Em seu mais recente livro “Gestão Hídrica: Governança dos Bens Comuns”, o professor e pesquisador em ecologia política, Arlindo Rodrigues, alerta para a forma equivocada com que nos relacionamos com a Natureza, mais especificamente com a Água. Por outro lado, destaca que podemos transformar essa relação de uma forma solidária.
Para Arlindo Rodrigues, que também é pesquisador do Núcleo do Estudo do Futuro (NEF) da PUC/SP e participante do FAMA, WaterLat e CLACSO – GT Integración Regional, Fronteras y Globalización, além de conceito, bem comum é uma orientação ética, uma forma de viver a nossa relação com a Natureza, com outros seres e, principalmente, entre nós, humanidade.
Confira a a entrevista exclusiva concedida por Arlindo Rodrigues ao ONDAS.
ONDAS: Conte-nos um pouco sobre a publicação.
Arlindo Rodrigues: O livro foi fruto de uma pesquisa de pós-doutorado cujo tema chave foi a Água como bem comum. Foi uma experiência muito rica. Trabalhar esse tema com a orientação de Ladislau Dowbor sem dúvida foi muito enriquecedor.
Eu desejo dialogar sobre esse tema com a sociedade, por isso acredito que o livro seja apenas um primeiro passo. Acho que ele traz uma contribuição socioambiental importante, que é denunciar a forma equivocada com que nos relacionamos com a Natureza, no caso a Água. E também anunciar que podemos transformar essa relação de uma forma solidária, entre nós e os demais seres que compartilham conosco esse pequeno planeta azul.
Esse livro foi fruto de uma coletividade, pois os diálogos e a militância com os companheiros do FAMA, da WaterLat e da PUC/SP, principalmente o Dowbor, ajudaram a construir a ideia coerente com os nossos ideais. Mas escrever é apenas uma etapa. Ainda contei com a colaboração da minha esposa na revisão textual, da minha filha na identificação de termos que deveriam ser alterados para melhor compreensão dos “não-acadêmicos” e da equipe da Editora Origem. Tudo isso foi fundamental para a conclusão do livro. Esse livro é prova de que o conhecimento é uma produção coletiva.
ONDAS: Quais foram as principais dificuldades e desafios no processo de construção do livro?
Arlindo Rodrigues: Escrever é uma ação que envolve um grande frio na barriga, pois temos a dúvida se o que estamos escrevendo chegará como gostaríamos ao leitor. Mas esse processo, que contou com o apoio da família e dos companheiros, me deu confiança no fruto do trabalho. Uma grande barreira é publicar e divulgar. Eu ofereci o livro a diversas editoras, porém a resposta foi sempre que a “crise” impede investir.
ONDAS: Em que medida o livro pode contribuir com o debate sobre a questão da garantia da água e do saneamento como direitos fundamentais?
Arlindo Rodrigues: Acredito que o livro seja uma oportunidade no despertar da sociedade para a relevância e os riscos envolvidos na alienação que temos em relação à Natureza. Um dos pontos centrais é que a qualidade das condições da Natureza de nos fornecer condições à vida depende, cada vez mais, da qualidade dos resíduos que lhe devolvemos, por exemplo, a qualidade da Água que captamos da Natureza depende diretamente da qualidade das nossas condições sanitárias na devolução dessa mesma Água após o uso.
E essas condições são opções políticas, pois a governança, forma de decidir “o que” e “como” fazer, define essas condições. O debate que flui no livro é “quem domina essa governança?”, pois por um lado há as corporações com as suas soluções mágicas, que o Ladislau nomeia de “contos de fada”, mas na verdade encaram a Natureza como uma mercadoria útil para geração de lucro; e, por outro lado, há a sociedade civil organizada afirmando que a Natureza não está à venda, pois não é mercadoria, e, sim, um bem comum a ser compartilhado para o nosso bem viver. Afinal, como dizíamos em Brasília: “Água é direito e não Mercadoria”.
ONDAS: Desenvolva um pouco o conceito de bem comum.
Arlindo Rodrigues: Há dois conceitos de “bem comum” que gosto muito. O primeiro, de Ostrom: “um recurso compartilhado por um grupo de pessoas”. Essa definição complementa muito bem outra, de um companheiro da Colômbia: “Água não é de ninguém e, ao mesmo tempo, de responsabilidade de todos”. Além de conceito, bem comum é uma orientação ética, uma forma de viver a nossa relação com a Natureza, com outros seres e principalmente, entre nós, humanidade. Hoje, vivemos sob a ditadura das corporações, em que tudo é mercadoria, inclusive a vida, o tempo, o prazer. Gostaria de ressaltar que, além das condições da Natureza com seus frutos, solo, água etc., o nosso tempo para dialogar, fazer arte, nosso conhecimento devem ser entendidos como bem comum, vias para a construção de uma outra lógica de sociedade, socialmente justa, ambientalmente integrada e solidária.
ONDAS: Você participou ativamente da construção do FAMA em 2018. Qual o legado que você considera que o FAMA deixou?
Arlindo Rodrigues: O FAMA foi uma experiência muito rica pela diversidade de pessoas e histórias envolvidas. Foi um encontro de muitos saberes. Ter contato com experiências das lutas de todo o Brasil e de muitos lugares do exterior foi maravilhoso.
Dentre as ricas rodas de diálogo das quais participei, houve uma com vários companheiros da América Latina. Nela, estavam presentes as experiências do México, Colômbia, Chile e Bolívia, inclusive com a presença de Oscar Olivera, uma liderança da Guerra da Água de Cochabamba. Certamente, esse Fórum foi um encontro de encontros. Compartilho com o sentimento do Edson Aparecido Silva sobre a relevância intelectual e espiritual do FAMA, pois todos saímos dele maiores.
Mas um legado que destaco foi a inclusão das pautas ambientais nos movimentos sociais, o entendimento de que as trabalhadoras e os trabalhadores, além das condições sociais justas, necessitam de um ambiente saudável, que seu direito ao acesso à Água, na quantidade e qualidade adequadas à sua vida, não pode ser violado e que não é aceitável termos, em pleno século XXI, milhões de mortes por doenças causadas pela falta de tratamento da Água.
ONDAS: O FAMA São Paulo, do qual você também participa, vai retomar suas atividades? Qual a agenda principal local e nacional a ser enfrentada pelo FAMA?
Arlindo Rodrigues: Nós retomamos em fevereiro com muitos desafios. Infelizmente, a nossa urna eleitoral deu a vitória à necropolítica e, nessa proposta, o ecocídio faz parte de seu perfil. Temos diversos embates imediatos e destaco o enfrentamento da proposta do novo Marco Regulatório, que traz no seu corpo a privatização do serviço sanitário brasileiro ao desregular e estrangular as condições da gestão local gerir sua infraestrutura sanitária. Outro desafio imediato é resistir à fúria privatista das corporações, principalmente nas rentáveis SABESP, CEDAE e COPASA. Acreditamos que devemos buscar a melhoria da eficiência dos serviços dessas empresas e sua privatização não atenderá essa melhoria. A nossa expectativa é o agravamento do racismo ambiental presente no país.
ONDAS: No processo de construção do FAMA, foram constituídos os “Comitês Locais”. Qual a importância da retomada das atividades desses comitês?
Arlindo Rodrigues: Fundamental, pois, como qualquer outro movimento social, o FAMA deve ser descentralizado e integrado nas suas lutas locais. Há grandes desafios nacionais, porém há também os locais, tão urgentes e importantes quanto.
Outro ponto de destaque sãos as articulações entre os diversos comitês do FAMA e destes com os demais movimentos sociais. Essa articulação está no DNA do FAMA, pois fomos gerados e, hoje, somos estruturados por uma grande conexão de diversos movimentos sociais.
ONDAS: Estamos sabendo que vai à Itália para um encontro promovido pelo Vaticano e vai falar pelo FAMA. Conte-nos um pouco sobre isso.
Arlindo Rodrigues: Estou na ABEFC – Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara e temos dialogado, desde o ano passado, sobre as transformações propostas pelo Papa Francisco. Em novembro de 2019, fizemos um encontro muito rico na PUC-SP e, aproveitando o encontro do Papa com os jovens nesse ano, participaremos de atividades paralelas em Assis e Perugia na Itália. Estarei em uma mesa debatendo o tema “Mudanças climáticas e a Água como Bem Comum”. Em virtude do surto do coronavírus, o encontro foi adiado para novembro desse ano. Mas, estarei lá representando as ideias e ideais do FAMA.
ONDAS: A criação do ONDAS é fruto de uma articulação ocorrida no FAMA. Qual sua expectativa sobre o ONDAS?
Arlindo Rodrigues: A minha expectativa é de que o ONDAS seja um grande espaço de diálogo e consiga fazer intervenções concretas na construção de uma outra lógica de sociedade, uma humanidade que seja regida pelo sentimento do compartilhamento e solidariedade.
Hoje, o ONDAS já se destaca pela luta contra a fúria das Corporações sobre nossas riquezas naturais, principalmente a Água. Assim, acredito que esse espaço de luta avance cada vez mais na construção da sociedade dos bens comuns.
ONDAS: Para encerrar, diga como as pessoas podem adquirir seu livro.
Arlindo Rodrigues: Infelizmente, a editora não consegue dar o apoio à venda, pois o livro não acompanha a linha editorial dela. Eu tenho vendido pessoalmente e, se alguém desejar, basta enviar o e-mail para [email protected].
Mas ele também pode baixado no meu blog ou no site do ONDAS, neste link: https://ondasbrasil.org/biblioteca/livros/ .
Eu tenho oferecido o livro a algumas editoras, mas ainda não consegui uma parceria para fazer uma melhor logística de venda.