O RETORNO DA PRESTAÇÃO PÚBLICA EM LYON
Vice-presidente da Metrópole de Lyon, região integrada por 59 municípios com 1,4 milhões de habitantes, Anne Grosperrin, eleita pela coalizão Os Verdes (Les Verts), é também a presidente da empresa pública Eau Publique du Grand Lyon que assumiu a prestação dos serviços de abastecimento de água nos municípios da Região Metropolitana de Lyon em 1° de janeiro de 2023. O retorno à gestão pública foi definido pelo Conselho Metropolitano em 2020 e a nova empresa pública começou a operar esse ano.
A entrevista foi realizada por Ana Lucia Britto, Conselheira do ONDAS e professora da UFRJ, em 07 de julho de 2023.
Mais informações sobre a volta à gestão pública da água na França nesse artigo publicado pelo ONDAS.
Ana Britto: Eau Publique du Grand Lyon assumiu em 1° de janeiro último a prestação do serviço público de abastecimento de água ao fim de uma concessão de 30 anos à Veolia, poderoso grupo multinacional com origem na Compagnie Générale des Eaux. Em que condições a Veolia devolveu a infraestrutura de água da região ao poder público? Restaram pendências a serem equacionadas pelo Poder Judiciário? Há litígios na justiça?
Anne Grosperrin: Então, na verdade, não se trata de uma concessão de 30 anos. A Veolia teve delegações de serviços públicos, o que é chamado de “délégations de services publics” na França, por 30 anos, mas a última DSP (delegação de serviço público) foi renegociada entre 2012 e 2015. Ela começou em 2015 e terminou em 31 de dezembro de 2022. Portanto, foi uma DSP de 7 anos, o que na França é chamado de contrato de segunda geração, que é muito mais rigoroso, onde introduzimos, na época, muitos indicadores de desempenho do serviço. Havia cerca de cem indicadores incluídos na DSP para controle da delegação. E havia um representante naquela época, chamado Gérard Clès, que defendia uma visão mais favorável à gestão pública do serviço de água potável, e que trabalhou no sentido de facilitar, ao final da delegação de serviços públicos, a transição de volta para a gestão pública, embora sempre seja evidentemente um processo complexo.
No contrato da DSP havia cláusulas prevendo o término do contrato e várias obrigações para o contratante privado, para que isso pudesse ocorrer nas melhores condições possíveis. A Veolia foi obrigada a cumprir o contrato durante todo o período, em termos de desempenho, o que resultou em muitas melhorias no serviço, incluindo os indicadores de perdas. A partir dos indicadores de desempenho passamos de 75% de taxa de desempenho no início do contrato para 86% no final do contrato. Portanto, houve um grande esforço na renovação das redes e na redução de vazamentos, entre outros. Também havia muitas exigências em relação ao atendimento aos usuários etc.
E assim, tivemos um contrato de delegação de serviços públicos que foi bastante satisfatório, pois era muito rigoroso, e as cláusulas permitiram negociar um protocolo de encerramento de contrato com a Veolia, que complementou as cláusulas já previstas na delegação de serviços públicos. Esse protocolo de encerramento que estava previsto na DSP nos permitiu impor várias restrições e pedidos de informações ao contratante privado, que foi obrigado a fornecê-las
No entanto, não foi exatamente idílico. É claro, a Veolia resistiu, e hesitou em nos fornecer informações importantes, alegando que nem tudo estava necessariamente no protocolo. É difícil identificar com antecedência todas as informações de que vamos precisar, e as datas em que vamos precisar delas para sermos mais rigorosos com o contratante.
Por outro lado, tínhamos uma base sólida, e em termos de infraestruturas, tínhamos um controle significativo também, pois todas eram de propriedade pública, ou seja, tudo pertencia à metrópole. Sabíamos que, no final do contrato, o contratante seria reembolsado pelos investimentos realizados e não amortizados, mas sabíamos que tudo voltaria a ser propriedade da metrópole.
Havia muitos equipamentos que eram conhecidos pelos nossos serviços e, para realizar essa transição para a gestão pública, foi implementada uma arquitetura de projeto complexa.
Tomamos a decisão no início do mandato, quando fomos eleitos em 2020, quando fui encarregada desse projeto, porque justamente eu sabia como trabalhar em modo de projeto, e sabíamos que em 1 de janeiro de 2023, precisaríamos efetuar a transição operacional para a gestão pública.
Estabelecemos uma arquitetura de projeto complexa com a equipe de pré-configuração, onde havia oito processos diferentes. Identificamos o processo de recursos humanos, que resultou em negociações com as organizações representativas dos funcionários da Veolia, que agora fazem parte da administração pública, pois havia a possibilidade de uma transferência de pessoal, mas era necessário negociar as condições dessa transferência. Alguns funcionários mais antigos já haviam vivenciado a gestão pública 30 anos antes. Eles estão realmente em uma posição de se aposentarem agora, mas é como um retorno mas um retorno para um novo futuro.
Ana Britto: Qual foi a importância da campanha pela prestação pública do serviço de abastecimento de água realizada pelo coletivo Eau Bien Commun Lyon Métropole – EBCLM na decisão de não fazer nova concessão a prestador privado?
Anne Grosperrin: Foi importante no sentido de que os assuntos em que há fortes mobilizações cidadãs acabam sempre rendendo resultados e encontram ressonância na esfera política, sobretudo quando há representantes eleitos que compartilham da mesma visão e dos mesmos projetos.
Os ecologistas[1], por sua natureza, em sua visão, em seu projeto, na maneira como enxergam a sociedade, defendem a importância da gestão pública e, sobretudo, da gestão coletiva dos nossos recursos essenciais, porque a água é um patrimônio vital comum. Portanto, no que diz respeito aos bens comuns, os ecologistas já há muito tempo reconhecem a necessidade de uma gestão coletiva em benefício público comum e a inclusão dos cidadãos em seus projetos.
Portanto, houve um encontro entre a luta pelo bem comum, e uma equipe política que estava disposta a adotá-la em seu projeto. Mas as mobilizações deles foram decisivas. É importante sentir que há cidadãos mobilizados.
Hoje em dia, há cidadãos mobilizados, por exemplo, em relação à questão da poluição por PFAS (substâncias per e polifluoroalquil), que foi objeto de um escândalo nos Estados Unidos.[2]
Na França, estamos vivenciando a mesma situação, especialmente na área metropolitana de Lyon. As mobilizações cidadãs têm um papel crucial. Se os cidadãos não se mobilizam, não exercem pressão suficiente sobre o cenário político para que ocorram mudanças na sociedade. Portanto, a mobilização cidadã também é necessária.
Ana Britto: No que diz respeito à participação como se dá a governança da Região Metropolitana de Lyon? Existe um conselho eleito?
Anne Grosperrin: O Conselho foi implementado. Toda a estrutura jurídica e institucional foi planejada desde o início. A nova metrópole foi estabelecida após a reforma da estrutura territorial decorrente da Lei Le Nôtre, em janeiro de 2015. Nós, que fomos eleitos em 2020, somos os primeiros representantes eleitos diretamente pelo voto popular para o conselho da metrópole.
Ana Britto: É verdade que a concessionária privada de Lyon praticava a segunda tarifa de água mais cara da França? As tarifas atualmente praticadas pelo prestador público são mais baratas?
Anne Grosperrin: Não, de forma alguma. Não estava entre as mais caras. Lyon estava na média, até mesmo na faixa mais baixa, em termos de preço da água. Mesmo antes da pressão pública. O que aconteceu foi que durante a renegociação entre 2012 e 2015, na renegociação dos contratos de serviços públicos, houve uma exigência de redução nas tarifas. As tarifas foram reduzidas em 24%. Isso é bastante. Porque, na verdade, eles estavam lucrando muito, às custas da comunidade.
Nesse momento, a metrópole exigiu uma redução nas tarifas de água. Houve um período em que realmente estava caro. Hoje, estamos mais na faixa média para mais baixa.
Ana Britto: Como estão sendo tratados os usuários domiciliares inadimplentes por insuficiência de rendimento familiar?
Anne Grosperrin: Quanto à questão da inadimplência, para aqueles que não conseguem pagar, temos uma política social completa, que já estava em vigor, antes, durante a DSP,
Mas percebemos que não é o suficiente porque há muita subutilização. A conta de água não é, de forma alguma, a mais alta, a mais significativa para as famílias em dificuldades.
Frequentemente, não é nisso que se concentram os problemas das famílias; energia, aluguel são questões mais importantes. Na verdade, há muita subutilização, pessoas que poderiam ter direito à ajuda, mas não demandam. Tínhamos assim um fundo, o que chamamos de fundo social de água, que não estava sendo utilizado. Portanto, acumulamos todas essas ajudas não utilizadas para implementar ainda em 2022, mesmo antes de estarmos no regime público. várias iniciativas experimentais para garantir o direito à água para todas e todos. E especialmente em condições mais difíceis, ou seja, fornecemos água aos acampamentos de pessoas sem-teto, para as ocupações. Estamos agora tentando expandir o acesso à água em espaços públicos. Estamos conduzindo experimentos para acesso à higiene por meio de chuveiros públicos. E especialmente o acesso a lavanderias com fichas distribuídas pelas organizações sociais.
Implementamos diversas iniciativas para garantir o acesso à água para todos já que a água foi, como você sabe, declarada como um direito fundamental e universal do ser humano há cerca de 12 anos. Esse direito à água ainda não é efetivo mesmo em um país como o nosso.
Na metrópole de Lyon, existem 3.000 pessoas que vivem nas ruas permanentemente, hospedadas por terceiros, vivendo em seus carros ou em acampamentos. Há um trabalho real a ser feito no que diz respeito ao direito.
Ana Britto: Quais são as principais ameaças ligadas às alterações climáticas no abastecimento de água na região de Lyon? Aumentar a resiliência do abastecimento de água da Grande Lyon é uma das prioridades da Água Pública da Grande Lyon?
Anne Grosperrin: Sim mas é importante deixar claras as razões que conduziram à prestação pública. As principais razões são fundamentalmente políticas, filosóficas e ecológicas. A primeira é um bem comum que não pode ser gerido sem ser a partir do interesse geral; é a prestação pública que pode garantir essa gestão segundo os princípios do interesse geral. Portanto, o propósito de uma prestação pública tem, dimensões sociais, dimensões ecológicas e dimensões também econômicas. Não é o mesmo propósito de uma prestação privada. Não temos como objetivo ter lucro.
Na dimensão social, estamos desde os anos 80 em um contexto em que a água vem sendo tratada como mercadoria. Você mencionou o que está acontecendo agora no Brasil. De fato, além de mercantilizada a água hoje está até mesmo financeirizada na Austrália ou na Califórnia e listada nas bolsas de valores. Então para nós era realmente essencial participar do movimento de remunicipalização e criar as condições efetivamente para essa gestão orientada pelo interesse geral.
A segunda dimensão é que estamos em um período de grande crise da água, do ponto de vista planetário e mesmo na França. Esse momento de crise que exige um domínio completo e por inteiro do ciclo da água, um domínio técnico da gestão de recursos hídricos e a sua preservação. E para dominá-lo você tem que internalizá-lo dentro da gestão pública, dentro das estruturas municipais e metropolitanas que haviam perdido suas competências, delegando a gestão ao privado. Há portanto uma retomada desse controle técnico da gestão da água enquanto bem comum pelo público. Essa é um dimensão muito importante. O fato de assumir as missões que haviam sido confiadas ao delegatário a exploração/produção e distribuição da água. Hoje essas missões são confiadas à estrutura de gestão metropolitana, assim como a missão de preservação do recurso a montante, com toda uma dimensão trabalhar em áreas de captação, incluindo os agricultores nesse território. E a missão de promover o direito à água e, finalmente a gestão democrática do bem comum. A gestão da água era muito tecnicizada, quando havia a delegação da prestação ao privado, que tinha de uma perspectiva extrativista da água; hoje nós queremos que os cidadãos se reapropriem da dimensão política que envolve a gestão de um bem comum, em uma perspectiva democrática dessa gestão.
A gestão pública permite integrar os usuários, incluindo-os no Conselho de Administração. Nos desejamos que esse número fosse de quatro usuários. Para que esses usuários tivessem legitimidade na sua designação nós desenvolvemos uma política de sensibilização e em seguida de concertação sobre as questões relacionadas à gestão da água para em seguida chegar a uma reflexão sobre a governança. Foi criada uma assembleia dos usuários da água, que tem 91 membros. Foi um processo voltado para 2022.
Nós trabalhamos com toda uma equipe, sociólogos, artistas para mobilizar imaginários, para que as pessoas pudessem se projetar em um futuro desejável consumindo menos água, o que nós entendemos como um consumo comedido, e como organizar coletivamente esse projeto. A partir daí surgiu a assembleia de usuários da água. Essa assembleia assumiu o debate de vários tema estratégicos e em 2023 o tema é a tarifação solidária e ambientalmente sustentável da água. Hoje todos estão dentro do mesmo modelo tarifário; nós nos encaminhamos para um outro modelo de tarifas diferenciada em função dos usos. Isso porque temos entre nossos princípios que um metro cúbico de água é diferenciado em função do uso que é dado a essa água.
Ana Britto: Você poderia explicar a estrutura atual da gestão e as perspectivas futuras e prioridades da gestão pública na metrópole de Lyon.
Anne Grosperrin: A Eau Publique de Lyon é uma estrutura dedicado apenas aos serviços de água potável. Mas internamente, no âmbito da gestão metropolitana, nós fazemos também a gestão de parte dos serviços de esgotamento, em gestão pública, há bastante tempo, e ela se faz hoje de forma integrada à gestão da água. Na região metropolitana existe há muito tempo algumas estações de tratamento de esgotos que são geridas pelo privado, e uma grande parte, incluindo a maior ETE da região metropolitana, Pierre Benit, que é gerenciada pelos serviço metropolitano. Nós não queríamos fazer as duas coisas (água e esgotamento) ao mesmo tempo porque o desafio era muito grande, e queríamos ter sucesso primeiro na gestão pública dos serviços de água.
Isso não significa que não temos a intenção de implementar uma gestão pública também do esgotamento. Mas realmente fazemos o trabalho em duas etapas. Nós estamos assumindo pequenas estações de esgotamento, cujo contratos de exploração privada estão terminando. Ainda restam duas grandes estações de tratamento de esgotos que também projetamos assumir, mas em um prazo mais longo, não menos de cinco anos. Estamos, portanto, no processo de estabelecimento das condições para também retomar a gestão completa do esgotamento sanitário e ter uma visão e um controle verdadeiramente global do ciclo da água no âmbito da gestão metropolitana. E não é somente no abastecimento de água e esgotamento sanitário. A gestão metropolitana também é responsável do manejo de águas pluviais, que é um tema muito importante.
Nós estamos no contexto de uma mudança de paradigma, dentro de uma questão central para a adaptação das cidades às mudanças climáticas. Essa competência, gestão do meio aquático e proteção contra as inundações foi transferida para a região metropolitana em 2018, dentro dessa nova concepção. A gestão do meio aquático traz uma visão da preservação dos recursos hídricos, com renaturalização de rios, preservação e recuperação, das zonas úmidas, atenção à qualidade da água e micro poluentes. Existe todos um trabalho sendo desenvolvido pela metrópole, no âmbito de uma estratégia para gestão do meio aquático e proteção contra as inundações.
Nós tínhamos começado a trabalhar em determinados rios onde realmente havia uma emergência e agora existe um plano de ação para os próximos 5 anos, com uma estratégia a ser votada e consagrada em lei. Nós tentamos assim ter uma visão global do ciclo da água, assumida pela metrópole e integrada na estrutura de gestão.
No que diz respeito à resiliência voltada para o abastecimento de água nós trabalhamos na preservação das áreas de captação e nas fontes alternativas. Nas áreas de captação temos todo um trabalho com os agricultores sobre a preservação da qualidade da água e sobre um uso sustentável, o que induz a uma série de práticas desses cidadãos.
Ana Britto: Você explicou a defesa dos Verdes da água como direito humano e bem comum. Você saberia os outros partidos políticos na França têm em seu programa político a noção da água como um direito humano e da água como um bem comum?
Anne Grosperrin: O partido Europa Ecologia/Os Verdes tem esse tema como central no seu projeto. Mas não é uma exclusividade nossa. Na França existem grandes prestadores públicos que foram criados em aglomerações urbanas de direita. Eu penso em Nice Metrópole, com a qual nós trabalhamos. O vice-presidente da metrópole, prefeito da cidade de Saint-Martin-Vésubie, está convencido da pertinência da gestão pública da água e também Christian Estrosi, prefeito de Nice de um partido de centro-direita.
Eu diria que é um tema transpartidário, sobretudo quando se sabe que globalmente e na França a direita pende para a gestão privada. Nós vimos a reação da oposição quando votamos o projeto de uma gestão pública. Havia uma hostilidade muito forte. Sabemos que a empresa Veolia tinha laços com os, desde as décadas precedentes. Contudo existe um certo número de municípios que não são de esquerda e que escolheram a gestão pública, face a pertinência desse modelo que coaduna com o interesse geral. Portanto, não podemos dizer que a opção da gestão pública é exclusiva do projeto dos Ecologistas. Outras cidades governadas pelo Partido Socialista também fizeram essa escolha. Assistimos na França um retorno à gestão pública.
Assista à entrevista aqui: Entrevista com Anne Grosperrin
Saiba mais sobre a Eau Publique du GrandLyon.
Leia artigo do ONDAS sobre a volta à gestão pública da água na França
[1] Partido político Europe Écologie – Les Verts
[2] PFAS podem ser encontrados em uma ampla quantidade de produtos de consumo, como roupas impermeáveis e tapetes resistentes a manchas, ceras para o piso, panelas antiaderentes, embalagens a prova de gordura, fio dental e alguns cosméticos. Eles também são usados em espumas de combate a incêndios para apagar incêndios de combustível. Pessoas podem estar expostas a estas substâncias através do contato direto com produtos, ou pelo ar que respiram, ou pelos alimentos que comem. Elas também podem estar expostas através da água potável. milhões de americanos atualmente estão expostos a água potável contaminada com PFAS, resultado de substâncias químicas liberadas no ambiente por campos de treinamento de bombeiros, áreas industriais e zonas de tratamento de lixo.