ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

O que está em jogo nesta Conferência da Água 2023 organizada pela ONU?

autora: Renata Furigo*

Nesta Semana Mundial da Água, a ONU realiza a Conferência da Água 2023, reunindo governos, sociedade civil e iniciativa privada, tendo dois objetivos principais: estabelecer uma ação conjunta para alcançar os objetivos e metas internacionais acordados, incluindo os que estão presentes na Agenda 2030 do Desenvolvimento Sustentável, e lançar uma Agenda de Ação da Água, contendo comprometimentos voluntários de todos os níveis: governos, instituições e comunidades locais. Os problemas que preocupam a organização são três: a poluição que afeta muitas fontes de água doce em todo o mundo, o corrente desaparecimento de ecossistemas produtores de água, e a alteração dos regimes de chuva que prejudicam os ciclos de água, acarretados pelas mudanças climáticas em curso.

Mas as entidades da sociedade civil que se organizaram para este encontro em Nova York – movimentos sociais, representantes de comunidades indígenas, organizações não governamentais, universidades públicas, institutos de pesquisa – tanto brasileiros como internacionais, tem outra pauta que consideram mais central do que estes três problemas apontados. Trata-se da escolha política que será feita para debatê-los e enfrentá-los.

Desde a Década de 1990, a agenda da água tem sido promovida de forma privilegiada, pelo autodenominado Conselho Mundial da Água, que, por meio dos Fóruns Mundiais da Água – FMA, que ocorrem a cada três anos, debate com grupos econômicos, corporações privadas e governos, assuntos de interesse privado. No setor de abastecimento de água e esgotamento sanitário, esses fóruns têm defendido que a universalização do acesso a esses serviços essenciais só será possível com a participação do mercado privado, já que, segundo eles, é a única forma de garantir comportamentos sociais mais adequados para se combater o desperdício de água e o aprimoramento tecnológico do setor. O que eles querem dizer, em síntese, é que as pessoas só vão parar de desperdiçar água quando pagarem caro por ela. Trata-se de um argumento bem arrogante, que nega a realidade, subestima o conhecimento popular e ignora os crimes ambientais cometidos por corporações que utilizam grandes quantidades de água em processos produtivos. Aqui serve o exemplo da Vale, que criminosamente desastrou vidas e os Rio Doce e Paraopeba nas regiões de Mariana (em 2015) e Brumadinho (em 2019). Até hoje nenhum executivo da empresa foi preso, e nenhuma comunidade foi indenizada devidamente.

Essa ideia de que o mercado sabe mais do que as pessoas comuns, não aceita críticas e ignora as relações sociais e culturais que existem a séculos ou milênios, entre as comunidades e as fontes de água. O mercado se diz “neutro” e “indiferente” à política. É como se fosse uma entidade espiritual superior à nossa reles condição humanidade “defeituosa”.

Por outro lado, ninguém do mercado explicou porque a iniciativa privada nunca apresentou bons resultados no setor de saneamento. No Brasil podemos citar o caso de Manaus, que teve os serviços de água e esgoto privatizados na década de 1990, e até hoje mantém os índices de atendimento abaixo de 30% de atendimento da população. Os grandiosos rios amazônicos estão poluídos por esgotos domésticos e as pessoas tem que comprar água engarrafada para beber. O município de Itu/SP tinha seus serviços privatizados, e na crise hídrica de 2015, deixou a população uma semana sem receber uma gota de água na torneira, fazendo com que a prefeitura reassumisse a operação dos serviços. No Estado do Tocantins, o governo estadual privatizou a SANEATINS no início dos anos 2000, e passados alguns anos, a empresa devolveu parte dos municípios, alegando que não eram economicamente viáveis para o seu negócio. Na Região dos Lagos (Cabo Frio, São Padro da Aldeia, Buzios etc), a Prolagos cobra da população a coleta e tratamento de esgotos que não existe[1]. Recentemente, a cidade de Ouro Preto/MG viu suas ruas e calçadas históricas serem rasgadas para instalação de tubos e hidrômetros, e a população viu contas de água partirem de 22 reais fixos para 500 reais, sem nunca terem sido chamadas a opinar sobre o assunto. O professor Rafael Bastos, da Universidade Federal de Viçosa, testou a água distribuída pela SANEOURO e verificou que ela não atendia aos padrões de potabilidade exigidos pelo Ministério da Saúde[2].

Em nível mundial, na época de ouro das privatizações, nos tempos em que o presidente Fernando Henrique Cardoso convencia a população brasileira de que as empresas públicas eram caras e ineficazes, o Banco Mundial discutia a viabilidade das privatizações do saneamento. Numa reunião com empresários em 2002, John Talbot, executivo de uma multinacional chamada SAUR, disse que o comércio internacional da água precisaria de subsídios públicos, e que esse tipo de negócio tinha alto risco financeiro por causa da exigência de padrões altamente rigorosos de qualidade da água e de universalização do acesso. Um levantamento realizado pelo pesquisador britânico Eric Swyngedouw mostrou que entre os anos de 1990 e 2005, somente 600 mil domicílios no mundo receberam novas ligações de água e esgoto em cidades com serviços privados[3].

Atualmente no Brasil, corporações privadas convencem prefeitos e governadores a venderem seus serviços locais e regionais de água e esgoto, enquanto o BNDES financia a compra, emprestando dinheiro público, estimulando concessões que não garantem a universalização do acesso, mas um bom lucro ao longo de 30 anos. E com um detalhe: não dá para se arrepender, porque as multas rescisórias são impagáveis. Na cidade do Rio de Janeiro, a distribuição de água foi privatizada, deixando parte das favelas de fora do serviço. No Estado de São Paulo, o governador Tarcisio de Freitas prometeu em campanha que vai privatizar a SABESP, mesmo sendo uma empresa lucrativa. E não para por aí. Já está convidando os prefeitos para debater a regionalização do saneamento, visando a modelagem de serviço para ser atendido em grande escala. A quem interessa o SAAE Mogi Mirim integrado num sistema regional privado? Uma autarquia que cumpre todos os padrões de qualidade da água potável, que tem um sistema de tratamento de esgotos de alto nível de desempenho, que está investindo recursos públicos no aumento da produção de água tratada, e que presta um dos serviços mais baratos da região. Não existe um único motivo para dizer que o SAAE privatizado seria melhor do que público.

Diante disso, e de outros inúmeros problemas que o mercado privado de águas traz para a população, e que não foram relatados aqui, a Conferência Mundial da Água 2023, traz o desafio para a ONU e para todos os governos nacionais e locais: se posicionar de forma clara e sem demagogias, sobre a maneira com que pretendem dialogar com a sociedade. Se vão continuar legitimando o mercado invisível da água, enganando pessoas e violentando ecossistemas, ou vão privilegiar o interesse público, revendo concessões de fontes de água, inibindo processos de privatização que infringem direitos humanos a água e ao saneamento, e fortalecendo comunidades locais que protegem efetivamente as fontes de água e florestas, para a garantia da vida digna das pessoas e do meio ambiente. Esta é a importância do encontro global: retomar o debate da água como bem comum e não mais como mercadoria.

*Renata Furigo, Funcionária Pública municipal, Engenheira Civil, Mestre em Saúde Pública, Doutora em Urbanismo. Coordenadora geral do ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos a Água e ao Saneamento.

[1] SÁ, Sabrina. Prolagos é condenada a excluir a tarifa de esgoto da conta e pagar dano moral coletivo. Portal RC 24h, 21 de março de 2023. Disponível em https://rc24h.com.br/prolagos-e-condenada-a-excluir-a-tarifa-de-esgoto-da-conta-e-pagar-dano-moral-coletivo/. Acesso em 23 mar 2023

[2] Bastos, R.K.X. (2023). Qualidade da Água nos Sistemas de Abastecimento sob Responsabilidade da Saneouro, Ouro Preto-MG. Estudo com Base nos Dados de 2022 do SISAGUA -Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano.

[3] SWYNGEDOUW, E. Águas revoltas: a economia política dos serviços públicos essenciais. In: HELLER, L.; CASTRO, J. E. (org.). Política pública e gestão dos serviços de saneamento. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013.

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