ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Saneamento como política pública: outro mundo é possível e desejável – capítulo 4

saneamento como política públicaSANEAMENTO COMO POLÍTICA PÚBLICA: UM OLHAR A PARTIR DOS DESAFIOS DO SUS – CAPÍTULO 4

HELLER, Léo (Org.). Rio de Janeiro: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz / Fiocruz, 2018. ISBN: 978-85-8110-041-8

No quarto e último texto do livro, denominado Saneamento no Brasil: outro mundo é possível e desejável, Léo Heller afirma que o setor de saneamento exibe quadros mais atrasados e trajetória mais acanhada se comparado a outras políticas públicas no Brasil. Não possui ancoragem na CF e demorou 20 anos para ser regulamentada em lei, com explícitas tensões entre os agentes do setor em décadas de debates. O autor manifesta preocupação quanto ao atingimento da meta de universalização do acesso com qualidade e apresenta incompletudes e ambiguidades legais como a incapacidade de formulação como política, a dificuldade de coordenação de agentes para direções convergentes e a instabilidade no cenário político, resultando em efeitos negativos para a parcela da população negligenciada pelos serviços dentro de um quadro de elevada assimetria no acesso no Brasil (urbano x rural, renda, escolaridade, cor da pele).

As causas desse quadro são diversas e inter-relacionadas: condições políticas, organização institucional, relações interfederativas, transição demográfica, lógica econômica, trajetória histórica do setor, organização social, entre outros, em constante alteração.

Houve um processo de desarticulação entre as políticas de saúde e saneamento, resultando numa política de saúde mais estruturada e em outro status, ainda que com inúmeros problemas, e a de saneamento, “ainda objeto de controvérsias estruturantes e fundamentais, como a titularidade dos serviços e o status de direito”.

Talvez, a formulação da atual estrutura do saneamento, oriunda de governos militares, distantes do debate social, tenha resultado numa estrutura mais inflexível e calcada no desenvolvimentismo, com hegemonia estadual e lógica empresarial, distante do debate social sobre o direito ao saneamento ainda em construção.

Na Europa e América do Norte a universalização foi atingida a partir de investimentos públicos, com forte presença do Estado e parte de um conjunto de direitos sociais presentes no conceito de bem-estar social.

“É emblemática a silenciosa abertura de capital das principais empresas estaduais” de saneamento. Tais empresas preservam a condição e benefícios de empresas públicas e atuam como empresas privadas. Utilizam-se de privilégios para assumir os serviços nos municípios e gerar lucro e dividendos para seus acionistas, às custas da manutenção da população sem acesso aos serviços ou atendidos precariamente.

Ainda que tenha ocorrido um avanço institucional e de investimentos importante a partir de 2007, “o legado das políticas públicas anteriores vem impondo forte resistência a essas mudanças”. Há, ainda forte influência da política implantada nos anos 1970: regionalização dos serviços por companhias estaduais, baixa participação do poder local, princípio da autossustentação financeira, mercantilização do serviço, não reconhecimento da necessidade de subsídios externos ao setor, hegemonia de ações em áreas urbanas e abandono das áreas rurais, visão tecnicista da prestação dos serviços, baixa importância das dimensões políticas e da visão da dimensão integral do saneamento, e a baixa participação social.

No presente, a deficiência dos serviços de saneamento ainda reflete em quadros prejudiciais de saúde, principalmente para população mais vulnerável e representa uma violação dos direitos humanos essenciais. A continuidade dos investimentos representaria, além da melhoria do serviço, um aumento em cadeia do valor da produção da economia, geração de emprego e renda, e um retorno econômico entre 4 e 46 vezes sobre o valor investido.

A polarização entre o saneamento como direito versus o saneamento como atividade econômica é parte do foco do debate, que também envolve a concepção da atuação do Estado, a necessidade de planejamento público e o papel da regulação. Por outro lado, existem aspectos onde há maior consenso como a busca pela universalização, a necessidade de recursos públicos no setor e o aperfeiçoamento da gestão.

Pela perspectiva atual [em 2018] do debate político e social, com um momento de radicalização da visão do saneamento como negócio, a conjuntura aponta para retrocessos e cenários muito negativos de curto prazo, no sentido de afastamento do Estado em suas obrigações com o setor. No longo prazo ainda há expectativa de que o planejamento público (o Plansab) possa redefinir caminhos para a universalização, talvez com metas mais modestas para 2033, mas sem rever diretrizes e estratégias.

Num futuro desejável, que deve ser perseguido, deve-se superar a inaceitável situação do acesso das populações aos serviços, na linha dos princípios dos direitos humanos. Para isso, é necessário alterar o referencial político e a imagem cognitiva da realidade que formata o problema político hoje em pauta. Para isso, são necessárias reformas setoriais nos campos político, institucionais e econômico, como as sugeridas no texto de Ana Lucia Brito (Capítulo 2).

Até lá é necessário superar alguns obstáculos, como a disputa pelo uso de fundos públicos nacionais frente a outras demandas do país e definir constitucionalmente o papel da União, Estados e municípios no saneamento.

A partir do texto de Léo Heller é possível constatar que a saúde e o saneamento se distanciaram como políticas, com o saneamento ainda fortemente influenciado por um ideário centralizador e tecnicista do período militar. No curto prazo o saneamento corre riscos de retrocesso em função das condições políticas e das investidas de forças econômicas desde a instalação do governo Temer com forte viés para alteração da Lei nº 11.445/2007 na direção da expansão da participação privada no setor. No longo prazo ainda é possível considerar que as premissas de universalização dos serviços sejam mantidas, mas talvez em outro horizonte do que o previsto pelo Plansab.

Por Sávio Mourão Henrique[1]
[1] Biólogo pela Universidade de São Paulo e Mestre em Planejamento e Gestão do Território pela Universidade Federal do ABC, Atua há 15 anos como consultor em planejamento urbano e ambiental com foco em recursos hídricos e saneamento. É diretor do SAS Brasil, pesquisador e apoiador do ONDAS.

➡ Leia também:
▪ 
Resenha do 1º capítulo: Política de saneamento vis-à-vis à política de saúde: encontros, desencontros e seus feitos
▪ 
Resenha do 2º capítulo: Proposições para acelerar o avanço da política de saneamento no brasil: Tendências atuais e visão dos agentes do setor
▪ Resenha do 3º capítulo: Padrão de investimento e a estratégia financeira das grandes empresas regionais do setor de Água e Esgoto (A&E) no Brasil

Nota do editor da seção Resenha, Amauri Pollachi:

Este recente livro, publicado pela Fiocruz, contém reflexões fundamentais para os debates sobre as políticas públicas de saneamento e saúde neste agudo momento de tentativa de desconstrução de conquistas sociais. Por sua densidade e relevância será objeto de quatro resenhas sucessivas, cada qual dedicada a um de seus capítulos, que serão publicadas quinzenalmente entre outubro e dezembro de 2019.

Agradecemos a Sávio Mourão Henrique pelo trabalho de fôlego dedicado à elaboração das resenhas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *