ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Por que governos locais decidem privatizar a prestação de serviços de água? Evidências da Espanha

 

Texto da interação ONDAS-Privaqua*
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POR QUE GOVERNOS LOCAIS DECIDEM PRIVATIZAR A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE ÁGUA? EVIDÊNCIAS DA ESPANHA

Resenha do artigo: Why do local governments privatize the provisiono of water services? Empirical evidence from Spain.

Autora: Estela Macedo Alves – Pós-doutoranda no Instituto René Rachou / Fiocruz Minas Gerais e no Programa USP Cidades Globais. Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (2003), mestre em Planejamento Urbano e Regional (2009) e doutora em Ciência Ambiental (2018) ambos pela Universidade de São Paulo.

Introdução

Por que alguns governos decidiram privatizar os serviços de abastecimento de água, em diversas cidades de países desenvolvidos? O artigo procura responder a esta questão com base em uma pesquisa que analisa estatisticamente, a partir de dados oficiais, os fatores que levaram à privatização dos serviços de abastecimento de água, em diversas cidades espanholas. De acordo com os autores, embora não haja ganhos relevantes de eficiência na privatização dos serviços de abastecimento de água, ainda assim esta ocorreu em diversas cidades de países desenvolvidos. Em municípios do sul da Espanha, na região de Andaluzia, foram pesquisadas 741 municipalidades, a partir de dados do período de 1985 a 2006, sobre os serviços urbanos de abastecimento de água. Foram analisados possíveis fatores que levaram à preferência pela privatização, destacando-se: condições políticas, tamanho dos municípios, seus encargos financeiros e o efeito de vizinhança.

O artigo relembra que o debate sobre a privatização teve início na década de 1960, com discussões sobre as vantagens e desvantagens da intervenção do Estado na economia. Na década de 1980, durante o primeiro governo de Margareth Thatcher no Reino Unido, teve início o programa de privatização de serviços públicos em larga escala, que logo se refletiu no mundo todo. Além de pretensas vantagens econômicas para o estado e previsões de retorno em impostos, havia o objetivo de fomentar o desenvolvimento do mercado financeiro.

As questões políticas e ideológicas influenciaram fortemente o processo: os governos conservadores foram os primeiros a realizarem as privatizações, reduzindo a influência do setor público na economia e diminuindo o poder dos sindicatos.

Em seguida, a privatização transformou-se em um fenômeno global, independente da ideologia dos governos. A justificativa era melhorar a eficiência econômica e a produtividade dos serviços, para o alcance dos objetivos de bem estar social. Porém, os autores afirmam que, 25 anos após os primeiros programas de privatização, ainda não há evidências da melhoria da performance nos serviços, principalmente daqueles em que não há concorrência.

Para os serviços privatizados e que são monopólios naturais, ou seja, quando não há espaço para concorrência, como no caso do abastecimento de água, as vantagens econômicas só foram alcançadas com o enfraquecimento da regulação.

Há controvérsias, quando se confrontam teorias que afirmam que o comando político das estatais podem estar submetidos aos interesses particulares dos administradores públicos antes da busca pelo bem estar-social. Ou ainda, as relações entre diretores e executores dos serviços são mais eficientes na empresas privadas, uma vez que há maior monitoramento sobre o desempenho dos funcionários; além de existirem maiores incentivos à inovação e à redução de custos, no setor privado.

Análises realizadas sobre privatização de diversos setores revelaram ser mais significantes os processos de privatização em mercados de larga escala, como o setor aéreo e a telefonia. Empresas menores, para atendimento em nível local, como a prestação dos serviços de abastecimento de água em áreas urbanas, em geral são objetos de desregulamentação, na busca pelas vantagens econômicas.

In fact, in most of the studies reviewed, the diferences in terms of efficiency between public and private sector management were not significant. (GÓNZALES-GÓMEZ et al., 2011, p.473).

Estudos de caso sobre privatização dos serviços de abastecimento: decisões complexas

Revisando a literatura sobre o tema de casos em várias partes do mundo, os autores apontam que a opção pela privatização depende do tipo de serviço e do tamanho da população das cidades. A privatização tem sido vista como mais vantajosa quando se trata de economia de escala e as cidades mais populosas apresentam custos de transação mais baixos para as empresas privadas.

A privatização de serviços em municípios menores depende de estratégia de criação de consórcios intermunicipais, para divisão dos custos fixos dos serviços. Relata-se a monopolização dos serviços em regiões inteiras como estratégia fundamental de privatização na Europa.

Outro importante fator que influenciou a privatização de serviços, nesse caso observado em cidades americanas na década de 1980, foram mudanças nas leis, que passaram a limitar orçamentos públicos e empréstimos aos governos locais, levando às decisões de terceirizar determinados serviços.

Em relação aos fatores políticos e ideológicos, o estudo identifica que fortes grupos econômicos e ofertas de apoio político podem influenciar a decisão dos governos pela privatização de serviços. Isto ocorre porque, quando o serviço é público, o dinheiro é totalmente controlado e quando há terceirização, os políticos podem ter ganhos materiais por meio das empresas beneficiadas, inclusive para suas campanhas. Porém, a privatização pode ser evitada quando há associações de servidores públicos que têm forte atuação. De forma geral, constatou-se que os governos conservadores têm maior propensão à privatização que os governos progressistas.

O estudo sugere ainda como fator relevante à decisão de privatizar serviços de abastecimento, o fato de cidades vizinhas terem privatizado, ou seja, o fator de vizinhança. Os motivos principais são a redução de incertezas e da relutância da população e ofertas atrativas de empresas que já estejam atuando no entorno.

A defesa do serviço público de abastecimento de água se sustenta pelos argumentos da natureza da água como um bem público e as características da produção de água potável, que deve ser ambientalmente sustentável, além da garantia de universalização do acesso e de comprometimento com a qualidade da água.

Estudos sobre 2.109 empresas de abastecimento de água que atam em cidades com mais de 5.000 habitantes apontaram que há menores chances de privatização nas cidades com menor população e aquelas que tenham águas subterrâneas. Por outro lado, quanto mais populosas forem as cidades e quanto mais difícil for para obtenção de recursos financeiros pelos governos locais, maiores as chances de privatização. Observou-se ainda que, no caso francês, as empresas privadas cobravam maiores tarifas que as públicas e que havia maior probabilidade de reduzir a qualidade da água fornecida, principalmente em cidades turísticas localizadas na costa, onde há menor densidade de usuários na rede. Essa conclusão indica que os fatores do direito humano à água com qualidade e quantidade para todos está em xeque, quando não há equilíbrio econômico-financeiro para a empresa privada. Desta forma, corroborando o argumento de que a privatização fere o cumprimento ao direito humano à água em quantidade e qualidade adequados.

Estudos sobre 133 municipalidades na Catalunha, Espanha, entre 1980 e 2002, revelaram que, nos anos 1980, as motivações para a privatização dos serviços de abastecimento de água foram a necessidade de mais investimentos. Já nos anos 1990, o objetivo das privatizações foram o aumento da eficiência. Como resultados dessas privatizações, observou-se o aumento de preços pela água fornecida nas cidades espanholas, nas décadas seguintes.

Outro estudo em governos locais de Portugal analisou a opção entre serviços públicos ou privados, relatando que a o fator de dependência financeira do montante enviado aos municípios pelo governo central determinou a decisão de alguns governos locais pela privatização de serviços de abastecimento de água e de manejo de resíduos sólidos.

Análises sobre a Andaluzia, sul da Espanha

Na Espanha, o abastecimento de água em áreas urbanas é responsabilidade dos governos locais, desde a Lei Federal 7 de 1985, mas os serviços podem ser delegados a empresas públicas ou privadas. Quase 50% da população urbana das cidades espanholas é abastecida por empresas privadas, a maior porcentagem entre os países desenvolvidos.

A região da Andaluzia, que tem população de aproximadamente 8,2 milhões de habitantes, sofre muitas pressões sobre os recursos hídricos, tanto por características ambientais, quanto por decisões governamentais sobre a produção de água, por restrições orçamentárias e por ideologia política dos governos locais naquela região.

Em relação às questões ambientais, as bacias mediterrâneas, ao sul da Andaluzia – Bacias Andaluzes Mediterrâneas – estão sob clima semidesértico e há superexploração das águas subterrâneas, além da intrusão de água salgada nos aquíferos. Além disso, o setor turístico sazonal exerce forte pressão sobre a disponibilidade hídrica dessa região.

Em relação a fatores políticos, de nível nacional, desde a entrada na União Europeia em 1986, a Espanha criou leis mais firmes em relação aos processos de produção de água, com maior exigência de qualidade, o que levou diversos conselhos municipais a privilegiarem a privatização da produção e distribuição de água potável, pelas exigências tecnológicas dadas pela legislação nacional.

Outro fator relevante para que os governos locais decidissem por privatizar os serviços de abastecimento de água na Andaluzia foi consequência da descentralização da administração pública espanhola, pela nova organização dos setor publico espanhol, a partir do final dos anos 1970. Os governos locais ficaram responsáveis por um grande número de serviços públicos, porém os recursos financeiros não eram suficientes para as novas funções.

Já em relação aos fatores ideológicos, no caso da Andaluzia, é contraditório que uma região predominantemente dominada por partido de centro-esquerda, com maioria favorável ao Partido Socialista Obrero Español, no período da pesquisa, fosse favorável à privatização dos serviços de abastecimento de água. No entanto, fatores pragmáticos, como orçamento insuficiente dos governos locais e necessidade de investimentos em novas tecnologias, foram mais relevantes na decisão favorável à privatização, mesmo frente à defesa dos preços moderados, da qualidade dos serviços e dos empregos públicos.

Conclusões do estudo

Considerando os municípios de Andaluzia, observaram-se que fatores pragmáticos, tais como: limitações orçamentárias, necessidade de implementação de novas tecnologias e condições climáticas e ambientais foram os que mais influenciaram nas decisões dos governos locais sobre privatização. Foi também importante a constatação de que os fatores políticos ideológicos não foram relevantes nas decisões, pois, apesar desta região ter a maioria ligadas a partidos de centro-esquerda, com influência de associações de servidores públicos, houve grande número de privatizações dos serviços. Mas, para aqueles municípios não privatizados, a forte representatividade de associações de trabalhadores foi fator importante para a manutenção dos serviços públicos.

Conclui-se que a falta de recursos financeiros e as dificuldades naturais, referentes ao clima e meio ambiente fizeram com que muitos governos locais procurassem as empresas privadas para resolverem os desafios do abastecimento de água. Concluiu-se, ainda, que as empresas privadas fixaram-se prioritariamente em municípios maiores, com chances de maior rentabilidade.

Referência

GÓNZALES-GÓMEZ, F. et al. Why do local governments privatize the provisiono f water services? Empirical evidence from Spain. Public administration Vol.89, No.2, 2011 (471-492). Doi: 10.1111/j.1467-9299.2010.01880.x

 

* INTERAÇÃO ONDAS-PRIVAQUA: DE OLHO NA PRIVATIZAÇÃO DO SANEAMENTO
Privaqua é um projeto de pesquisa que obejtiva entender processos de privatização dos serviços de água e esgotos, tendo por orientação teórico-analítica o marco dos direitos humanos. Neste espaço do site do ONDAS, o Privaqua publica periodicamente textos curtos sobre a temática do projeto, visando divulgar achados parciais, compartilhar reflexões e disseminar elementos da literatura científica sobre o tema. A intenção é a de dialogar com um público não necessariamente familiarizado com a linguagem acadêmica e com os veículos tradicionais de comunicação científica. Trata-se de uma tentativa de exercitar o que se denomina de divulgação científica, para público não-especializado, transpondo os chamados “muros acadêmicos”. O desafio é de, sem perder o rigor, disseminar aspectos do tema da privatização dos serviços de saneamento, visando sobretudo qualificar as atividades da militância do setor.

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