Texto da interação ONDAS-Privaqua*
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NOS EUA, PAGAM MAIS PELA ÁGUA AQUELES QUE A RECEBEM DE PRESTADORES PRIVADOS
[resenha do artigo: X. Zhang, M. González Rivas, M. Grant, M. E. Warner; Water pricing and affordability in the US: public vs. private ownership. Water Policy 1 March 2022; 24 (3): 500–516. doi: https://doi.org/10.2166/wp.2022.283]
Autora: Ana Lucia Britto [1]
Tratando de temas centrais para a realização do direito humano à água, a acessibilidade econômica e a modicidade tarifária, o artigo analisa a situação nos Estados Unidos, comparando três diferentes modos de prestação dos serviços (pública, privada ou comunitária). O objetivo é avaliar as tarifas praticadas e o percentual da renda que as famílias de baixa renda gastam com água. O texto está dividido em quatro partes: introdução, revisão de literatura, métodos, resultados, discussão e conclusões.
As tarifas de água, afirmam os autores, variam entre os países e até mesmo dentro das regiões do mesmo país e os estudiosos analisaram a variedade de fatores que influenciam as tarifas de água (Wait & Petrie, 2017; González-Gómez & García-Rubio, 2018; Hellwig & Polk, 2020). Um dos fatores é a estrutura societária do prestador, que é o foco da pesquisa realizada e apresentada no artigo. A questão orientadora da pesquisa foi: há uma diferença significativa nas taxas de água entre os serviços públicos e privados de água? A partir da revisão de literatura empreendida os autores verificaram que enquanto alguns estudos mostram que as concessionárias de água de propriedade privada cobram preços mais altos pelos serviços (Beecher & Kalmbach, 2013; Wait & Petrie, 2017; Onda & Tewari, 2021), outros não encontraram diferença entre os operadores públicos e privados (Bel et al., 2010).
Os autores mostram que a acessibilidade da água está se tornando um desafio generalizado nos EUA, sendo particularmente importante para comunidades de baixa renda e minorias, que tendem a ser desproporcionalmente afetadas pelo aumento das contas de água. Assim, o estudo busca compreender se as características do prestador, público ou privado, podem implicar em diferenças significativas no valor das tarifas de água (considerando a conta anual de água para uma residência típica) e na acessibilidade (considerando percentual que as famílias de baixa renda gastam com água). O trabalho também analisa se o valor da tarifa e a acessibilidade da água variam de acordo com o ambiente regulatório, idade da infraestrutura hídrica e condições socioeconômicas da comunidade (pobreza e raça).
Na revisão de literatura os autores mostram que as comparações entre prestação pública e privada têm sido amplamente abordadas. Um argumento é que os serviços privados podem ser mais eficientes do que os públicos porque a maximização do lucro impulsionaria a alocação eficiente de recursos e a redução de custos, um incentivo que poderia faltar para os serviços públicos (Rubenstein, 2000). No entanto, outros argumentam que a mesma ideia de maximização do lucro leva os prestadores privados a buscarem aumentos de tarifas, à medida que tentam maximizar seus lucros (Lobina & Hall, 2000; Lobina, 2005; Romano & Guerrini, 2014). Existem estudos empíricos em todo o mundo apoiando ambos argumentos, mas uma análise de meta-regressão descobriu que não há suporte estatístico para custos mais baixos com operadoras privadas de água (Bel et al., 2010). Outros estudos constataram que não há evidências conclusivas que definam uma estrutura de propriedade superior à outra (Bel & Warner, 2008; Abbott & Cohen, 2009).
Os autores mostram que existem muitos outros fatores, além da estrutura societária do prestador, que podem afetar as tarifas de água, como tamanho e características da população a ser atendida, características dos mananciais de abastecimento ( água de superfície ou águas subterrâneas), idade das redes de infraestrutura, etc. A infraestrutura envelhecida é um dos principais desafios dos prestadores de serviços de água nos EUA, de acordo com a Pesquisa de 2019 da American Water Works Association (AWWA, 2019a). Embora a Lei do Plano de Resgate Americano de 2021 e a Lei de Infraestrutura de 2021 forneçam financiamento para a modernização dos sistemas municipais de água e esgoto, o alto custo da infraestrutura hídrica pode levar os governos locais a buscar a privatização (Robinson, 2013).
As características das cidades onde as concessionárias operam, como densidade populacional e crescimento populacional, também podem afetar potencialmente o valor que as concessionárias de água cobram pelos serviços, pois é mais econômico manter a infraestrutura em áreas com maior densidade (Bel & Warner, 2008). As concessionárias também precisam considerar os custos de manutenção e expansão da infraestrutura em áreas com crescimento populacional expressivo, para acompanhar o aumento da demanda de água, o que contribui para o aumento dos custos (Jacobs & Howe, 2005). Por outro lado, em comunidades com população pequena ou em declínio, os sistemas hídricos enfrentam custos de renovação das infraestrutura e uma base de consumidores em declínio, o que também pode levar a tarifas mais altas (Jacobson, 2016; González Rivas, 2020; Grant, 2020; Hellwig & Polk, 2020) .
Outros fatores relacionados às condições estruturais de um local, como características socioeconômicas da população atendida, também são considerações importantes para os valores das tarifas. Comunidades com uma porcentagem mais alta de pobreza podem enfrentar mais problemas para garantir a acessibilidade aos serviços.
A pesquisa apresentada no artigo compilou as informações da conta de água de todos os 500 maiores sistemas de abastecimento dos EUA, envolvendo 48 estados e o Distrito de Columbia, e uma população atendida de cerca de 140 milhões de pessoas (44% de toda a população dos EUA em 2015). Os 500 serviços analisados incluem prestadores públicos (governamentais e cooperativas) e privadas: 321 são de propriedade do governo, 121 são cooperativos e 58 são de propriedade de investidores privados.
O valor da tarifa de água foi medido pela conta anual familiar típica. Não foram incorporados serviços de coleta de esgoto que são normalmente fornecidos por uma agência separada e são difíceis de comparar entre jurisdições. A acessibilidade foi medida avaliando a porcentagem da renda familiar gasta em água pelo quintil mais baixo da renda familiar.
Na análise de regressão construída foram consideradas variáveis que podem gerar um aumento dos custos dos serviços e consequentemente das tarifas: o tipo de manancial de abastecimento e sua qualidade (água subterrânea ou de superfície) assim como disponibilidade hídrica e nível de seca. Também foram incluídas variáveis sobre desigualdade de renda (Gini), taxa de pobreza, porcentagem de minorias, densidade populacional e crescimento populacional. A hipótese era de que as tarifas poderiam ser mais altas tanto em comunidades em declínio populacional, quanto em crescimento.
Os resultados do modelo de análise mostraram que, entre os 500 maiores serviços de abastecimento de água dos EUA, a prestação privada resulta em preços mais altos da água e menor acessibilidade, após o controle de todos os outros fatores. A propriedade privada tem maior efeito na conta de água média anual do que todas as variáveis do modelo. Os dados mostraram que os serviços prestados pelo setor privado têm uma fatura anual significativamente maior (US$ 501) do que os sistemas de água de propriedade do setor público (US$ 315). A conta de água média anual é $144 mais alta nos sistemas de água de propriedade privada do que nos sistemas de água de propriedade pública As famílias de baixa renda também gastaram uma porcentagem maior de sua renda em serviços de água no caso de serviços prestados por empresa privada (4,39% da renda) do que se os serviços forem prestados pelo setor público (2,84% da renda). Esses resultados foram validados após o controle de outros fatores, como ambiente regulatório, tipo manancial de abastecimento, idade do sistema de infraestrutura e demografia da comunidade, que afetariam potencialmente o preço e a acessibilidade à água.
Todos os sistemas privados da amostra são regulados. Nos EUA há uma regulamentação rigorosa da qualidade dos serviços de água prestados pelos operadores por meio dos padrões da Agência de Proteção Ambiental (EPA). A regulação tarifária é feita pelas Comissões de Utilidade Pública (PUCs) estaduais. No entanto, os autores destacam que um dos problemas da regulação é a assimetria de informações, que dificulta a estruturação de contratos. A análise mostrou que em New Jersey e na Pennsylvania a regulação é mais favorável aos operadores privados do que em muitos outros estados, o que leva a preços mais altos nesses estados. Apenas seis estados regulam os sistemas públicos, mas isso não afeta o preço ou a acessibilidade.
Controlando as características demográficas da comunidade, os autores descobriram que o tamanho, a densidade e o crescimento da população não estão relacionados a diferenças no valor das tarifas. No entanto, os sistemas de água que atendem a mais pessoas são mais acessíveis, devido às economias de escala. A pobreza tem um efeito importante na acessibilidade da água. Famílias de baixa renda, em comunidades com maior índice de pobreza, gastam uma porcentagem maior de sua renda em suas contas de água. A relação entre a taxa de pobreza e os gastos das famílias revela as falhas de uma tarifação baseada na lógica de mercado: a água, como um bem fundamentalmente necessário, não é acessível para muitas famílias de baixa renda. Assim, os autores destacam a necessidade de programas voltados para a garantia da acessibilidade aos serviços.
Os EUA são uma exceção entre os países ricos, pois não possuem um programa permanente de assistência à água para pessoas de baixa renda, o que contrasta fortemente com o programa de assistência ao setor de energia, que está em execução há 40 anos (Warner et al., 2021). Pesquisas sobre acessibilidade mostram que os programas estaduais funcionam melhor (Swain et al., 2020), assim como as abordagens direcionadas para fornecer assistência contínua para o pagamento das tarifas, bem como proteção contra as desconexões por não pagamento (Pierce et al., 2021).
Nas conclusões, os autores destacam que o debate sobre preço e sobre acessibilidade à água precisa ir além da questão da propriedade para envolver também questões de controle regulatório e mecanismos para aumentar a acessibilidade.
[1] Ana Lucia Britto – Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Urbanismo (PROURB/UFRJ), pesquisadora do Observatório das Metrópoles do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (IPPUR-UFRJ) e Conselheira de Orientação do ONDAS.
* Privaqua é um projeto de pesquisa que busca entender o impacto da privatização dos serviços de água e saneamento nos direitos humanos. Regularmente, o site do ONDAS publica notas do Privaqua de forma a dar transparência ao projeto e compartilhar alguns de seus achados preliminares.
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