SANEAMENTO COMO POLÍTICA PÚBLICA: UM OLHAR A PARTIR DOS DESAFIOS DO SUS
HELLER, Léo (Org.). Rio de Janeiro: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz / Fiocruz, 2018. ISBN: 978-85-8110-041-8
Nota do editor da seção Resenha, Amauri Pollachi:
Este recente livro, publicado pela Fiocruz, contém reflexões fundamentais para os debates sobre as políticas públicas de saneamento e saúde neste agudo momento de tentativa de desconstrução de conquistas sociais. Por sua densidade e relevância será objeto de quatro resenhas sucessivas, cada qual dedicada a um de seus capítulos, que serão publicadas quinzenalmente entre outubro e dezembro de 2019.
Agradecemos a Sávio Mourão Henrique pelo trabalho de fôlego dedicado à elaboração das resenhas.
Boa leitura!
O primeiro capítulo, de Telma Menicucci[1] e Raquel D’Albuquerque[2], “Política de saneamento vis-à-vis à política de saúde: encontros, desencontros e seus feitos” remete à elaboração das políticas de saneamento e saúde no Brasil.
O saneamento é transversal em termos de correlação com o território e a sociedade. Abrange as dimensões de saúde, meio ambiente, habitação, economia, emprego e renda. É determinante na relação doença e saúde, condição primordial para os primeiros esboços de uma construção política sobre o tema.
A ação governamental sobre saúde e saneamento se inicia de forma articulada. Até o final do século XIX havia um olhar preventivo sanitarista sobre o saneamento, uma ferramenta para reduzir ameaças de epidemias urbanas. Ainda na época colonial havia chafarizes e fontes públicas como forma de fornecer água para a sociedade. Próximo do fim do século XIX, o Estado assumiu a responsabilidade sobre os serviços de abastecimento e esgotamento, utilizando empresas privadas, geralmente inglesas, para operação dos serviços nos centros urbanos. A partir desse momento a água se torna mercadoria e os chafarizes públicos passam a ser desativados. Os serviços são concentrados em áreas com consumidores dotados de capacidade de pagamento e parte da população permanece desassistida.
Na primeira metade do século XX, a perspectiva sanitarista se fortalece com grandes obras de drenagem e sistemas coletivos de abastecimento e esgotamento nas principais cidades. Entre 1910 e 1930 identifica-se uma imbricação entre saneamento e saúde. O olhar coletivo, “fazendo da doença um problema nacional e não local” também pode ser visto pelo combate aos vetores de doenças e pela vacinação da população.
Saúde
A partir de 1930 a saúde e o saneamento começam a distanciarem-se. Na saúde, durante o primeiro governo Vargas são formados os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) que conduzem para um processo de securitização da saúde e individualização do cuidado médico, promovendo a compra de serviços médicos privados. Os IAPs atendiam categorias profissionais e acabavam por excluir os mais vulneráveis.
Apenas no final dos anos 1950 uma interpretação econômica favoreceu a expansão da assistência médica em nível nacional, ainda de natureza privada. A assistência médica favorecia a diminuição de afastamentos por doença e invalidez, que onerava o sistema previdenciário e colocava em risco o equilíbrio financeiro dos IAPs.
Durante o governo militar criou-se o INPS (Instituto Nacional de Previdência Social, 1966), que uniformizou os serviços para todos os assalariados, concentrando-os no hospital como local de encontro das especialidades médicas. Houve grande expansão do gasto público com a saúde, ainda que de cunho individual e assistencialista, em oposição à prevenção e à saúde coletiva. A assistência pública se dava através da rede privada e houve financiamento público para a construção de hospitais privados.
Nesse caldo de serviços potencialmente acessíveis, mas realizados pela rede privada, foi se constituindo um consenso de que o Estado deveria estender os serviços de saúde a toda a população. Por outro lado, a formação de cooperativas médicas e de planos privados de saúde, determinou novos e poderosos atores que até hoje se impõem no cenário de debate sobre a política de saúde.
Na década de 1980 a saúde privada dominava o ambiente de empregados no eixo sul-sudeste. O governo perdeu as capacidades regulatória e de produção de serviços públicos, garantindo até a renúncia fiscal das despesas com assistência médica privada sobre o imposto de renda, numa lógica perversa de subsídio aos profissionais pagadores de IR em detrimento do financiamento público e coletivo da saúde.
A formação da atual política de saúde iniciou-se na década de 1970 pelo movimento político-ideológico da reforma sanitária, articulando-se com outros segmentos sociais e governamentais como o movimento popular em saúde e a categoria dos médicos. A partir de 1980 contou com a força do Movimento Municipalista em Saúde. Tomando proveito da “janela política” da redemocratização, foi possível reconhecer a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantindo acesso universal (a todos) e igualitário e rompendo com o caráter meritocrático de assistência vinculada à inserção no mercado de trabalho.
Com base no art. 196 da Constituição Federal de 1988, a saúde foi estabelecida como parte da seguridade social numa lógica universalista e equitativa, assegurando o direito à saúde, à previdência e à assistência social, com orçamento próprio. A Lei 8080/1990 definiu o Serviço Único de Saúde (SUS) como política nacional de saúde, com orçamento próprio e responsabilidades definidas. Foi definida também uma intensa participação social na formulação das diretrizes e no acompanhamento dos serviços.
A política meritocrática (exclusiva para empregados do mercado formal) de tratamento individual (assistencialismo à doença) e liberal (serviço privado, focado no hospital e baseado em planos de saúde) permanece vigente até os dias de hoje, ainda que exista um sistema completo e universal de saúde implementado que atende à totalidade da população brasileira. Contudo, nunca houve uma condição de financiamento adequado para o SUS, que atualmente passa da condição de subfinanciado para desfinanciado com a aplicação da Emenda Constitucional 95, de 2016, que coloca em andamento o retrocesso na estruturação das redes de atendimento, o sucateamento e o possível desmonte do SUS.
Saneamento
Entre 1930 e 1964 pouco foi feito em termos de política pública nacional para o saneamento. Em 1964 criaram-se o Banco Nacional da Habitação (BNH) e o Sistema Financeiro do Saneamento (SFS) e, em 1966, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), responsáveis por financiar habitação e saneamento. Nesse momento, o saneamento se alia à política de habitação num quadro de crescimento descontrolado das grandes cidades e de necessidade de urbanização associada à instalação de sistemas de abastecimento de água. A inserção do saneamento no campo das políticas urbanas explicita seu divórcio em relação à política de saúde, com empresas públicas locais e poucas privadas prestando serviços numa lógica empresarial, focadas em áreas estratégicas do país.
Em 1971 foi criado o Plano Nacional de Saneamento (Planasa) que levou à instituição das Companhias Estaduais de Saneamento Básico (Cesb) contando com empréstimos do BNH, a cobrança de tarifas e o sistema de subsídios cruzados entre serviços e municípios. Esse modelo retirou protagonismo dos municípios e consolidou o cenário de grandes prestadoras estaduais sob uma lógica empresarial, com serviços remunerados diretamente pela população beneficiada.
Ainda que presente no debate prévio à constituinte, o saneamento não encontrou forças para despontar na Constituição Federal a não ser como competência da União em estabelecer diretrizes (art. 21), competência comum entre União, Estados e municípios na promoção (art.23) e a participação do SUS na elaboração das políticas de saneamento (art.200). Há entendimento de que o artigo 30, que determina as responsabilidades dos municípios, inclui o saneamento como serviços públicos de interesse local.
Observa-se o claro distanciamento entre o saneamento, numa lógica empresarial, da saúde, numa lógica de direito e acesso universal. Menicucci e D’Albuquerque apontam que “no caso do saneamento, o cidadão portador de direitos transforma-se em consumidor de serviços.”.
No final do século XX afloram a fragilidade financeira das empresas de saneamento, os conflitos federativos quanto à titularidade, a ausência de regulação de preços e das relações entre municípios e estados, a defesa pela universalização do acesso e a participação popular e a participação de atores articulados por um ideal de saneamento como direito.
Em 2003 é criado o Ministério das Cidades e a Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental (SNSA), preenchendo um vazio institucional. Dentro do Conselho das Cidades, órgão participativo e deliberativo, foi estruturada a Câmara Técnica de Saneamento Ambiental. Com grandes espaçamentos entre atos, em 2007, é promulgada a Lei nº 11.445 como a política nacional de saneamento, em 2010, editado o decreto 7.217/2010 e, em 2013, divulgado o Plano Nacional de Saneamento (Plansab).
Análise da correlação saneamento e saúde
São apresentados dados do crescimento das estruturas de saneamento e da correlação com renda, IDH, pobreza, índice de GINI, taxa de mortalidade infantil e doenças diarreicas. As autoras afirmam que “se a curto prazo o efeito mensurável do abastecimento de água e do esgotamento sanitário pode parecer reduzido, pela resposta não linear da intervenção, a longo prazo seu efeito sobre a saúde é substancialmente superior ao de intervenções médicas.”.
Estudos no Brasil e em 21 países da América Latina concluem pela forte relação entre a cobertura dos serviços de saneamento e a redução da taxa de mortalidade infantil até 5 anos.
As autoras concluem que “o que coloca um tema na agenda governamental não é sua natureza objetiva, mas o fato dele se tornar um problema político”. A existência mais precoce de movimentos políticos articulados no campo da saúde permitiu avanços mais contundentes nessa área.
No saneamento, as decisões mais relevantes “partiram de governos autoritários, que imprimiram a marca da política enquanto fator de desenvolvimento, empreendimento empresarial, com serviços remunerados diretamente pela população beneficiada, e a cargo de empresas estaduais.”.
Assim, o texto de Menicucci e D’Albuquerque é de grande relevância para reconhecer a trajetória das políticas e compreender que existem fatores históricos que levam a diferentes resultados para a Saúde e o Saneamento.
Por Sávio Mourão Henrique[3]
[1] Doutora em Ciências Humanas, Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora associada da UFMG.
[2] Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da UFMG.
[3] Biólogo pela Universidade de São Paulo e Mestre em Planejamento e Gestão do Território pela Universidade Federal do ABC, Atua há 15 anos como consultor em planejamento urbano e ambiental com foco em recursos hídricos e saneamento. É diretor do SAS Brasil, pesquisador e apoiador do ONDAS.
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▪ Resenha do 3º capítulo: Padrão de investimento e a estratégia financeira das grandes empresas regionais do setor de Água e Esgoto (A&E) no Brasil
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