Amael Notini Moreira Bahia*
As origens e o desenvolvimento progressivo do direito humano à água
Com o advento dos principais instrumentos de direitos humanos no âmbito do Direito Internacional, foram criadas garantias essenciais não só à sobrevivência humana, mas à vida digna e saudável. O primeiro desses instrumentos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ainda que não vinculante, foi essencial para o desenvolvimento progressivo dos direitos humanos. Posteriormente, em âmbito geral, os direitos humanos foram codificados no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC). No entanto, uma peculiaridade comum a esses instrumentos é a ausência completa de qualquer menção específica ao direito à água, por mais fundamental que esse direito seja para a efetivação de grande parte de outros direitos humanos.
De fato, o direito humano à água chegou a ser positivado apenas em alguns poucos tratados voltados à proteção de grupos específicos, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, que garantiu o direito das mulheres ao acesso à água; e a Convenção sobre os Direitos da Criança, que determina o dever dos Estados partes de prover água potável como meio de combater doenças e a desnutrição.
Contudo, gradualmente, o direito à água começou a ser reconhecido enquanto um pressuposto para a realização de outros direitos humanos. Em 2002, o Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas adotou o Comentário Geral n° 15, intitulado “O Direito à Água”, interpretando esse direito à luz da PIDESC. Sob o prisma do art. 11, §1°, do PIDESC, foi esclarecido que o direito humano à água é indispensável para assegurar um padrão de vida adequado, passando, assim, protegido de forma derivada no âmbito do direito internacional.
A diretiva interpretativa apresentada no Comentário Geral n° 15 não foi recepcionada de forma homogênea pelos Estados parte da PIDESC, gerando controvérsias quanto ao reconhecimento do direito humano à água no âmbito da mencionada convenção.1 Em sentido similar, há uma teoria emergente de que o direito à água poderia também ser derivado do direito à vida previsto no PIDCP, de forma que os Estados teriam o dever de promover políticas que garantissem o acesso aos meios de subsistência a todos os povos e indivíduos sob sua jurisdição.2 Portanto, ambos os instrumentos internacionais, apesar das diferentes premissas adotadas, tem o potencial de tutelar o direito humano à água, ainda que de forma derivada de outros direitos, quais sejam o direito humano a um padrão de vida adequado na PIDESC e o direito humano à vida na PIDCP.
Também nesse sentido, a partir do conceito de vida digna, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) determinou que o direito humano à vida pressupõe não apenas obrigações negativas, que determinam que nenhuma pessoa será privada de sua vida, mas também obrigações positivas, que ensejam na adoção de todas as medidas necessárias à garantia de uma existência digna, incluso o acesso à água.3 Então, a CIDH desenvolveu os elementos normativos do direito humano à água em diversos casos, dedicados majoritariamente a grupos vulneráveis, como comunidades indígenas e pessoas privadas de liberdade.4 Em especial, com o julgamento da Opinião Consultiva n° 23/17, a CIDH desenvolveu as obrigações relacionadas a um meio ambiente saudável, dentre elas o acesso à água e a proteção dos recursos hídricos, possibilitando, assim, a proteção de uma nova dimensão de efetivação do direito humano à água, que passa não apenas pela perspectiva de proteção dos usos humanos, mas também do recursos naturais em si.
Para além da proteção secundária do direito à água, a comunidade internacional mobilizou-se no sentido de garantir esse direito de forma independente, como pode ser observado na adoção de resoluções no âmbito da Assembleia Geral da ONU e da Assembleia Mundial da Saúde,5 bem como em declarações regionais.6 Ademais, concomitantemente ao reconhecimento internacional do direito à água no cenário internacional, uma gama expressiva de países o codificou enquanto direito fundamental de caráter constitucional.7
O Brasil e o reconhecimento do direito humano à água
Como se observa nas últimas décadas, a tentativa de consolidação do direito humano à água no âmbito constitucional tem sido um tema recorrente no parlamento brasileiro.8 Apesar do número de Propostas de Emenda à Constituição com pretensão de proteção do direito humano à água ser expressivo, ainda não se logrou inserir esse direito no rol de direitos fundamentais dispostos na Constituição Federal.9 Recentemente, a aprovação da PEC 04/2018 no Senado Federal reacendeu o debate acerca do tema no parlamento brasileiro, assim como as esperanças de positivação desse direito na seara constitucional. Essa proposta busca inserir o inciso LXXIX no art. 5 da Constituição Federal, de forma a prever:
Art. 5° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] LXXIX – é garantido a todos o acesso à água potável em quantidade adequada para possibilitar meios de vida, bem-estar e desenvolvimento socioeconômico.
A iniciativa passou, então, a tramitar na Câmara dos Deputados sob o número de PEC 06/2021. Até a presente data, a proposta aguarda manifestação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Importante notar, ainda, que por envolver uma dimensão de planejamento e implementação de políticas públicas, a justiciabilidade do direito humano à água pode ser objeto de controvérsia. Ainda assim, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, no contexto da prestação dos serviços públicos de saneamento básico, que, em situação excepcional, o Poder Judiciário pode determinar que a Administração Pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes (RE 417408 AgR; RE 1266784 AgR).
Ademais, ainda que não se equipare ao reconhecimento constitucional, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já reconheceu o acesso à água como direito humano fundamental, de conformação autônoma e justicializável (REsp 1697168/MS), bem como ressaltou a conexão intrínseca desse direito com outros preceitos constitucionais, como a dignidade da pessoa humana (REsp 1820000/SE). Entretanto, a proteção desse direito na jurisdição do STJ é limitada. Ainda que inicialmente protegesse o usuário contra a interrupção por inadimplemento, determinando a adoção de meios menos abusivos de cobrança do débito (REsp 122812/ES; REsp 201112/SC), a jurisprudência do STJ regrediu a respeito do tema, possibilitando o corte na prestação em razão de débito atual e desde que notificado o usuário (AgRg no AREsp 842815/SP). De toda forma, permanece a proteção em relação aos serviços públicos essenciais, tais como no caso de hospitais, postos de saúde, escolas, dentre outros (REsp 1266079/AL; REsp 943850/SP).
O reconhecimento do direito humano à água é especialmente relevante no cenário brasileiro atual, no qual se verifica a crescente instabilidade no setor de saneamento básico, em especial no que se refere aos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário, em razão da adoção da Lei n. 14.026/2020. Além de inviabilizar, de forma inconstitucional, os contratos de programa, o instrumento legal realizou diversas alterações que geram instabilidade na devida prestação dos serviços públicos de saneamento básico e da garantia do direito humano à água.
Assim, na tentativa de consolidar o direito humano à água no ordenamento jurídico brasileiro, o papel da sociedade em denunciar os abusos existentes e demandar a efetivação dos direitos é essencial. Nesse contexto, o Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS) tem realizado uma extensa gama de projetos, dentre os quais a elaboração de emendas à Lei n.11.445/2007, com o intuito de compatibilizar o marco legal do saneamento básico com os preceitos normativos do direito humano à água, bem como corrigir os equívocos, a partir da perspectiva de constitucionalidade, da Lei n. 14.026/2020. Também nesse sentido, com enfoque especial no elemento da acessibilidade econômica, o ONDAS atuou ativamente na elaboração e aprovação de projeto de lei para garantia da tarifa social no Distrito Federal.
Conclusão
A caminhada para o reconhecimento definitivo e autônomo do direito humano à água está avançada, mas a efetivação desse direito está longe de se tornar realidade, tanto no contexto internacional quanto no brasileiro. Dessa forma, é essencial que, para além da necessária inclusão do direito humano à água na Constituição Federal, sejam realizados esforços contínuos para a efetiva implementação desse direito.
Esse processo deve ser realizado pela Administração Pública, com ativa participação social, bem como a partir do controle judicial no caso da necessidade de medidas assecuratórias. Evidentemente, pela própria natureza complexa do direito humano à água, bem como em razão das desigualdades que o permeiam, sua concretização só será possível por meio de planejamento e implementação diligente de políticas públicas, com controle social ativo e mecanismos judiciais de garantia de direitos humanos e fundamentais.
Referências:
1. BROWN WEISS, Edith. The Evolution of International Water Law. In: Collected Courses of the Hague Academy of International Law, vol. 331. Leiden: Brill | Nijihoff, 2007. p. 309.
2. WINKLER, Inga. The Human Right to Water: Significance, Legal Status and Implications for Water Allocation. Oxford: Hart Publishing, 2012. p. 54.
3. CHAVARRO, Jimena. The Emergence of the Right to Water in the Inter-American Court of Human Rights. Inter-American and European Human Rights Journal, vol. 8, p. 95-111, 2016. p. 110.
4. Casos referentes a comunidades indígenas e povos tradicionais: CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso das Comunidades Indígenas Yakie Axa v. Paraguay, Sentença de 17 de junho de 2005; CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso das Comunidades Indígenas Sawhoyamaxa v. Paraguay, Sentença de 29 de março de 2006; CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso do Povo Saramaka v. Suriname, Sentença de 28 de novembro de 2007; CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso das Comunidades Indígenas Xákmok Kásek v. Paraguay, Sentença de 24 de agosto de 2010. Em outro sentido, menciona-se os casos referentes a pessoas privadas de liberdade: CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso López Alvarez v. Honduras, Sentença de 01 de fevereiro de 2006; CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Vélez Loor v. Panama, Sentença de 23 de novembro de 2010.
5. UN General Assembly resolution 64/292 (July 2010); World Health Assembly resolution 64/24 (24 May 2011).
6. Abuja Declaration of the first Africa-South America Summit – November 2006; Message from Beppu of the first Asia-Pacific Water Summit – December 2007; Delhi Declaration of the Third South Asian Conference on Sanitation (SACOSAN) – November 2008; Panama Declaration of the Third Latin American and Caribbean Sanitation Conference (LatinoSan) – June 2013.
7. Dentre eles: Congo, Equador, Etiópia, Gambia, Quênia, Maldivas, África do Sul, Uganda, Uruguai, Venezuela, Zâmbia, Egito, Sudão, Zimbábue.
8. Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 13, n. 52, p. 229-251, out/dez. 2015. p. 241-243.
9. Dentre outras, mencionam-se as seguintes: Senado Federal – PEC 07/2010, PEC 02/2016, PEC 07/2016 e PEC 04/2018; Câmara dos Deputados – PEC 39/2007, PEC 213/2012, PEC 93/2015, PEC 328/2017, PEC 425/2018, PEC 258/2016, PEC 430/2018 e PEC 232/2019.
*Autor:
Amael Notini Moreira Bahia – Coordenador de Assuntos Jurídicos do ONDAS. Mestrando em Direito Internacional Público na Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais, com intercâmbio acadêmico na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne (França) e Fudan University (China). Membro do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais (UFMG/CNPq). Foi pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, do Centro de Direito Internacional e da Universidad Nacional Mayor de San Marcos (em parceria com a Academia Nacional de Estudos Transnacionais).
Artigo publicado originalmente em Magis Portal Jurídico