Alex M. S. Aguiar*
Em reunião transmitida na tarde de 26 de junho passado por meio de seu canal no YouTube®[1], a ARSAE, agência do estado a qual compete a regulação e fiscalização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário prestados pela COPASA, consolidou a revisão tarifária daquela Companhia. Este processo ocorre a cada ciclo de quatro anos, e as novas tarifas passam a valer a partir de 1º de agosto próximo.
Imediatamente ao fim da reunião, e, também, nos dias subsequentes, proliferaram as notícias enaltecendo uma histórica redução de até 15% nos valores da conta de água, fato reproduzido pelo próprio Governador em suas redes sociais. Infelizmente, a despeito do empenho da ARSAE e do Governo na divulgação deste fato, nem 15% dos usuários da COPASA terão redução de suas contas nesse patamar. Adicionalmente, uma parte significativa dos usuários passará a perceber, na realidade, um aumento em suas contas.
Em geral, cerca de 80% do volume de água consumido em uma residência é transformado em esgotos: as águas utilizadas nos chuveiros, nos sanitários, nas cozinhas etc. Com isso, há uma dificuldade dos usuários – e, também, dos prefeitos, representantes do poder concedente dos serviços – em aceitar a cobrança pelos serviços de esgotos sanitários (aqui incluídas as etapas de coleta e de tratamento) com a equivalência de 100% do volume consumido de água. Ademais, o desconhecimento acerca dos inúmeros ganhos sociais, ambientais, e econômicos também concorrem para essa pouca aceitação. As tarifas cobradas, contudo, devem refletir os custos de implantação, manutenção e reposição dos ativos desses serviços, e não essa relação entre os volumes de água e de esgotos.
Nessa revisão, a ARSAE rendeu-se à essa dificuldade da população em geral. Ao invés de promover a integralidade da prestação dos serviços, mediante a inclusão de obrigação ao prestador dos serviços de realizar campanhas e ações de educação sanitária dirigidas aos cidadãos, optou pelo fim da cobrança diferenciada pelos serviços de “coleta dos esgotos” (EDC) e de “coleta seguida de tratamento dos esgotos” (EDT), que até então eram tarifados com base nos percentuais de 25% e 100% do valor cobrado pelo consumo de água, respectivamente. A partir de agosto será cobrado um valor único, equivalente a 74% do valor cobrado pela água consumida, independente de usuário ainda não ser atendido com o tratamento dos esgotos.
Com isso, há a tendência evidente de uma redução das contas daqueles usuários atendidos pelos serviços de coleta e tratamento de esgotos, cujas tarifas passarão da referência de 100% do valor cobrado pela água para 74%. Contudo, aqueles usuários que têm hoje apenas a coleta dos esgotos sofrerão aumento em suas contas.
Na verdade, parte dos custos – um pouco mais do que aqueles referentes à etapa de tratamento dos esgotos – deixam de ser cobrados apenas de quem recebe esse serviço, passando a serem subsidiados pelas tarifas daqueles que ainda não o recebem: os usuários das cidades onde a COPASA opera apenas os serviços de água; e aquelas onde ou ainda não há o tratamento dos esgotos, ou essa etapa de tratamento ainda não atende a todos. Essa estratégia é confirmada na exposição da equipe técnica da ARSAE durante a reunião da sua diretoria colegiada em 26/06/2021: “… não se pagando mais a tarifa de tratamento de esgoto, você tem que financiá-la de uma outra forma. E aí o que a gente utilizou foi: dividir o custo do tratamento (de esgotos) nas tarifas de coleta (de esgotos) e de água.” Ou seja, os custos referentes ao tratamento dos esgotos passarão a integrar os valores cobrados pelo fornecimento de água e pela coleta dos esgotos, mesmo daqueles usuários que não recebem este serviço.
O problema com essa estratégia é que os usuários da COPASA são submetidos a diferentes tarifas, dependendo dos serviços que são prestados. Assim, onde a Copasa detém apenas a concessão do abastecimento de água, os usuários pagam tarifas apenas referentes à água fornecida. Já onde a Copasa detém as concessões de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, duas situações podem ocorrer: (i) se os usuários são atendidos com água e com apenas a coleta dos esgotos, pagam as tarifas destes serviços (água+EDC); e (ii) se os usuários são atendidos pelos serviços de abastecimento de água, de coleta e de tratamento dos esgotos, pagam os serviços de água, coleta e tratamento dos esgotos (água+EDT). Ora, distribuir os custos do serviço de tratamento dos esgotos nas tarifas de quem não recebe esse serviço não pode ser considerado um exemplo de “justiça tarifária”, expressão com a qual o diretor geral da ARSAE adjetivou esta revisão tarifária.
De acordo com os quadros-resumo referentes ao impacto tarifário sobre a categoria de consumo Residencial, apresentados na reunião referida, verifica-se que as contas dos usuários que recebem apenas o serviço de abastecimento de água sofrerão aumentos de 4,66% até 8,03%, caso seus consumos sejam de até 10 m³. Para os usuários que são atendidos apenas com o abastecimento de água e que integram a categoria beneficiada com a tarifa social (renda per capita inferior a ½ salário-mínimo), os aumentos são maiores: variam de 5,14% a 8,46% para as economias com consumo mensal entre 5 e 10 m³, e superam 40% para aquelas com consumo mensal superior a 30 m³. Ou seja: maiores aumentos exatamente para quem tem menos recursos.
Adicionalmente, são 603.594 economias (aproximadamente 1,5 milhões de pessoas) atendidas pelo abastecimento de água e pela coleta dos esgotos, mas ainda sem a etapa de tratamento. Essas economias se encontram em 104 dos 223 municípios onde a Copasa tem a concessão de esgotos. Desses 104 municípios, 67 (30%) não têm a etapa de tratamento dos esgotos, e nos 37 restantes o tratamento é aplicado a menos que 90% do volume de esgotos coletados. Para essas unidades consumidoras, as contas também sofrerão aumentos de até 50,35% para consumos até 10 m³, e entre 34,9% e 37,09% para consumos maiores que 10 m³. No caso dos usuários beneficiados com a tarifa social os aumentos também serão maiores: entre 46,43% e 51,01% para consumos mensais até 10 m³, chegando a 102,11% para consumos mensais superiores a 30 m³.
E quem são os usuários submetidos a esse aumento em suas contas de água? De acordo com os dados do Serviço Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) referentes ao ano de 2019, a COPASA presta apenas o serviço de abastecimento de água em 358 municípios do estado. Destes, 300 (83,8%) são municípios pequenos, com populações inferiores a 10.000 habitantes. Os dados do CECAD[2] para esses 358 municípios apontam que as pessoas em Extrema Pobreza (renda per capita mensal de até R$89), Pobreza (renda per capita mensal entre R$89 e R$178) e Baixa Renda (renda per capita mensal entre R$178 e ½ salário-mínimo) são quase 40% da população total desses municípios, sendo que em 25% deles superam 50% da população. Também baseado nas informações do SNIS, o consumo médio das unidades consumidoras nesses municípios, obtido a partir dos indicadores “Volume Consumido” (AG010) e “Quantidade de Economias Ativas” (AG003), encontram-se no intervalo de até 10 m³/mês – e que sofrerá aumento das contas – em 318 (88,9%) deles.
Em 50% dos 104 municípios onde os usuários são atendidos por água e apenas pela coleta de esgotos, os índices de vulnerabilidade financeira obtidos a partir dos dados do CECAD apontam que a parcela da população em condições de Extrema Pobreza, Pobreza e Baixa Renda) é superior a 30%, chegando a superar 50% em 16 municípios (15,4% do total) e 60% em 4 municípios.
Em suma: esse aumento nas contas de água será dirigido às populações de pequenos municípios, cujos usuários consomem menos água, e com parcelas elevadas da população em situação de vulnerabilidade financeira. Mais uma vez, os dados conflitam com a adjetivação de “justiça tarifária” que foi dada a essa revisão das tarifas da Copasa.
Diferente do alardeado, a redução de 15% será restrita a pouco mais de 520 mil economias, hoje já atendidas com abastecimento de água, coleta e tratamento dos esgotos. Essas economias se encontram em municípios de maior porte (22% deles com população superior a 50.000 habitantes) e com menores índices de vulnerabilidade financeira (25,5% da população em Extrema Pobreza, Pobreza, e Baixa Renda). Já as unidades consumidoras que serão afetadas com aumentos em suas contas somam mais de 1,16 milhões de economias, todas elas ainda sem o tratamento dos esgotos.
Um aspecto também negativo dessa revisão é que nos casos em que efetivamente há a redução das tarifas, essa redução é maior para as faixas de maior consumo. Assim, mesmo vivenciando uma crise climática que impacta significativamente a oferta hídrica – basta ver os atuais níveis de água nos reservatórios do setor elétrico – a distribuição da redução na tarifa adotada pela ARSAE privilegia aqueles que consomem mais água.
Ainda que haja uma redução média de cerca de 1,5% nas contas da Copasa, será grande o número de usuários que se surpreenderá com aumentos em suas contas, e alguns deles significativos, podendo levar a um crescimento da inadimplência – e isso em uma época de pandemia da COVID 19 e de índices crescentes de desemprego. Grande parte dos impactos decorrentes desses aumentos poderia ter sido evitada com a ampliação dos descontos da tarifa social, alternativa essa estudada e proposta pela equipe técnica da ARSAE, mas refutada pela diretoria daquela Agência[3].
Para infortúnio de nós, mineiros, a revisão tarifária adotada pela ARSAE, que vai impactar a vida de 12 milhões de pessoas, vai passar a cobrar – e mais – de quem ainda não recebe os serviços, e privilegiar, cobrando menos, quem já recebe os serviços e que, em plena crise climática, gasta mais água.
Não é segredo que Zema quer se ver livre da COPASA e da responsabilidade do estado em prover saneamento às pessoas. Talvez sejam essas as razões de Zema comemorar esse processo de revisão: ao invés do estado, são os usuários que financiam os investimentos e o lucro dos prestadores de serviço, com a conivência da ARSAE. Com isso, Zema vai prosseguir atuando para ampliar a insatisfação das pessoas com o saneamento público, e pavimentando sua entrega ao setor privado.
[1] Disponível no endereço https://www.youtube.com/watch?v=kZsZ24pLQq8&t=2122s
[2] Sistema de Consulta, Seleção e Extração de Informações do CadÚnico. VIS DATA 3 beta. Disponível em https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/vis/data3/data-explorer.php
[3] [3] A.M.S.A. (2021). Quando o regulador se opõe à universalização: o caso da tarifa social de água em MG. Disponível no endereço https://ondasbrasil.org/quando-o-regulador-se-opoe-a-universalizacao/
*Alex M. S. Aguiar – Engº Civil e Sanitarista, Mestre em Saneamento, membro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento – ONDAS