Em contribuição ao debate do tema, a partir do artigo A norma brasileira de qualidade da água para consumo humano em revisão – um convite à reflexão sob a ótica dos direitos , de autoria do professor Rafael Kopschitz Xavier Bastos
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A NORMA BRASILEIRA DE QUALIDADE DA ÁGUA: É POSSÍVEL RADICALIZAR A ÓTICA DOS DIREITOS HUMANOS? UMA PROVOCAÇÃO
Léo Heller [1]
A proposta de revisão da atual norma brasileira de qualidade da água para consumo humano, atualmente em discussão, visivelmente vem colocar mais uma camada de avanços positivos em relação a versões anteriores. Trata-se de um processo histórico de acumulações progressivas e de crescente amadurecimento da comunidade técnico-científica brasileira voltada para o tema. Além disso, nesta versão, têm sido apontados possíveis alinhamentos com o marco dos direitos humanos, o que é muito bem-vindo.
A atual versão traz um importante alargamento em relação a versões anteriores da norma, sobretudo daquelas vigentes nas três últimas décadas do séc. XX, sobretudo ao incorporar a dimensão da vigilância e de introduzir um olhar mais preventivo e articulado com a noção de risco à saúde, advindo da qualidade da água para consumo humano. Lendo a norma a partir do marco dos direitos humanos, percebe-se que, para além de abordar o elemento da qualidade do conteúdo normativo do direito à água, ela avança ainda na acessibilidade física e na disponibilidade, bem como em princípios como o direito à informação e a responsabilização (accountability).
O Prof. Rafael Bastos, em um generoso “convite à reflexão sob a ótica dos direitos”, desenvolve um interessante exercício em seu texto publicado no site do ONDAS (https://ondasbrasil.org/revisao-a-norma-de-potabilidade-de-agua-um-convite-a-reflexao-sob-a-otica-dos-direitos/), articulando a proposta de revisão com o marco legal do direito humano à água. Há que se reconhecer, no entanto, que se trata de um exercício “a posteriori”. Ou seja, este marco não se constituiu no marco teórico-conceitual que guiou a revisão da norma, mas antes foi utilizado para uma espécie de releitura da norma. Cabe uma especulação: o que seria diferente na proposta, caso tivesse sido guiada por esse marco teórico-conceitual?
Traçando um cenário contra-factual, neste breve texto, faço algumas provocações sobre o espaço que ainda há para radicalizar o alinhamento da nossa norma de qualidade da água com o marco dos direitos humanos. Não as estou apresentando como uma proposta de emendas para o texto, dado que talvez os elementos trazidos se situem em um nível de utopia não compatível com os atuais tempos (muito bem traçados por Érika Martins também no site do Ondas, em https://ondasbrasil.org/a-portaria-de-potabilidade-da-agua-insistencia-em-avancar-em-meio-ao-retrocesso/). Mas talvez sirvam como uma breve agenda para um outro futuro. Talvez o futuro do “novo normal”, que a pandemia do COVID-19 trará e que tanto nos alertou para a necessidade de novas abordagens quanto à organização da sociedade e do modelo econômico.
Para isto, proponho uma inflexão inicial: no lugar de enxergar a norma a partir do olhar para os riscos à saúde humana decorrentes estritamente da ingestão da água, abordá-la de forma mais alargada, como os riscos à saúde humana decorrentes do acesso à água. O que pode soar como uma diferença semântica, pode na verdade trazer diferenças relevantes para o enquadramento da norma. Exemplifico este olhar com alguns elementos do direito humano à água, que podem ser conectados a uma visão de (qualidade da) água para consumo humano:
- Aceitabilidade
Nas formulações sobre o direito à água, aceitabilidade é abordada de forma mais abrangente que a dimensão da rejeição da água pelas suas características físicas, o que é tratado pela norma com base em alguns parâmetros organolépticos. Aceitabilidade refere-se também ao nível em que uma dada população adere a uma certa solução tecnológica. Esta é uma dimensão importante da aceitabilidade, uma vez que não é raro a implementação de aparatos tecnológicos que são rejeitados pelas comunidades. É bastante conhecida no Brasil, por exemplo, a implementação de soluções para abastecimento de água em terras indígenas que foram rejeitadas pela população, a qual continua a utilizar suas fontes tradicionais. Portanto, a não aceitabilidade das soluções tecnológicas pode conduzir ao uso de fontes inseguras de água, impondo riscos à saúde. Pergunta-se: caberia à norma estabelecer que as políticas públicas de saneamento devem considerar que as soluções tecnológicas sejam apropriadas aos valores socioculturais das comunidades que recebem as intervenções? Deveria a vigilância ser ouvida neste particular?
- Acessibilidade financeira
Acessibilidade financeira é um requisito crucial do direito humano à água, e é frequentemente negligenciado pelos prestadores de serviço. Acesso à água não acessível financeiramente pode trazer algumas consequências nefastas: o consumo de quantidade insuficiente de água; o uso de fontes alternativas de água, em geral mais inseguras; o comprometimento da disponibilidade financeira para outras necessidades sociais, como alimentação e cuidado à saúde. As três consequências apresentam forte relação com a saúde humana. Portanto, da mesma forma, cabem algumas questões. Caberia à norma determinar que os prestadores de serviço devem resguardar a acessibilidade financeira dos usuários? Deveria a norma indicar a responsabilidade do Estado em proteger os usuários com menor capacidade financeira em seu acesso à água, seja de sistemas de abastecimento ou de soluções alternativas? Caberia à vigilância algum papel neste aspecto? Caberia à norma incluir os reguladores como mais um agente na cadeia de responsabilização sobre a água para consumo humano, uma vez que frequentemente são eles que detêm o papel de estabelecer tarifas? (maior desenvolvimento do tema da acessibilidade financeira pode ser encontrado no site do ONDAS: https://ondasbrasil.org/wp-content/uploads/2019/08/QUARTO-Relat%C3%B3rio-Direitos-humanos-%C3%A0-%C3%A1gua-pot%C3%A1vel-e-ao-esgotamento-sanit%C3%A1rio.pdf)
- Desconexões
Há um consenso de que o corte de água por incapacidade de pagamento das contas é enquadrado como uma violação dos direitos humanos, o que até o momento tem sido ignorado pela legislação brasileira e pelos reguladores dos serviços. A desconexão pode trazer consequências semelhantes, mas ainda mais agudas, do que a limitada acessibilidade financeira: consumo de quantidade insuficiente de água; uso de formas alternativas de obtenção de água, como “gatos”; uso de fontes alternativas de água, muitas vezes de baixa qualidade. Perguntas semelhantes às anteriores procedem. Caberia à norma determinar que os prestadores de serviço não estão autorizados a desconectar usuários de baixa capacidade financeira? Caberia à vigilância algum papel neste aspecto? Caberia à norma incluir os reguladores na cadeia de responsabilização sobre a água para consumo humano, uma vez que estes têm o mandato de regular as desconexões?
- Sustentabilidade
Como um princípio do direito humano à água, a sustentabilidade nos coloca a pensar no acesso à água a partir de uma linha de tempo e não apenas na situação presente. Medidas adotadas hoje pelos agentes responsáveis pelo saneamento têm consequências futuras. E muitas vezes não se podem sanar essas consequências quando estas ocorrem, mas apenas preventivamente. Se um prestador de serviço não planeja o uso de mananciais com qualidade de água adequada e quantidade de água suficiente ao longo do tempo; se não investe em estações de tratamento adequadas para potabilizar a água; se permite que a infraestrutura deteriore, sem assegurar sua manutenção no momento adequado; isto resulta em uma situação futura que demanda recursos e prazo para restabelecer a segurança do abastecimento. A discussão sobre a sustentabilidade tem também relação com o tipo de prestador de serviço. Há muitos relatos de que, em situações de concessão de serviços, sobretudo para empresas orientadas pelo lucro, quando a vigência dos contratos se aproxima do final, a empresa concessionária reluta em realizar investimentos, pela insegurança com a renovação e pelo “risco financeiro”. Ou seja, a concessionária deixa um legado de insustentabilidade para o poder público que a sucede. Portanto, também procedem perguntas sobre a consideração deste princípio na norma. Caberia a ela estabelecer que o prestador tem a obrigação de planejar sua infraestrutura para que não haja prejuízo ao abastecimento no futuro, tanto em relação à qualidade quanto à quantidade de água? Qual seria o papel da vigilância nesse aspecto? E dos reguladores?
- Igualdade e não discriminação
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seus artigos 1º e 2º, estabelece que todos os seres humanos nascem iguais em dignidade e direitos e que todas e todos devem usufruir dos direitos sem discriminação de qualquer natureza. Igualdade e não-discriminação é o princípio basilar dos direitos humanos. Ele implica, para as políticas públicas, que haja tratamento diferenciado entre grupos que vivem em distintos níveis de vulnerabilidade. Aplica-se aqui a famosa máxima: “tratar diferente os diferentes”. Embora o texto da revisão faça menção a grupos indígenas e a comunidades tradicionais, aparentemente a norma enxerga toda a população brasileira como um conjunto uniforme, sem consideração sobre os riscos diferenciados que afetam os distintos grupos populacionais de um dos países mais desiguais do planeta. Em termos simples, o risco de efeitos na saúde, a partir da água, em uma pessoa desnutrida, com outras co-morbidades e sujeita a outros fatores de risco seriam equivalentes ao de uma pessoa sadia de classe média? Pode-se argumentar que a linha de base para o estabelecimento do padrão de potabilidade parte da situação mais desfavorável de exposição, e que isto é uma racionalidade internacionalmente adotada. Mas mesmo assim, penso que é uma discussão relevante. Por exemplo, a norma não deveria estabelecer um plano de amostragem mais intenso – maior número de pontos amostrais, maior frequência, mais parâmetros – em vilas e favelas do que em áreas com urbanização tradicional? A presença de água contaminada nesses espaços não poderia ter um efeito muito mais devastador do que em outros? Apesar das dificuldades de acesso, a amostragem em áreas indígenas, áreas com outros povos tradicionais e áreas rurais não deveria merecer prioridade especial? Em locais onde trabalhadores rurais aplicam agrotóxicos, e portanto estão a eles expostos por diferentes outras vias, não deveria haver vigilância e controle mais estritos sobre as substâncias utilizadas? Caberia pensar em VMPs mais estritos? O mesmo se aplicaria a trabalhadores industriais expostos a substâncias químicas em seus locais de trabalho? Não pretendo ser exaustivo nos exemplos de situações que merecem consideração, mas penso que olhar para a água para consumo humano a partir do princípio da igualdade abre possibilidades muito interessantes para a proteção da população em maior vulnerabilidade.
Como anunciado inicialmente tratam-se de algumas provocações, que a leitura da proposta de revisão da norma e o debate suscitado pelo Ondas me instigaram. Deixo para os leitores julgarem sua pertinência e, se acharem relevante, prosseguirem com o debate.
[1] Léo Heller – Relator especial da ONU para os Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário e conselheiro de Orientação do ONDAS
LEIA:
➡️ A norma brasileira de qualidade da água para consumo humano em revisão – um convite à reflexão sob a ótica dos direitos – Artigo Rafael Kopschitz Xavier Bastos
➡️ Apresentação: Revisão do Anexo Portaria de Consolidação nº 5/2017 (antiga Portaria nº 2914 / 2011), que trata dos procedimentos de Controle e de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano – um convite à reflexão sob a ótica dos direitos
➡️ Tabela comparativa entre as portarias: Portaria 1469 /2000 (518 / 2004)/PRC nº 5/2017 Anexo XX(Portaria 2914 / 2011) Minuta 2020,elaborada pelo Professor Rafael
CONTRIBUIÇÕES AO DEBATE
➡️ Revisão da Norma de Potabilidade: inclusões com vista aos direitos humanos – Alex M. S. Aguiar
➡️ Potabilidade: por um Anexo XX da Portaria mais inclusivo – Elias Haddad Filho
➡️ Fortalecer a vigilância da qualidade da água e melhorar a transparência sobre sua qualidade da água distribuída é contribuir para garantir o direito humano à água – Silvano Silvério da Costa
➡️ A portaria de potabilidade da água: insistência em avançar em meio ao retrocesso – Érika Martins