ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Estruturas de Regionalização na Lei nº 14.026: Qual o Futuro para os Serviços Municipais de Saneamento Básico? – autor: Amael Notini Moreira Bahia

Amael Notini Moreira Bahia[1]

O processo de regionalização preconizado pela Lei n° 14.026/2020, tendo por objetivo a gestão e a prestação dos serviços de saneamento básico, trouxe profundas preocupações acerca da metodologia de planejamento e implementação das estruturas regionalizadas e de seus impactos sobre a autonomia municipal. Diante dos atuais movimentos de regionalização, as circunstâncias que incitam essas preocupações demonstram-se ainda mais gravosas.

Dessa forma, o presente artigo busca abordar sinteticamente as estruturas de regionalização previstas na Lei n° 14.026/2020 e regulamentadas pelo Decreto n° 10.588/2020, as consequências para a titularidade municipal sobre os serviços públicos de saneamento básico e as potenciais estratégias para a implementação de um processo de regionalização democrático, transparente e condizente com o preceito constitucional da autonomia municipal.

As Estruturas de Regionalização na Lei n° 14.026/2020

De início, cabe ressaltar que a Lei n° 14.026/2020 prevê os seguintes modelos de estruturas de regionalização de serviços públicos de saneamento básico: (i) região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião; (ii) unidade regional de saneamento básico; e (iii) bloco de referência. Em seu art. 50, VII, a Lei n° 11.445/2007 alterada pelo art. 7º da Lei nº 14.026/2020, atribui grande importância à formação desses modelos de estruturação na medida em que condiciona a alocação de recursos públicos federais à regionalização. Cada hipótese prevista pela nova lei possui diferentes perspectivas de implementação que impactam diretamente na governança a ser estabelecida para gerir os serviços de saneamento básico

Região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião

No primeiro caso, pertinente à região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião, trata-se de estrutura regionalizada com previsão no art. 25, §3°, da Constituição Federal, de adesão compulsória por parte dos municípios. Nesse caso, os estados possuem a faculdade de instituir, mediante lei complementar, regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.

Antes mesmo da adoção da Lei n° 14.026/2020, o STF já havia consolidado entendimento acerca do exercício da titularidade sobre os serviços de saneamento básico no contexto da integração compulsória e sua relação com a autonomia municipal. Como se verifica no teor da ADI n° 1.842/RJ, o interesse comum e a compulsoriedade da integração metropolitana não são incompatíveis com a autonomia municipal. Na realidade, na hipótese da instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, nos termos do art. 25, § 3°, da Constituição Federal, a função pública de saneamento básico extrapola o interesse local e passa a ter natureza de interesse comum. Assim, o exercício da titularidade municipal sobre os serviços públicos de saneamento básico deve ser exercido de forma colegiada, sem que o poder decisório esteja concentrado em um único ente.

Em complementação a esse entendimento, a decisão do STF na ADI n° 2.077/BA assinala que a instituição das estruturas previstas no art. 25, §3°, da Constituição Federal, não legitima a transferência dos serviços públicos de interesse metropolitano ao estado, dado que se trata de competência conferida diretamente pela Constituição aos municípios. Assim, como elucidado no Ag. Reg. na Recl. 37.500/BA, a atuação municipal pode ser condicionada à autorização do órgão colegiado interfederativo, a depender da governança e competências a ele atribuídas por sua lei de criação.

Importante notar que a Lei n°14.026/2020, além de referenciar o art. 25, §3°, da Constituição Federal, determina que as regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões devem ser instituídas observando as diretrizes estabelecidas pelo Estatuto da Metrópole (Lei n° 13.089/2015). O Estatuto da Metrópole define a região metropolitana, em seu art. 2, VII, como uma unidade regional instituída pelos estados, mediante lei complementar, constituída por agrupamento de municípios limítrofes para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum. Por sua vez, o Estatuto da Metrópole também define aglomeração urbana em seu art. 2, I, sendo esta uma unidade territorial urbana constituída pelo agrupamento de dois ou mais municípios limítrofes, caracterizada por complementaridade funcional e integração das dinâmicas geográficas, ambientais, políticas e socioeconômicas. Apesar de o art. 1, §1°, I, do Estatuto da Metrópole, estender a aplicação desse diploma normativo às microrregiões, a lei não apresenta a definição dessa modalidade de estrutura regionalizada.

É importante notar que essas classificações também possuem reflexo na legislação estadual, de forma que os elementos de cada uma dessas estruturas variam conforme o contexto regional. A título de exemplificação, a Constituição do Estado de São Paulo apresenta as seguintes definições para essas estruturas regionalizadas:

(i) região metropolitana: agrupamento de municípios limítrofes que assuma destacada expressão nacional, em razão de elevada densidade demográfica, significativa conurbação e de funções urbanas e regionais com alto grau de diversidade, especialização e integração socioeconômica, exigindo planejamento integrado e ação conjunta permanente dos entes públicos nela atuantes;

(ii) aglomeração urbana: agrupamento de municípios limítrofes que apresente relação de integração funcional de natureza econômico-social e urbanização contínua entre dois ou mais municípios ou manifesta tendência nesse sentido, que exija planejamento integrado e recomende ação coordenada dos entes públicos nela atuantes;

(iii) microrregião: agrupamento de municípios limítrofes que apresente, entre si, relações de interação funcional de natureza físico-territorial, econômico-social e administrativa, exigindo planejamento integrado com vistas a criar condições adequadas para o desenvolvimento e integração regional.

O Estatuto da Metrópole estabelece diretrizes gerais que se aplicam às regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e, no que couber, às microrregiões. Estas são instituídas pelos estados com fundamento em funções públicas de interesse comum com características predominantemente urbanas. Em seu art. 3, §2°, o Estatuto da Metrópole define que a criação dessas estruturas regionalizadas deve ser precedida de estudos técnicos e audiências públicas que envolvam todos os municípios pertencentes à unidade territorial. O Estatuto da Metrópole também delimita, em termos gerais, como deve ser desenhada a governança interfederativa desses arranjos regionais, que deverá ser promovida nos termos da respectiva lei complementar estadual de criação.

Nesse sentido, o art. 5 do Estatuto da Metrópole determina que as leis estaduais de criação de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, deverão definir, no mínimo, os municípios que integram a unidade territorial urbana, as funções públicas de interesse comum que justificam sua criação, a conformação da estrutura de governança interfederativa e os meios de controle social da organização. Ressalta-se que, no processo de elaboração dessa lei, deverão ser explicitados os critérios técnicos adotados para a definição dos municípios integrantes da unidade territorial urbana e das funções públicas de interesse comum.

No que tange à estrutura da governança interfederativa, o art. 8 do Estatuto da Metrópole apresenta o seguinte modelo básico: (i) instância executiva composta pelos representantes do Poder Executivo dos entes federativos integrantes das unidades territoriais urbanas; (ii) instância colegiada deliberativa com representação da sociedade civil; (iii) organização pública com funções técnico-consultivas; e (iv) sistema integrado de alocação de recursos e de prestação de contas. Assim, conforme estabelece o art. 7-A do Estatuto da Metrópole, no exercício da governança das funções de interesse comum, os integrantes da unidade territorial deverão compartilhar a tomada de decisão relativa ao planejamento, à estruturação econômico-financeira e à operação e gestão de serviços. Com fulcro no mesmo dispositivo, devem compartilhar as responsabilidades na gestão de projetos relacionados às funções públicas de interesse comum.

Por fim, no que se refere à essas estruturas regionalizadas, o Decreto n° 10.588/2020 determina que será considerada cumprida a exigência de regionalização para fins de alocação de recursos públicos federais com a aprovação da lei complementar correspondente, dada a compulsoriedade da integração municipal.

Unidade regional de saneamento básico

Quanto à unidade regional de saneamento básico, segundo a Lei 14.026/2020, trata-se de estrutura instituída pelos estados por meio de lei ordinária e constituída pelo agrupamento de municípios não necessariamente limítrofes. Dentre os objetivos de sua instituição estão o atendimento às exigências de higiene e saúde pública e o alcance da viabilidade econômico-financeira dos serviços. Esse instituto se utiliza do art. 241 da Constituição Federal, apesar das controvérsias quanto à adesão voluntária dos municípios, sem a necessidade de lei autorizativa municipal, à estrutura estabelecida pelo estado em lei ordinária.

O art. 8, §2°, da Lei 11.445/2007, introduzido pela Lei n° 14.026/2020, determina que as unidades regionais de saneamento básico devem apresentar sustentabilidade econômico-financeira e contemplar, preferencialmente, pelo menos uma região metropolitana. O Decreto n° 10.588/2020 apresenta exigência similar em seu art. 2, §6°, ao determinar que as unidades regionais de saneamento básico conterão, no mínimo, uma região metropolitana, facultada a sua integração pelos titulares dos serviços públicos de saneamento básico.

Ademais, o Decreto n° 10.588/2020 estabelece em seu art. 2, §1°, II, que, para fins de alocação de recursos públicos federais, será considerada cumprida a exigência de regionalização com a declaração formal, firmada pelo prefeito, de adesão aos termos de governança estabelecidos na lei ordinária. Ou seja, nesse caso, diferentemente da região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião, a adesão do município é voluntária. Caso não ocorra a adesão municipal, haverá limitação no acesso a recursos federais.

Por outro lado, como no caso da região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião, a estruturação da governança interfederativa da unidade regional de saneamento básico deve seguir, no que couber, as diretrizes do Estatuto da Metrópole. Nesse sentido, a lei ordinária de criação da unidade regional de saneamento básico deve conter os municípios que integram a unidade territorial urbana, as funções públicas de interesse comum que justificam sua criação, a conformação da estrutura de governança interfederativa e os meios de controle social da organização. Ademais, a estrutura da governança interfederativa deverá conter uma instância executiva, uma instância colegiada deliberativa, uma organização pública com funções técnico-consultivas e um sistema integrado de alocação de recursos e de prestação de contas. Por fim, os integrantes da unidade regional devem compartilhar a tomada de decisão e as responsabilidades decorrentes das funções públicas de interesse comum.

Bloco de referência

Por fim, em relação ao bloco de referência, trata-se de agrupamento de municípios não necessariamente limítrofes, que será estabelecido pela União de forma subsidiária aos estados que não tenham consolidado a regionalização no prazo de um ano da publicação da Lei n° 14.026/2020, que ocorrerá em 15/06/2021. Embora estabelecidos pela União, os blocos de referência serão formalmente criados por meio de gestão associada voluntária dos titulares. Inclusive, nos termos do Decreto n° 10.588/2020, a assinatura de convênio de cooperação ou a aprovação de consórcio público pelo ente federativo são os marcos necessários para cumprimento do requisito de regionalização.

Observa-se, assim, que apesar de a Lei n° 14.026/2020 ter classificado o bloco de referência como uma das modalidades de estrutura de regionalização, o estabelecimento pela União de referências territoriais não cumpre os requisitos para alocação de recursos federais. Dessa forma, verifica-se que a estrutura regionalizada, na realidade, é aquela criada pelos municípios por meio de assinatura de convênio de cooperação ou a aprovação de consórcio público. Nesse sentido, os blocos de referência estabelecidos pela União representam mera diretiva territorial para o agrupamento voluntário de municípios em uma estrutura regionalizada.

Assim, como pode ser observado, o bloco de referência possui respaldo constitucional no art. 241 da Constituição Federal, sendo criado formalmente conforme os parâmetros da Lei n° 11.107/2005. Dentre as estruturas de regionalização, o bloco de referência é o que possibilita maior influência dos municípios na delimitação da governança interfederativa a ser implementada no âmbito regional, considerando que caberá a estes entes federados a criação do consórcio ou convênio de cooperação destinados à tomada de decisão em âmbito regional.

Regionalização por serviços no Decreto n° 10.588/2020

Em seu art. 2, §8°, o Decreto n° 10.588/2020 determina que, na estruturação de regionalização, os componentes de abastecimento de água potável e de esgotamento sanitário constarão, preferencialmente, do mesmo mecanismo de regionalização. Nesse sentido, os serviços de limpeza pública, de manejo de resíduos sólidos urbanos ou de drenagem e manejo de águas pluviais poderão ser prestados na mesma unidade de regionalização de água e esgotamento sanitário ou em unidades de configurações distintas para cada serviço.

Importante notar que o Decreto n° 10.588/2020 também possibilita, em seu art. 2, §2°, que os consórcios públicos para abastecimento de água e esgotamento sanitário existentes sejam reconhecidos como unidades regionais ou blocos de referência, desde que não abranjam municípios integrantes de regiões metropolitanas e que não prejudiquem a viabilidade econômico-financeira da universalização e da regionalização da parcela residual de municípios do estado. Ainda que prejudiquem a viabilidade econômico-financeira, os estados e a União observarão preferencialmente, o arranjo de municípios consorciados ao definir as unidades de regionalização, sem prejuízo da inclusão de novos municípios.

Em sentido similar, o art. 2, §11°, do Decreto n° 10.588/2020, estabelece que, para serviços de limpeza pública, de manejo de resíduos sólidos urbanos ou de drenagem urbana e manejo de águas pluviais, a exigência de regionalização poderá ser atendida por meio de consórcios públicos ou por meio de gestão associada decorrente de acordo de cooperação, desde que observados os objetivos de geração de ganhos de escala, de garantia da universalização e da viabilidade técnica e econômico-financeira dos serviços, com uniformização do planejamento, da regulação e da fiscalização.

Nos termos do art. 50, VIII, da Lei 11.445/2007, incluído pela Lei n° 14.026/2020, no caso de unidade regional de saneamento básico, blocos de referência e gestão associada, os municípios possuem 180 dias contados da instituição estrutura de governança correspondente para formalizar sua adesão. Na ausência de adesão, os municípios não serão contemplados pelos recursos públicos federais previstos nesse dispositivo.

Conclusão

Os elementos apresentados permitem a derivação de uma série de conclusões quanto ao processo de regionalização atualmente em curso. De início, resta evidente que, a formação de estruturas de regionalização pode impactar diretamente a prestação de serviços de saneamento básico em diversos municípios, especialmente a depender da governança estabelecida para o órgão interfederativo. A preponderância do estado no processo decisório e a necessidade de autorização colegiada para decisões que anteriormente eram tomadas a nível local podem trazer grandes consequências para os serviços municipais de saneamento básico.

Adicionalmente, na ausência da formação de estruturas de regionalização ou adesão a estas, os municípios atualmente externos às estruturas regionalizadas consolidadas restarão excluídos do acesso a recursos públicos federais. Assim, para que esses municípios não sejam prejudicados, é importante que haja um constante acompanhamento do processo de regionalização, de forma a manter as pautas e necessidades locais presentes no planejamento estadual, ou, eventualmente, federal.

Em suma, vislumbra-se uma forte necessidade de transparência e planejamento na delimitação das estruturas regionalizadas, bem como na implementação das respectivas formas de governança interfederativa. Esse processo clama por uma forte participação popular e de agentes públicos municipais, de forma a garantir que a autonomia municipal e os serviços municipais de saneamento básico sejam resguardados no desenrolar da regionalização proposta pela Lei n° 14.026/2020.

[1] Advogado. Mestrando e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais

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