O ONDAS publica a tradução de “The Politics of Water – It’s In Your Sink” de Rajan Menon, colaborador regular da TomDispatch. O artigo mostra porque que o direito humano à água nos Estados Unidos não está assegurado, fazendo um balanço dos problemas do abastecimento de água. O autor descreve vários casos de não conformidade aos padrões de potabilidade e os desafios para renovar infraestruturas envelhecidas em face da falta de prioridade para financiar as ações necessárias. Informa também sobre os lobbies das empresas para dificultar a regulamentação de contaminantes na água potável.
Publicado originalmente em 11/11/2021 pela TomDispatch. Traduzido por Marcos Montenegro e revisado por Alex Aguiar para o ONDAS.
Palavras chaves: direito à água, água potável, padrão de potabilidade, contaminação da água potável, perdas de água, contaminantes da água, chumbo na água, Estados Unidos.
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EUA: A POLÍTICA DA ÁGUA NA SUA PIA
Pense a respeito: o que nós não conhecemos vai nos machucar. E a água – sim, a água – é exatamente um exemplo disso. Mesmo em um momento de disputas políticas tão acirradas, você pode imaginar que, em um país rico como os Estados Unidos, ainda seria possível concordar que água limpa não deve ser apenas um direito, mas algo já conquistado. Bem, sejam bem-vindos ao Estados Unidos 2021.
Quando se trata de abastecimento de água básico, isso dificilmente parece estranho. Afinal, em 2015, nosso governo, juntamente com outros membros das Nações Unidas, abraçou os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, o sexto dos quais é o acesso universal à água potável segura. Apesar do modesto progresso global – 71% da população mundial não tinha então satisfeita essa simples necessidade, e hoje “apenas” 61% – quase 900 milhões de pessoas ainda não a têm. Naturalmente, a esmagadora maioria delas vive nos países mais pobres deste planeta.
Os Estados Unidos, entretanto, têm a maior economia do mundo, a quinta maior renda per capita, e é uma potência tecnológica. Como, então, a Sociedade Americana de Engenheiros Civis (ASCE) poderia ter dado à nossa infraestrutura de água (tubulações, estações de bombeamento, reservatórios e instalações de tratamento e reciclagem) uma chocante nota C em seu “boletim” de 2021? Como explicar por que o Índice de Desempenho Ambiental da Universidade de Yale classificou os EUA apenas em 26º lugar no mundo quando se trata da qualidade de sua água potável e do esgotamento sanitário?
Pior ainda, dois milhões de americanos ainda não têm água corrente e instalações prediais de água. Os Nativos americanos são 19 vezes mais propensos a carecer dessa amenidade rudimentar do que os brancos; os Latinos e Afro-americanos, duas vezes mais propensos. Em média, os americanos 310 litros de água diariamente; Navajos, 27 litros – ou o equivalente a cerca de cinco descargas de um banheiro. Além disso, muitos Nativos americanos devem dirigir milhas para buscar água fresca, fazendo da lavagem regular das mãos – uma precaução básica durante a pandemia de Covid-19 – apenas mais uma dificuldade.
Água “segura”
Washington e Filadélfia são apenas duas das muitas cidades americanas cujos sistemas de distribuição de água, alguns deles de madeira, que contam com tubos que antecedem a Guerra Civil. Naturalmente, o tempo tem cobrado seu preço. A Agência de Proteção Ambiental (EPA) informa que as redes de água, especialmente as antigas, rompem 240.000 vezes por ano, enquanto “trilhões de galões” de água potável no valor de 2,6 bilhões de dólares são perdidos das tubulações com vazamentos, e “bilhões de galões de esgoto bruto” poluem a água de superfície que fornece 61% de nosso abastecimento. O reparo de tubos danificados, que rompem à taxa de um a cada dois minutos em nível nacional, já custou quase 70 bilhões de dólares desde 2000.
Os EUA têm 3,52 milhões de quilômetros de tubulações de água, que têm, em média, 45 anos de idade. Em 2015, a EPA estimou em US$ 473 bilhões o recurso necessário para inspecionar um sistema de tubulações tão envelhecido, ou 23,7 bilhões de dólares anuais durante 20 anos – em outras palavras, recurso que em hipótese alguma pode ser considerado uma ninharia. Ainda assim, comparado com a forma como o Congresso distribui dinheiro para o exército dos EUA gastar nas suas intermináveis guerras perdidas e na eterna estocagem de armamento, não poderia ser mais modesto. Afinal, o último pedido de orçamento do Pentágono foi de US$ 715 bilhões, ao qual o Comitê de Serviços Armados da Câmara acrescentou US$ 25,5 bilhões, não solicitados, assim como sua contraparte do Senado. Os falcões do orçamento do Congresso nunca se queixam de nossos gastos militares, mesmo que estes excedam o total combinado dos nove seguintes países: China, Índia, Reino Unido, Rússia, França, Alemanha, Arábia Saudita, Japão e Coréia do Sul. Então, o que são 23,7 bilhões de dólares anuais para renovar um sistema de água antediluviano? Isso não deveria ser um problema, certo?
No entanto, é. A participação do governo federal no investimento total relativo à atualização da infraestrutura hídrica despencou de quase dois terços em 1977 para menos de um décimo desse valor até 2019. Com os governos estaduais e locais sob crescente pressão financeira, o déficit de financiamento para modernizar a infraestrutura de água poderia chegar a 434 bilhões de dólares em 2029.
Considerando os locais onde o sistema de água americano já é completamente deficitário, alguém poderia contrapor que não é grande coisa apenas dois milhões de pessoas não receberem água encanada em suas casas em um país de 333 milhões. Mas no país mais rico do mundo? É mesmo? E a falta de acesso fácil à água dificilmente é o único problema. Um número substancial de americanos está bebendo (e cozinhando com) água contaminada. Uma investigação de 2017 descobriu que 63 milhões deles tinham feito isso pelo menos uma vez durante os 10 anos anteriores, ou seja quase um quinto da população.
Esta descoberta não foi uma exceção. O Conselho de Defesa dos Recursos Naturais (NRDC) descobriu que, “somente em 2015, houve mais de 80.000 violações da Lei de Água Potável Segura (Safe Water Drinking Act) por sistemas de abastecimento de água” que atendiam a quase 77 milhões de pessoas. E do número total de violações, 12.000, referentes a prestadores atendendo 27 milhões de pessoas, eram relacionadas a alterações prejudiciais à saúde (ao invés de relativas a falhas de controle ou ao informe de infrações). Há mais. Um estudo publicado no Proceedings of the National Academy of Sciences concluiu que 21 milhões de consumidores receberam água que não atendia às normas federais; e o Time informou que 30 milhões receberam água que não atendia às normas federais em 2019.
Para além da saga de Flint
Ocasionalmente, histórias sobre água potável insegura são manchetes, como aconteceu com Flint, Michigan. Outrora uma cidade próspera, Flint foi atingida por uma onda de desindustrialização pós-1970 no Meio-Oeste e agora apresenta uma taxa de pobreza de quase 39% (e 54% de sua população é negra). Em 2013, diante de seu enorme déficit orçamentário, uma comissão designada pelo governador elaborou uma medida de redução de custos. A captação de água da cidade seria transferida para o rio Flint, enquanto se aguardava a construção de novas adutoras a partir do Lago Huron. Esse rio, entretanto, há muito tempo estava contaminado por resíduos de fábricas, usinas de papel e frigoríficos situados ao longo de sua margem, bem como por esgoto não tratado.
Os moradores começaram a reclamar que sua água cheirava mal e apresentava sabor ruim, mas eram regularmente informados de que era segura. Os testes, no entanto, revelaram níveis de chumbo que ultrapassavam em muito o máximo da EPA porque a água não havia sido tratada com aditivos anticorrosivos para evitar a contaminação. (Na verdade, não há um nível “seguro” para o chumbo, um metal tóxico, mas a EPA exige medidas corretivas se 10% das amostras de água apresentarem concentrações superiores a 15 ppb, ou partes por bilhão). A água de Flint também continha trihalometano, um carcinógeno, assim como as bactérias perigosas E. coli e legionella. Um escândalo se seguiu.
Flint, como acabou se revelando, não estava só. O NRDC relatou este ano que “dezenas de cidades apresentam níveis perigosos de chumbo em suspensão” em suas águas. Outro de seus estudos concluiu que a água potável de 186 milhões de pessoas (56% dos americanos) tinha mais de uma parte por bilhão de chumbo, o máximo recomendado pela Academia Americana de Pediatria, e que 61 milhões de americanos usavam água engarrafada de fontes que excediam o limite máximo de 5 ppb da Food and Drug Administration, enquanto os níveis de chumbo na água de outros sete milhões excediam o limite de 15 ppb da EPA, um patamar para a obrigatoriedade de adoção de medidas corretivas.
Em 1986, o Congresso proibiu o uso futuro de tubos que não fossem “livres de chumbo“, mas não exigiu a substituição dos tubos já em uso. Ainda hoje, cerca de 12 milhões de tubos de chumbo ainda servem às residências deste país e os cientistas geralmente consideram o limite de chumbo da EPA muito frouxo e seus requisitos de testes e normas de relatórios muito permissivos. Talvez você não fique surpreso ao saber que os governos locais e as empresas de serviços públicos têm se oposto regularmente a regulamentações mais rígidas para a substituição de tubos de chumbo.
A eliminação total dos tubos de água com chumbo no país custaria até 50 bilhões de dólares. Embora isso seja muito dinheiro, dificilmente é inviável. Na verdade, o Plano Americano de Emprego (American Jobs Plan) propôs US$ 45 bilhões para essa tarefa, embora a lei da infraestrutura bipartidária reduzisse o valor para US$ 15 bilhões – mais uma vez ilustrando que a mesquinhez se aplica a ameaças ao bem-estar cotidiano dos americanos, mas não à nossa concepção militarizada de segurança nacional.
Outros Contaminantes
O chumbo não é o único contaminante em nossa água potável.
– Em comunidades agrícolas no Vale Central da Califórnia e no Vale San Joaquin, quantidades crescentes de urânio – associadas a danos renais e a maior risco de câncer – apareceram na água potável local, incluindo a de poços privados, que não são regulados pela EPA, mas são utilizados por trabalhadores migrantes. Uma investigação da Associated Press de 2015 descobriu que um quarto dos lares do Vale de San Joaquin, na Califórnia, estava usando água potável de poços privados contendo “quantidades perigosas de urânio”. Além disso, um em cada dez dos sistemas de água comunitários do Vale continha níveis de urânio que ultrapassavam os limites federais e estaduais – e não há razão para acreditar que isso tenha mudado nos últimos seis anos.
– O aumento no uso de fertilizantes — cinco vezes desde a década de 1950 — para aumentar o rendimento das colheitas e o seu transporte por meio do escoamento superficial aumentaram os níveis de nitrato na água potável. Níveis elevados de nitratos, que foram ligados a várias formas de câncer, defeitos de nascença e doenças da tireoide, foram encontrados em 4.000 sistemas públicos de água em 10 estados, abastecendo 45 milhões de pessoas, especialmente no Oeste e Centro-Oeste norte-americano. Em mais da metade desses lugares, a contaminação parece estar aumentando. O nível máximo de concentração de nitratos na água admitido pela EPA é de 10 miligramas por litro, mas estudos revelam que o risco de defeitos de nascença e de câncer aumenta mesmo quando as pessoas consomem água contendo metade dessa quantidade.
– O arsênico, um conhecido carcinógeno, é outro perigo. Um estudo da Universidade de Columbia (NY) de 2020 verificou que, embora a concentração média de arsênico no suprimento de água em todo o país tenha caído 10% entre 2006 e 2011, as concentrações que excedem o máximo de 0,01 miligramas por litro da EPA eram muito mais prováveis em comunidades menores que utilizam águas subterrâneas e são desproporcionalmente hispânicas. Um relatório da U.S. Geological Survey, que se concentrou nos poços que fornecem água potável, observou que havia “níveis perigosamente altos de arsênico, expondo potencialmente 2,1 milhões de pessoas” a riscos à saúde em mais da metade de todos os estados norte-americanos.
– As substâncias Per- e Polyfluoroalkyl (PFAS) são utilizadas em numerosos produtos, incluindo panelas antiaderentes, caixas de pizza, espuma para combate a incêndios e vestuário à prova d’água. Entretanto, elas permanecem sem regulamentação da EPA, apesar de estarem associadas a uma série de riscos à saúde. Pior ainda, estes “produtos químicos persistentes” levam milhares de anos para se decomporem. Os cientistas estimam que a água da torneira de 200 milhões de americanos contém concentrações de PFAS que os colocam em risco.
As más notícias para 2021
Desde o início do século XIX, foram feitos enormes progressos no sentido de fornecer aos americanos água limpa e abundante. E doenças transmitidas pela água, como a cólera, que ainda mata cerca de 100.000 pessoas no mundo todo a cada ano, e a febre tifóide, que estima-se matar até 161,000, foram essencialmente eliminadas no país (embora ainda existam 16 milhões de casos anuais de gastroenterite aguda associados à ingestão de água contaminada). Portanto, sim, a água nos Estados Unidos é geralmente adequada para beber, mas dados os recursos econômicos e tecnológicos deste país, é escandaloso que os problemas que permanecem não tenham sido pelo menos substancialmente mitigados.
Para entender tal fracasso, basta considerar nossa política, que, na esteira das recentes eleições, parece só estar se agravando a cada dia.
Desde os anos 80, a esfera pública tem sido dominada por uma narrativa que caracteriza quase tudo o que o governo faz, exceto os gastos indiscriminados com as forças armadas dos EUA, como sendo financeiramente imprudente, indevido e contraproducente. Em vez de criar uma mensagem convincente para persuadir os americanos de que muitos benefícios públicos valiosos, desde as faculdades públicas do tipo “land grant”, a Internet, a Previdência Social e o Medicare (sistema público de saúde), até o sistema nacional de rodovias e as conquistas da pesquisa médica, devem muito às políticas governamentais, muitos democratas continuam a correr assustados, temerosos de serem rotulados de “excessivamente liberais nos gastos e na cobrança de impostos”.
Acrescente-se a isso a enorme influência política que o “dinheiro grande” exerce através de copiosas contribuições de campanha – sem quaisquer limites, graças às recentes decisões da Suprema Corte – e de lobistas caros. (Os sindicatos e grupos de interesse público também fazem lobby, mas para cada dólar gasto, as corporações gastam US$ 34).
Por exemplo, empresas que, produzem perclorato, um produto químico usado em combustível para foguetes e munições e presente entre os contaminantes da água de abastecimento dos EUA, e que é prejudicial para mulheres grávidas e fetos deficientes em iodo, pagam aos lobistas para lutar contra regulamentações mais rígidas há anos. Não por acaso, a EPA, que vem monitorando o perclorato desde 2001, ainda não estabeleceu limites obrigatórios para a água potável, embora continue a considerar um “roteiro” para fazê-lo. Da mesma forma, os sete maiores produtores de PFAS gastaram 61 milhões de dólares em 2019 e 2020 em contribuições de campanha e esforços de lobby. Em 2018, havia apenas duas empresas fazendo lobby contra regulamentos mais rígidos dos PFAS; um ano depois, esse número havia aumentado para 14.
A EPA estabelece níveis máximos de água potável para 90 substâncias, mas não acrescentou mais nenhuma (exceto em alguns poucos casos em que o Congresso determinou que o fizesse) desde 1996, apesar de sua “Lista de Candidatos a Contaminantes de Água Potável” conter agora quase 100 outras substâncias. Isto não deve ser uma surpresa. As empresas que se opõem a regulamentações mais rígidas têm acesso e influência política. As pessoas designadas politicamente para cargos importantes na EPA são frequentemente oriundas dessas mesmas indústrias ou dos grupos de pressão que elas financiam. Os cientistas pagos pelas indústrias pesam, emprestando uma aura de legitimidade ao pleito de interesses especiais.
A política da água está repleta de complexidade científica, mas a legislação e os regulamentos que a moldam são disputados na arena política. Ali, o jogo é cada vez mais de cartas marcadas – e não em favor do consumidor médio. Se os republicanos retomarem o Congresso em 2022 e a presidência em 2024, minha pequena sugestão: tome um bom copo de água gelada e relaxe. O que poderia dar errado?
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Copyright 2021 Rajan Menon
Rajan Menon, colaborador regular da TomDispatch, é Professor emérito de Relações Internacionais na Powell School, City College of New York, diretor do “Grand Strategy Program at Defense Priorities”, e Pesquisador Sênior no Saltzman Institute of War and Peace na Columbia University. Publicou recentemente The Conceit of Humanitarian Intervention.