve a chegada dos migrantes ao País, e se Boa Vista teve condição institucional de absorver os impactos disso, o mesmo não se pode afirmar sobre Pacaraima.

O que motivou o governo brasileiro a implementar a Operação Acolhida foi justamente a quantidade de pessoas que, da noite para o dia, passaram a ocupar as ruas nas duas cidades. Os abrigos montados nem sempre garantem o acolhimento de todos e, muitas vezes, os que entram nos abrigos não aceitam ficar por muito tempo. As carpas (cabanas da ACNUR instaladas como moradia provisória) são inadequadas para o calor equatorial de Roraima, fazendo com que as pessoas não suportem permanecer nelas durante o dia. Disto resulta que muitas pessoas preferem ir morar em ocupações espontâneas nas imediações da cidade, sejam em terras públicas, seja pela compra de lotes irregulares – nada de novo quando se trata de solução habitacional em um País onde a terra é mercadoria cara e concentrada em poucas mãos. O fato é que as pessoas constroem suas casas, formam núcleos habitacionais, com demandas imediatas por água, esgoto e energia elétrica.

Nesse contexto, a formação do GT WASH foi importante para impulsionar as relações intersetoriais em prol de melhores condições de saneamento e higiene à população venezuelana. Destaca-se a articulação com a Defensoria Pública Estadual, CAER e Prefeitura de Boa Vista para realizar a ligação de água das moradias localizadas nas ocupações espontâneas, sem que fossem imputadas penalidades por desobediência à legislação de uso e ocupação do solo. Quando existe alguma restrição quanto a possibilidade de instalação de infraestrutura nesses assentamentos, a CAER pede análise e parecer do Conselho Municipal da Cidade, que pode se manifestar favoravelmente pelo atendimento, resguardando direitos e deveres dos envolvidos. Num acordo de âmbito judicial, a CAER se comprometeu a atender as famílias, incluindo-as nas políticas de tarifa social e ainda, treinando seus funcionários para superar as barreiras linguísticas no acesso aos serviços. Em conjunto com GT WASH, publicou a cartilha “Preguntas y Respuestas Sobre el Servicio de Água em Roraima[5], abordando os direitos e deveres do usuário. Trata-se de uma lição muito interessante de como instituições democráticas podem e devem agir quando se trata de risco de violação de direitos humanos à água, saneamento e moradia.

Mas isso tudo não garante a realização plena dos direitos humanos a água e ao saneamento. Como não há segurança jurídica de posse da terra, todo o esforço institucional realizado pode ser em vão. Apesar dos acordos judiciais realizados, as ocupações espontâneas estão ameaçadas por uma ação de reintegração de posse movida por agentes públicos. Vale refletir sobre o quanto esse tipo de recurso jurídico ameaça o marco internacional dos direitos humanos, já que questiona deliberadamente o direito a moradia e ameaça, a reboque, o direito à água e ao saneamento. Como pode haver um Estado com duas caras: uma que dá, e outra que tira?

Quanto à Operação Acolhida em Boa Vista, os abrigos que recebem os venezuelanos ocupam uma área de 277,6 mil m² e atende os migrantes de duas formas: o alojamento, onde as pessoas fazem o pernoite, e o abrigo, com característica de permanência das famílias. O serviço educacional é informal, organizado pelo UNICEF e a ONG Pirilampos, que cuida das crianças. As carpas não têm energia elétrica para atividades cotidianas. Como são equipamentos inadequados para o calor da região, foi disponibilizada, uma placa fotovoltaica e uma tomada para ligar ventilador no seu interior, o que não é suficiente para dar condições ambientais adequadas. As equipes disponibilizadas pelas Forças Armadas atuam na segurança hídrica dos abrigos, fornecendo água por caminhão pipa, coletando amostras de água, de forma complementar à vigilância em saúde, que são enviadas aos laboratórios de saúde pública para realização de análises; garantindo ações de infraestruturas de saneamento, como a limpeza e substituição de filtros dos bebedouros, limpeza regular das fossas sépticas e a manutenção das instalações hidráulicas dos banheiros, que são coletivos.

A CAER tem condição de oferecer serviços de qualidade para os abrigos, porém, para que isso aconteça, é preciso destitui-lo do caráter provisório e reprojetá-lo como um campus público, com instalações de caráter permanente. Trata-se, portanto, de um enorme empreendimento que abriga pessoas, requer água potável, gera esgotos domésticos que necessitam ser tratados (e a CAER tem um excelente sistema de tratamento de esgotos), e gera enorme quantidade de  resíduos sólidos. Se a priori, a solução de alimentação das pessoas se dá pela oferta de marmitas, já se pode ter a ideia da enormidade de resíduos sendo destinados a aterros sanitários diariamente para citar um único exemplo.

Fica claro que as equipes que atuam na Operação Acolhida têm cuidado em garantir que o acesso a água e ao saneamento tenha qualidade. Entretanto, o caráter provisório merece ser revisto, já que está em vigor há 5 anos e não tem perspectiva de acabar.

A autora Beatriz de Melo Silva[6] observou que a intenção da Operação Acolhida passa primeiro pela necessidade de gerir sujeitos indesejáveis, apesar do discurso do cuidado e do zelo. Mas depois de alguns anos, e com o envolvimento de pessoas que se preocupam com o tipo de trabalho que vem sendo desenvolvido, fica patente a necessária mudança de paradigma e o re-planejamento para que o espaço seja mais adequado à estadia humana, e cause menos impactos ambientais.

[1] https://www.r4v.info/en/refugeeandmigrants

[2] https://www.acnur.org/portugues/venezuela/

[3] https://www.gov.br/mds/pt-br/acoes-e-programas/operacao-acolhida

[4] https://www.r4v.info/pt/document/rmrp-20232024-plano-regional-e-capitulo-brasil

[5] https://www.unicef.org/brazil/media/25351/file/preguntas-y-respuestas-sobre-el-servicio-de-agua-en-roraima.pdf

[6] Silva, B.M. Abrigos da Operação Acolhida em Roraima: a gestão humanitária e a dicotomia permanência-provisoriedade. Dissertação [Mestrado]. São Carlos : UFSCar, 2023. 135p.

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