ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Reflexões sobre um dos piores crimes socioambientais do Brasil sob uma ótica internacional

Artigo originalmente publicado por mab.org.br
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Por Caitlin Schroering do Comitê de Solidariedade ao Movimento dos Atingidos por Barragens nos EUARobert Robinson – the Take Back the Land movement

Ato de 1 ano de crime nos trilhos da Vale na região de Betim (MG). Foto: Nivea Magno

O dia 25 de janeiro de 2019 foi marcado por um dos piores crimes socioambientais já cometidos na história do Brasil. Na ocasião, uma barragem de propriedade da empresa transnacional brasileira Vale S/A se rompeu na Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), matando 272 pessoas, deixando centenas de milhares de atingidos e provocando danos socioambientais incalculáveis. Não foi um acidente. A Vale tinha ciência dos riscos que a sua operação oferecia no território.

Em janeiro de 2020, um ano após o crime, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) organizou uma delegação de 350 pessoas de todo o Brasil e 17 pessoas de outras partes do mundo para ir até Brumadinho ouvir em primeira mão os depoimentos das pessoas que perderam entes queridos e exigir que a Vale S/A fosse responsabilizada por seus atos.

Como membros do Comitê de Solidariedade ao MAB nos EUA, tivemos a honra de ser convidados para essas atividades de denúncia dos responsáveis e solidariedade aos atingidos.

Confiram algumas de nossas reflexões a partir dessa imersão, assim como nossas propostas sobre como potencializar a solidariedade aos atingidos, à medida que os impactos do crime de Brumadinho continuam e se agravam com as inundações e rompimento de novas barragens que ocorreram no mês passado em Minas Gerais.

Quando o MAB nos levou a Brumadinho, meus pensamentos rapidamente se voltaram para as atividades de um ano do rompimento da barragem de Mariana em 2016 e para as imagens da destruição imposta àquela comunidade em 2015, que ainda estavam na minha cabeça. Eu me perguntava em voz alta e falei para o grupo que estava no carro: “quanto mais as pessoas podem aguentar? Como essas injustiças continuam e os atores responsáveis ​​por esses crimes ficam impunes?”

Havia tanto trânsito na rota para chegar ao evento, que acabamos deixando o carro no estacionamento de uma universidade particular e caminhamos o último quilômetro até o local. Ao longo do caminho, passamos por um pequeno afluente do Rio Paraopeba e os sinais do rompimento da barragem eram aparentes, pois a água estava barrenta e adquiria uma coloração marrom escura.

À medida que nos aproximávamos do evento, ficou claro para todos os presentes o preço que essa tragédia havia cobrado dos atingidos. Estranhos estavam abraçando membros de famílias que perderam entes queridos e eu me vi fazendo o mesmo. A dor e o sofrimento não conhecem a barreira do idioma. Senti uma forte necessidade de abraçar e consolar pessoas que talvez nunca mais veja. Essa tragédia também me lembrou do privilégio que tenho como um ativista nos Estados Unidos com fortes conexões com certos mecanismos do escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas. Prometi a todas as famílias com quem falei que faria tudo ao meu alcance para denunciar esses crimes e injustiças para este órgão.

Ao final da programação, os organizadores do evento soltaram 272 balões vermelhos e brancos encerrando as atividades do dia. Eu me perguntei “o que vem a seguir? “Haverá um fim para a dor das pessoas atingidas?”

Cheguei a Belo Horizonte no dia 19 de janeiro de 2020. Na minha corrida de táxi para a minha hospedagem, começou a chover e o trânsito parou. O motorista disse que poderia seguir uma rota diferente (descendo um morro), mas notou que as estradas poderiam inundar e se tornar rapidamente perigosas, então era melhor ficar parado por um tempo. Eu disse que confiava em seu julgamento e que deveríamos permanecer parados. Eu assisti pela janela do carro ao longo de trinta minutos a rua abaixo de nós (o possível desvio) se transformar em um rio.

A ferocidade da água e a velocidade com que ela subia, varrendo rio abaixo qualquer coisa em seu caminho, me fez refletir sobre a Avenida Washington em Pittsburgh, PA, onde vivo. Lá, estou envolvida em um trabalho relacionado à justiça hídrica, porque muitas pessoas morreram devido às inundações. Enquanto eu observava a água subir trazendo à tona o lixo, eu vi uma parte de uma porta de um dos prédios ser levada rapidamente rio abaixo. Então, eu pensei em como todas aquelas casas foram totalmente inundadas com água (e sujeira e esgoto) no primeiro piso.

O taxista me disse que em algumas dessas situações há morte de pessoas. Pensei em como as mudanças climáticas só vão piorar essas coisas. Pensei em como, em geral, são os mais pobres que vivem nas áreas alagadas, sem recursos para escapar (ainda que existam exceções).

Embora a chuva e as inundações possam ser configuradas como desastres “naturais”, na maioria das vezes, os impactos dos alagamentos não são sentidos igualmente, pois as estruturas socioeconômicas e geopolíticas moldam quem é ou não impactado.

Pensei na fragilidade da vida. Eu estava segura e privilegiada lá em cima no carro. Tão rápido quanto a chuva veio, o dilúvio parou e o tráfego foi retomado lentamente, embora a viagem tenha sido um pouco precária até o final. Enfim cheguei em segurança onde todos nós, convidados internacionais, estávamos hospedados – uma escola de treinamento administrada por um dos principais sindicatos do estado.

Compartilho essa experiência porque me mostrou a força e a ferocidade da água na região. Isso me deu mais condições para entender esse contexto e as semelhanças e diferenças dos dramas vividos neste estado com as lutas mais próximas de minha casa nos EUA.

Pela primeira vez, nos encontramos no Brasil. Durante um dos últimos dias da nossa estada lá, discutimos o quão incrivelmente inovador, inspirador, prático e revolucionário é o trabalho do MAB – mas ninguém sabe sobre isso nos EUA. A gente refletiu sobre todos os vínculos e solidariedades que se formam e se constroem por meio dessa convergência, tanto com colaborações novas quanto antigas entre acadêmicos, pesquisadores e movimentos sociais. A maioria dos outros convidados internacionais também foram atingidos por projetos de barragens em seus próprios países, incluindo Colômbia, Venezuela, Guatemala, Espanha, França, Itália, País Basco, Turquia, Balcãs, Estados Unidos, México, Canadá e Chile.

Naquele dia 20 de janeiro de 2020, mais de 350 pessoas marcharam por um bairro de classe média/classe média alta de Belo Horizonte, a capital mineira, cantando: “não foi acidente, a Vale mata o rio, mata o peixe, mata gente” e “Vale destrói, o povo constrói.”

No dia 24 de janeiro, os participantes se reuniram para um seminário internacional organizado pelo MAB intitulado: “O Lucro Não Vale a Vida! Um ano do crime da Vale em Brumadinho.” No final deste seminário, todos os participantes internacionais foram convidados a se apresentarem e se levantarem. Cada um de nós recebeu uma rosa de militantes do MAB que vivem nas comunidades atingidas.

Palavras foram ditas sobre a importância da solidariedade internacional para trazer justiça às comunidades atingidas de Brumadinho e para criar o mundo que queremos. O momento foi terno, emocionante, poderoso e com uma dinâmica de poder mais horizontal, pois foi liderado pelas bases, pelas pessoas atingidas por esse crime. Também foi falado sobre como o MAB vê sua atuação como uma luta internacional.

Sabemos que o centro do imperialismo (uma forma internacional de capitalismo) é os Estados Unidos. Ainda assim, a maioria dos norte-americanos também não se beneficiam desse sistema e sofrem com ele e com suas formas inter-relacionadas de opressão como o patriarcado e o racismo (já que o MAB é sempre astuto em apontar suas interseções).

Embora o rompimento em Brumadinho seja considerado um dos piores crimes socioambientais da história do Brasil, não é o único exemplo de rompimento de barragem de grandes proporções no país.

Como foi bastante repercutido, em 2015, uma barragem se rompeu em Mariana, também em Minas Gerais, matando 19 pessoas em uma mina a céu aberto. A mina era operada pela Samarco, que é controlada pela Vale e pela australiana BHP Billiton (Lazare 2015).

Há outros casos de rompimento, porém, que foram invisibilizados pela mídia. Em 24 de janeiro de 2021, no segundo aniversário do rompimento de Brumadinho, uma barragem se rompeu em Santa Catarina. Em 25 de março de 2021, outra barragem se rompeu no estado do Maranhão. O rompimento da estrutura de propriedade de uma subsidiária da Equinox Gold (empresa de capital canadense) poluiu um dos reservatório de água do município de Godofredo Viana, deixando quatro mil pessoas sem água potável na comunidade de Aurizona.

No dia 22 de janeiro de 2021, o MAB realizou uma coletiva de imprensa internacional virtual para marcar os dois anos do colapso de Brumadinho.
Foi observado que uma das causas desses crimes é a privatização da Vale, que, segundo o MAB, roubou das pessoas sua soberania e riqueza, operando a partir de uma “lógica do lucro” ao invés de uma lógica de vida.

O governo brasileiro e a Vale S/A chegaram a um acordo em fevereiro de 2021 para finalizar o processo de reparação dos danos causados no território do Vale do Paraopeba. Os representantes do MAB argumentam, porém, que esse acordo não tem legitimidade, que a Vale e o governo não incluíram no processo a população atingida e que o valor em dólares concedido não é suficiente para cobrir os danos irreparáveis e contínuos causados pela Vale S/A.

No Brasil e no mundo, desastres de mineração, apagões de energia, falta de água e rompimentos de barragens são intrínsecos ao atual modelo de mineração e capitalismo. As corporações são guiadas pelo lucro e pelo capital financeiro, e os governos muitas vezes falham em responsabilizar as empresas.

Neste terceiro aniversário do crime de Brumadinho, diante de novas calamidades em curso, nós estamos com todos os atingidos e atingidas. Também estamos cientes de que colocar o lucro acima da vida contribuiu para as terríveis inundações e rompimentos de barragens que as regiões do Brasil enfrentam atualmente.

No final de 2021 e início de 2022, os estados da Bahia e Minas Gerais sofreram inundações catastróficas devido às chuvas excepcionalmente fortes que atingiram o Norte, Nordeste e Sudeste. Quase 100 mil pessoas estão desabrigadas e aproximadamente 700.000 mil foram deslocadas, a grande maioria no estado da Bahia.

Dezenas de pessoas morreram e até hoje quatro barragens se romperam na Bahia. As mudanças climáticas se agravaram com a exploração e a má conduta das grandes empresas de mineração e agronegócios, encorajadas pela falta de planejamento e regulamentações governamentais sob a administração atual.

1 comentário em “Reflexões sobre um dos piores crimes socioambientais do Brasil sob uma ótica internacional”

  1. Antônio Pereira Lima Sobrinho

    Parabéns ao ONDAS pelo excelente conteúdo protagonista na luta pela justiça sócio ambiental e dos dreitos humanos da água e saneamento.

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