ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

No Rio Guandú há muito mais que algas

NO RIO GUANDÚ HÁ MUITO MAIS QUE ALGAS
Autor:
Amauri Pollachi*
Ano:
2020

Um outro olhar sobre a crise da qualidade da água no Rio de Janeiro

A Região Metropolitana do Rio Janeiro iniciou o ano de 2020 com um novo debate desafiador: a qualidade da água distribuída para nove milhões de pessoas pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) por meio do Sistema Guandú. As reclamações da população se concentram no gosto e odor desagradáveis, na cor e na turbidez da água que sai de suas torneiras.

Os comunicados da empresa e as manifestações de seus trabalhadores reconhecem essas características percebidas pela população e garantem a potabilidade da água. Foram acionados diversos órgãos de controle (Vigilâncias Sanitárias), monitoramento (INEA) e pesquisa (Fiocruz, UERJ e UFRJ), além do Ministério Público. Trata-se de uma situação inédita para os cariocas que, porém, diversas metrópoles na Europa, na América do Norte, na Austrália, na China, no Japão, já sofreram em determinada etapa do seu desenvolvimento urbano e social: o gosto ruim da água causado pela própria concentração populacional da metrópole.

A Região Metropolitana de São Paulo também passou por esta amarga experiência. A assombrosa[1] explosão populacional na bacia do reservatório Guarapiranga, que contava 332.064 habitantes em 1980, saltou para 548.370 em 1991 e 754.443 em 2000, aliada ao insucesso das políticas – estadual e municipal – de controle do uso do solo para garantir as fontes hídricas superficiais para abastecimento público, resultou em incontrolável proliferação de algas azuis (cianobactérias) no reservatório Guarapiranga no verão de 1990/91.

Tal qual no Guandú, nas águas da Guarapiranga reinava a alga Anabaena, que durante o processo convencional de tratamento da água bruta captada liberavam geosmina, provocando gosto e odor bastante desagradáveis à água distribuída que, consequentemente, sofria rejeição de mais de três milhões de pessoas abastecidas por este sistema, embora estivessem atendidos os padrões de potabilidade. Além de compostos que alteram o sabor da água tratada, as variadas espécies de algas azuis podem causar dificuldades no próprio tratamento, por exemplo, com o entupimento de filtros e redução no volume de água produzido.

A causa de base do desequilíbrio ecológico e da proliferação das algas – assim como agora em Guandú – estava na eutrofização do reservatório Guarapiranga, isto é, o corpo d’água não conseguia absorver e depurar naturalmente a carga poluidora dos esgotos despejados in natura em seus afluentes por quase toda a população da bacia. Visto que as algas azuis têm a sua principal fonte de alimento no fósforo presente nos esgotos sem tratamento, se fazem presentes as condições favoráveis para sua proliferação.

A intensidade e a rapidez dessa proliferação podem aumentar por causas circunstanciais como as chuvas intensas que trazem lixo e outros poluentes até o corpo hídrico por meio da drenagem, natural ou implantada, o que também se verifica em outros países em condições climáticas e ambientais semelhantes às nossas.

Não havia estudos suficientes tampouco instalações adequadas para o enfrentamento e controle eficaz das algas azuis na represa ou na redução dos seus efeitos sobre a água potável. Somente após esse evento mobilizaram-se esforços e investimentos de diferentes níveis de governo para recuperar a qualidade da água do manancial[2] e adequar o processo de tratamento com o uso de novas tecnologias capazes de eliminar ou minimizar efeitos sobre as características da água potável.

Uma das ações decisivas para conter o processo de degradação do manancial foi a concepção e a execução, entre 1994 e 2000, do “Programa de Saneamento Ambiental da Bacia do Guarapiranga” centrado em: implantar sistemas de esgotamento sanitário; urbanizar favelas, criar parques e conceber um modelo de gestão. Sua execução somente foi possível por meio de um arranjo participativo e colaborativo dos governos estadual e municipais e com ampla participação da sociedade civil. Um dos frutos desse programa foi a legislação específica de proteção e recuperação de mananciais, abrigada sob o sistema de gestão de recursos hídricos em articulação com o sistema ambiental.

Para superar a crise no Guandú em curto prazo, com base na experiência de gestão da produção de água dos sistemas de São Paulo mais sujeitos às florações de algas, é possível elencar algumas soluções cuja aplicação dependerá das condições ambientais da bacia do Rio Guandú e do seu próprio corpo hídrico: (i) precipitação de fósforo na foz dos córregos afluentes mais próximos à captação, mediante aplicação de sulfato de alumínio; (ii) aumentar a diluição de fósforo nas águas captadas mediante aumento da transposição de água bruta de melhor qualidade; (iii) aeração antes da captação da água bruta, de forma a movimentar a coluna d’água e inibir concentração de algas, com o cuidado de evitar movimentação no fundo do leito do Guandú; (iv) aplicar algicida nas áreas com maior concentração de algas azuis, atendida a excepcionalidade prevista no Art. 40, § 7º da Portaria MS 5/2017; (v) implantar, nas proximidades da captação, barreiras de boias e redes e/ou barreiras de microbolhas para dificultar passagem de algas de superfície, cada qual aplicável a um conjunto de espécies que estiverem presentes no monitoramento hidrobiológico do manancial. Recomenda-se que a adoção dessas soluções seja precedida por ensaios e modelagens, para que se evite o agravamento da situação ao invés de controlá-la.

A aplicação de carvão ativado granular no processo de tratamento de água é também uma saída para conter a crise, que não dispensa aquelas concentradas na água bruta, pois que adsorve o composto orgânico causador do gosto e odor “limpando” a água tratada dessa característica poderá resultar em efetividade e eficácia abaixo da expectativa, caso não sejam realizados ensaios que simulem a melhor condição para sua aplicação quanto a tempo de contato, tipo de carvão (vegetal ou mineral), ponto de aplicação, etc.

Intensificar o monitoramento do manancial e da água distribuída e divulgar informações com ampla transparência e veracidade para toda a população e os órgãos de controle são ações fundamentais para a confiança e a credibilidade de todos os envolvidos, não apenas a empresa de saneamento e seus funcionários.

Superada a crise, observe-se que será bastante difícil alcançar uma convivência segura da produção de água potável com a sua área de manancial urbanizada, mesmo que plenamente dotada de esgotamento sanitário eficiente, pois haverá cargas difusas que poderão alterar a qualidade na água bruta e instabilizar o tratamento convencional. Será imprescindível priorizar o estudo, o projeto e a implantação de técnicas avançadas de tratamento de água, que podem incluir um sistema de dosagem e carvão ativado granular.

A solução que elimina a causa real da “morte” de um manancial é o controle de fontes poluidoras pontuais (indústrias, culturas agrícolas) e o enfrentamento da questão urbana, em última análise, da própria produção do espaço urbano da metrópole que segrega a população mais pobre em direção a áreas cada vez mais periféricas onde encontram um pedaço de terra de custo mais baixo. As áreas de bacias de mananciais em São Paulo tornaram-se fortemente atraentes para as práticas de loteamentos irregulares desde os anos 1980, fundamentalmente causados por “… processos de banimento e negação de direitos a que foram e são submetidas indivíduos e famílias que, sem acesso a políticas habitacionais ou reconhecimento dos vínculos com o território que ocupam, alimentam historicamente mercados fora das normas, nas fronteiras entre o legal e o ilegal.”[3].

No médio e longo prazos, para recuperar a bacia do Rio Guandú será preciso criar um arranjo multi-institucional com aporte financeiro garantido para, sempre em articulação com a população da bacia e seu entorno, reformular a governança de recursos hídricos e de uso do solo, urbanizar assentamentos precários de interesse social, eliminar fontes poluidoras pontuais, implantar sistemas de afastamento e tratamento de esgotos, criar áreas protegidas e recuperar nascentes e matas ciliares.

Nas situações de crise de qualidade da água – assim como em outras crises – busca-se apontar para um culpado. Aqui não há um, há muitos. São as instituições e entes públicos das esferas municipal e estadual que compactuam com essa exclusão social. Tranquilizam-se com a ausência de políticas de moradia digna para a baixa renda. Incentivam ou fingem não ver os assentamentos precários produtores de votos. Persistem com a apropriação patrimonialista privada associada à socialização do prejuízo para largos contingentes da sociedade.

[1] Fonte: http://arquivos.ambiente.sp.gov.br/cea/2015/06/Caderno-Ambiental-Guarapiranga.pdf, p.39. Acesso em 20.02.2019.

[2] SANTORO, P.F.; FERRARA, L.N.; WHATELY, M. Mananciais: diagnóstico e políticas habitacionais. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2009, p.107.

[3] https://raquelrolnik.blogosfera.uol.com.br/2020/01/15/a-quem-serve-simplificar-o-debate-sobre-os-mercados-irregulares-de-imoveis/

*Amauri Pollachi é conselheiro de orientação do ONDAS, graduado em Engenharia Mecânica e História pela USP e mestre em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC.

3 comentários em “No Rio Guandú há muito mais que algas”

  1. Gilberto Antonio do Nascimento

    Muito boa análise da situação. Sugiro uma versão mais sintética e acessível ao grande público. Pode ser um grande esclarecimento, para a mobilização e cobrança de políticas responsáveis nos series habitacional, urbano,
    de saneamento e recursos hídricos.

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