ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Para salvar alguma coisa no saneamento – artigo

Elias Haddad Filho[1]

Ao contrário do que às vezes nos querem fazer acreditar, a magnitude e perfil das desigualdades não caem diretamente do céu nem sobem diretamente dos infernos sobre nossas sociedades. Elas são resultado de escolhas que as sociedades fazem.[2]

As leis são um reflexo de uma disputa entre as forças existentes nas casas legislativas durante a sua elaboração, bem como da pressão de lobbies e da sociedade em geral sobre os legisladores, principalmente seus líderes. Obviamente, admitidas as condições estabelecidas pela Constituição de 1988.

É possível enxergar quais foram os grupos de interesse que pautaram a elaboração a lei federal 14.026, que traz alterações ao Marco do Saneamento (lei federal 11.445/07). A legislação estabelece diretrizes claramente favoráveis à elevação da participação privada no setor, em prejuízo das empresas estaduais de saneamento e das autarquias e órgãos de prestação direta dos serviços pelas administrações municipais. A imposição da regionalização por meio do agrupamento de municípios é um fato que trará, junto com as dificuldades de caixa dos estados e municípios, a crescente participação das grandes, principalmente, empresas privadas de saneamento na prestação de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário.

Vivemos em uma sociedade que pouco ou nada cuida das pessoas, e menos ainda dos mais desfavorecidos, marginalizados, excluídos. Isto, também, está escancarado nos detalhes da Lei 14.026. Destacam-se duas questões sobre as quais acredito ser importante tecer algumas considerações: a primeira é a questão do financiamento dos investimentos a serem realizados para se tentar atingir a universalização; e a segunda é o absurdo “esquecimento” de quem são os sem-água, um “detalhe” que mostra bem quem somos enquanto sociedade.

Quem financiará o investimento para a universalização?

A formulação do modelo de financiamento estabelecido pelas alterações na legislação praticamente impõe a entrega, em prazo maior ou menor, dos vários arranjos regionais que surgirão, para a operação privada. A participação dos municípios em arranjos regionais, que se encontram em elaboração em várias unidades da federação, será, na prática, mandatória, uma vez que restringe o uso de recursos oriundos da União ou geridos por ela e por seus organismos aos modelos de organização da prestação dos serviços propostos na legislação, exclusivamente.

Os recursos que virão a financiar a universalização dos serviços promovida por um processo de desestatização/privatização  incentivado pelos governos e operacionalizado principalmente pelo BNDES se originarão de uma fonte única, em última análise, as tarifas pagas pelos próprios usuários do sistema.

Explicando melhor: os recursos trazidos pelas empresas privadas são, na verdade, recursos públicos captados em contratos de financiamentos juntos aos bancos estatais, e cujos pagamentos serão pagos, ao final, pela população por meio das tarifas.

Se se admite que esta é a forma adequada de se financiar ativos de custos tão elevados, ok. Os usuários dos serviços financiarão nos prazos estabelecidos os investimentos necessários a universalização o que implicará em tarifas muito mais elevadas e tão mais elevadas quanto mais curto for o prazo estabelecido para a universalização.

No entanto, a prática nos países onde a questão da universalização está resolvida não foi bem essa. A implantação de uma parcela majoritária dos ativos para a prestação de serviços de saneamento se deu, nestes países centrais, com forte subsídio ao financiamento do investimento (CAPEX), o que possibilitou a universalização. A tarifa paga àquela época não incorporaria as parcelas relativas ao financiamento à implantação dos ativos, mas apenas a reposição das necessidades para expansão futura e manutenção dos sistemas existentes, além das despesas operacionais correntes, por óbvio.

Mais uma jabuticaba: o usuário do serviço, inclusive o pobre, arcará com o financiamento bilionário dos ativos necessários a universalização, e não o tesouro. É o governo transferindo para todos nós, usuários dos serviços, a responsabilidade de financiar o investimento nos sistemas de água e esgoto para a população.

Haverá a universalização?

Resta ainda tentarmos, em um exercício de futurologia, imaginar a que universalização se refere o texto da Lei 14.026.

Será possível com este modelo de financiamento atingir a universalização? E chama-se universalização atender com serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário a todos os brasileiros que vivam no nosso território.

A legislação recentemente aprovada não leva em consideração as especificidades de cada região ou estado deste país. A criação das unidades regionais de saneamento e/ou blocos de referência não garante de forma alguma o atendimento àqueles que não têm os serviços.

É sabido que os não atendidos adequadamente habitam: 1. As regiões peri-urbanas das cidades médias e grandes; 2. Comunidades rurais aglomeradas e dispersas; 3. Comunidades indígenas e quilombolas; e 4. mesmo sedes de municípios muito pouco populosos.

Mantidos os mesmos modelos de contratos entre empresas e municípios ou regiões, será atendida apenas a população residente nas sedes municipais e áreas urbanas com maiores contingentes populacionais, não se cuidando, mais uma vez dos esquecidos “sem-água”.

A lei falhou ao não explicitar a necessidade objetiva e concreta de determinar que o atendimento universal no município deve incluir toda a população e não apenas os moradores em áreas definidas como urbanas e adensadas ou áreas formalmente estabelecidas.

É possível, mesmo provável, que não se atinja a pretendida universalização na maior parte dos municípios onde existam grandes contingentes de população habitante em áreas rurais, dispersas ou aglomeradas, como também naqueles em que existam grandes áreas ocupadas não formalmente estabelecidas. Desta maneira, o problema da universalização permanecerá.

Conclusão

Uma legislação elaborada a toque de caixa com flagrantes interesses pouco ortodoxos presentes não poderia resultar em boa coisa. Cabe aos definidores de políticas regionais estaduais aprofundar o detalhamento legal estabelecendo critérios mais específicos para:

  1. Garantir recursos não onerosos que visem impactar favoravelmente no estabelecimento de tarifas acessíveis à toda a população, seja por meio de fundos específicos, seja pela consecução de recursos advindos de orçamento próprio, da União ou agências de fomento internacionais;
  2. Estabelecer prioridades de atendimento, notadamente àquelas populações hoje desassistidas, os “Sem-água”.

Para encerrar cito uma resposta dada por Ricardo Paes de Barros, o PB, em recente entrevista dada à Folha de São Paulo, que cabe muito bem no assunto tratado aqui. Estamos fazendo uma política pública cega, sem identificarmos adequadamente, quem são e o que precisam os “Sem-água”.

 Depois de um ano da eclosão da pandemia, estamos no caminho correto em termos do auxílio emergencial?

Nosso problema nunca foi não ter dinheiro para transferir renda para quem precisa. Foi não saber quem precisa. E nós temos mais de 250 mil assistentes sociais na ponta, nos CRAS (Centros de Referência da Assistência Social) mais um número gigante de pessoas da sociedade civil que sabe quem precisa.

Acho que o que falta para o Brasil é a capacidade de conversar com a população pobre, chegar nela, e descobrir o que estão precisando. Muita gente não precisa de transferência de renda. Precisa de apoio para se reinserir no mercado de trabalho, um abrigo para um idoso, uma vaga na creche para uma criança.

A gente não conversa com essas pessoas. O custo de não conversar é, simplesmente, muito alto. E aí não temos como pagar a conta. Fazer uma política cega é impossível.[3]

[1] Engº civil pela UFMG, MBA em Gestão de Empresas de Saneamento, diretor da H&A Saneamento, e associado do ONDAS.

[2] Ascensão e queda do bem-estar e a encruzilhada brasileira. Carla Bronzo, Bruno Lazzarotti, Matheus Arcelo Silva e Marina Silva. Todos da Fundação João Pinheiro na Folha de São Paulo.

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/desigualdades/2021/03/ascensao-e-queda-do-bem-estar-e-a-encruzilhada-brasileira.shtml#:~:text=Ao%20contr%C3%A1rio%20do%20que%20%C3%A0s,escolhas%20que%20as%20sociedades%20fazem.

[3] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/02/idosos-ricos-deveriam-ajudar-a-pagar-a-conta-da-pandemia-diz-economista.shtml

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *