ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Saneamento nas eleições estaduais: invisível, genérico ou ambíguo?

 

Texto da interação ONDAS-Privaqua*
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SANEAMENTO NAS ELEIÇÕES ESTADUAIS: INVISÍVEL, GENÉRICO OU AMBÍGUO?

Autores: Isadora Cruxên, Bruno Puga, Carlos Frederico, Natália Onuzik, Laiana Carla Ferreira, José Irivaldo A. O. Silva, Estela Macedo Alves, Priscila Neves Silva, Léo Heller

O que os principais candidatos a governador prometem fazer a respeito do saneamento básico em seus estados? A equipe de pesquisadores do Privaqua vasculhou os programas de governo dos candidatos com maior intenção de voto em 14 estados, para avaliar como o tema do saneamento aparece em suas propostas. O balanço, no geral, não é muito promissor. Em vários programas, o saneamento básico é posicionado como um vetor de desenvolvimento, de saúde pública ou sustentabilidade ambiental. No entanto, muitos programas abordam o tema de forma genérica – falam em universalização, por exemplo, mas sem propostas concretas. Em alguns, o saneamento é invisível, nem sequer é mencionado. Apenas em três programas, o saneamento aparece como um direito – são os programas de Fernando Haddad (PT, SP), Marcelo Freixo (PSB, RJ) e Alexandre Kalil (PSD, MG). Abaixo apresentamos a metodologia empregada e os resultados do apanhado em torno de seis eixos: (1) panorama geral; (2) participação privada; (3) relação com BNDES na estruturação de projetos de concessão ou parceria público-privada (PPP); (4) alinhamento ideológico (direita vs. esquerda); (5) déficits na provisão de serviços; (6) e tratamento de grupos e áreas em situação de vulnerabilidade e regiões rurais.

Metodologia

A análise dos programas de governo foi feita da seguinte forma. Buscamos, inicialmente, selecionar estados em que o BNDES atuou ou tem atuado no desenvolvimento de projetos de concessão ou PPP, como Alagoas e Ceará. Outros estados foram incluídos tendo em vista sua relevância em termos de déficits no atendimento, experiências de participação privada e conhecimento por parte da equipe de pesquisadores. Como há vários candidatos por estado, focamos nos dois candidatos com maior intenção de voto em cada estado, com base em pesquisas mais recentes. Em estados em que as intenções de voto estavam muito próximas entre candidatos, consideramos os programas de mais de dois candidatos, como em Pernambuco e São Paulo. Acessamos os programas dos candidatos pelo portal de candidaturas do TSE e buscamos pela palavra “saneamento” nos programas de governo. Onde “saneamento” trouxe poucos resultados, também buscamos por palavras como “água,” “esgoto,” “PPPs,” “privatização,” “parcerias,” “privado.” Uma apresentação reunindo análises mais detalhadas dos programas dos candidatos de diferentes estados pode ser acessada aqui. No total mapeamos 229 menções a “saneamento” entre 33 programas de governo analisados.

Panorama geral: Quem mais fala em saneamento?

Dois programas mencionam o tema mais de 20 vezes: o programa de Fernando Haddad (PT, SP) e o de Marcelo Freixo (PSB, RJ). Em contrapartida, em quatro programas o tema é invisível: não há menção alguma a saneamento. São os programas de Carlos Orleans de Brandão Jr (PSB, 1º colocado nas pesquisas no Maranhão), Marília Arraes (Solidariedade, 1º colocada em Pernambuco) e os dois principais candidatos ao governo do Amazonas: Wilson Lima (União Brasil, atual governador) e Amazonino Mendes (Cidadania, ex-governador).[1] Entre os demais candidatos, 10 programas mencionam saneamento entre 1-5 vezes, 10 programas entre 6-10 vezes, e seis programas entre 11-20 vezes.

E o investimento privado?

No que tange à participação privada, oito dos 33 programas fazem referência explícita à atração de investimentos privados ou desenvolvimento de PPPs no setor de saneamento. Esses programas são sobretudo de candidatos de estados do Nordeste (Pernambuco, Piauí, Bahia, Paraíba e Maranhão), além de Rio de Janeiro (Cláudio Castro, PL) e Minas Gerais (Romeu Zema, Partido Novo). Além desses, outros seis programas fazem referência à atração de investimentos privados de maneira ampla, não necessariamente para o saneamento, como o programa de Fernando Collor (PTB), segundo colocado em Alagoas. Onze programas não fazem referência explícita ou trazem informações suficientes sobre a atração de investimentos privados. Por fim, cinco programas fazem referência à implementação do novo marco legal do saneamento (Lei 14.026/2020), como facilitar a criação de arranjos regionais ou interlocução com municípios. Esses programas são sobretudo de candidatos de estados em que o BNDES está estruturando projetos de concessão e PPP, como o programa de Eduardo Leite (PSDB), primeiro colocado no Rio Grande do Sul, e o programa de Capitão Wagner (União Brasil), primeiro colocado no Ceará.

Relação com o BNDES

Entre estados listados no “hub” de projetos do BNDES para saneamento, existe grande variação na forma como o tema do saneamento aparece nos programas dos candidatos. Em alguns, como Alagoas, existe maior paridade no tratamento do tema entre os dois principais candidatos. Tanto o programa do atual governador do estado e líder nas pesquisas, Paulo Dantas (MDB), como o programa de seu principal concorrente, o ex-presidente Fernando Collor (PTB), falam em saneamento 12 vezes. Ambos tratam o tema como área social e, surpreendentemente, nenhum fala explicitamente da participação privada no setor, apesar de o estado ter sido um dos primeiros a ter concessões estruturadas pelo BNDES e leiloadas na B3. Como discutimos adiante, o programa de Paulo Dantas aparenta, no entanto, dar maior enfoque do que o de Collor a problemas de saneamento em comunidades em situação vulnerável e áreas rurais. Também há maior paridade no enfoque entre os programas de candidatos no Ceará e no Rio Grande do Sul, mas o nível dos programas é em geral mais mal elaborado do que em Alagoas, com menos referências ao tema e propostas mais genéricas, como a de implantar o marco do saneamento ou simplesmente de apoiar a universalização do serviço.

Em contrapartida, há maior disparidade entre programas de candidatos nos demais estados, não associados à influência do BNDES. No Amapá, o programa de Clécio Luís (Solidariedade), líder nas pesquisas, fala em saneamento oito vezes – incluindo o fortalecimento da fiscalização de contratos de concessão – ao passo que seu concorrente, Jaime Nunes (PSD), nada fala sobre o setor. No Rio de Janeiro, o contraste entre o já mencionado programa de Marcelo Freixo (PSB), segundo colocado, e o do atual governador Cláudio Castro (PL), primeiro colocado, é amplo. O programa de Castro menciona saneamento apenas três vezes, salientando de forma positiva a concessão da CEDAE e sugerindo a continuidade do que o governo vem fazendo em termos de apoiar o investimento privado no setor. O programa de Freixo é mais extenso e, como destacamos mais à frente, é também mais crítico ao investimento privado.

O Estado da Paraíba é um caso interessante, pois conta com um governo que por um lado nega a privatização do acesso à água, coleta e tratamento de esgoto, mas por outro enviou solicitação de análise ao BNDES para estruturar um projeto para o setor. O atual governador, João Azevedo (PSB), concorre à reeleição e está na frente nas pesquisas. Seu programa, no entanto, fala em saneamento apenas uma vez, no sentido de expandir serviços através da companhia estadual, CAGEPA, mas buscando também PPPs para o setor. Já nos programas dos dois candidatos disputando o segundo lugar, Pedro Cunha Lima (PSDB) e Nilvan Ferreira (PL), o saneamento tem mais destaque, aparecendo oito e 12 vezes, respectivamente. Ambos falam em implementar o novo marco legal do saneamento, mas as propostas de Lima são em geral mais específicas, focando sobretudo na realização de obras de infraestrutura.

No Espírito Santo, o candidato à reeleição Renato Casa Grande (PSB) menciona saneamento nove vezes e ressalta a necessidade de investimento em ações de infraestrutura. Destaca-se que a abordagem do saneamento básico dá grande atenção à CESAN, trazendo como proposta a universalização de atendimento da população atendida pela CESAN com água potável e com coleta e tratamento de esgotos para, no mínimo (para 90% da população), até o fim de 2026, sendo que nos municípios com gestão própria do saneamento, propõe apoio para cumprimento da legislação até o fim do prazo legal. Por outro lado, o candidato Carlos Manato (PL), apesar de seu extenso programa, menciona saneamento apenas quatro vezes, apontando como um problema crítico, mas sem propostas específicas.

Por fim, no Sergipe, o candidato que lidera as pesquisas, Valmir de Francisquinho (PL), sugere como ações de saneamento básico o fortalecimento de instrumentos de gestão, prestando apoio na elaboração de planos de saneamento básico e na gestão de bacias hidrográficas, bem como o controle de águas subterrâneas e a criação de novas adutoras. Em contrapartida, seu concorrente, Rogério Carvalho (PT) apresentou um plano sucinto, sem menção a ações de saneamento.

Direita vs. esquerda?

No que tange a questões ideológicas, o alinhamento não é muito linear. Claro que a classificação de candidatos e partidos ao longo do espectro direita-esquerda é sempre complexa – e as alianças são por vezes fluidas. Entre candidatos de partidos da base aliada do presidente Bolsonaro, como PL e Republicanos, os programas tendem a falar da atração de investimentos privados. Em contrapartida, olhando os programas de nove candidatos de partidos normalmente considerados “de esquerda”, como PT, PSB e PDT, apenas Haddad (PT, SP) e Freixo (PSB, RJ) aparecem com propostas mais progressistas em seu tratamento do tema do saneamento. Ambos abordam o saneamento como um direito. Haddad posiciona-se contra a privatização da Sabesp, fala em reinvestimento de lucros e dividendos, e em tarifa social; Freixo fala em fortalecer a agência reguladora e monitorar os investimentos das empresas de saneamento atuantes no Rio de Janeiro. Entre os demais candidatos “de esquerda”, dois não fazem menção a investimentos privados, ao passo que cinco falam em promover ou apoiar PPPs, atrair investimentos privados ou facilitar a implementação do novo marco. Por exemplo, tanto Rafael Fonteles (PT), segundo colocado no Piauí, quanto Weverton Rocha Marques de Sousa (PDT), segundo colocado no Maranhão, falam em estimular concessões e PPPs.

Déficit na provisão de serviços

O Brasil é caracterizado por uma alta desigualdade regional e, como se sabe, com o acesso ao saneamento não é diferente. Ademais, o déficit em infraestrutura e a escala necessária de investimentos para a universalização varia enormemente entre os estados. Os dados do Sistema Nacional de Informações de Saneamento (SNIS) demonstram que enquanto algumas regiões possuem um atendimento total de água elevado, como Sudeste (91,3%), Centro-Oeste (90,9%) e Sul (91,0%), a região Norte possui apenas 58,9% e o Nordeste chega a 74,9%. A situação no caso da coleta e tratamento de esgotos é ainda mais dramática. A região Norte possui um índice de coleta de apenas 22,8%, enquanto na região Sudeste (73,6%) e Centro-Oeste (61,9%), o cenário é bem menos desafiador. Nas regiões Sul (48,4%) e Nordeste (38,02%), o cenário também não é nada auspicioso.

Nesse contexto, ganha destaque negativo a falta de propostas mais explícitas nos programas de governo de estados que possuem um grande déficit, como o Amazonas. O programa de Wilson Lima, atual governador, contém apenas uma proposta que se aproxima de questões ligadas ao saneamento, voltada para dignidade menstrual de meninas em situação de vulnerabilidade. No entanto, o programa restringe-se à distribuição de absorventes em escolas, não tocando em problemas estruturais mais amplos na relação entre saúde pública e saneamento. Uma potencial explicação para o foco na dignidade menstrual pode ser a tentativa de abarcar votos junto a mulheres, as quais correspondem a maior parte do eleitorado do estado (cerca de 51% segundo o TSE). O candidato pode enfrentar resistência entre mulheres tendo em vista sua proximidade declarada com o presidente Jair Bolsonaro, que tem alta taxa de rejeição entre mulheres no estado (segundo dados do Datafolha). Por sua vez, o programa de governo de seu concorrente, Amazonino Mendes, ex-governador do estado, menciona os efeitos econômicos e sociais da pandemia, mas perde a oportunidade de conectar o problema com condições de acesso à água e ao esgotamento sanitário.

Populações em vulnerabilidade e áreas rurais

Do total de planos analisados, apenas nove fazem algum tipo de menção ao saneamento rural e/ou a populações vulnerabilizadas. São eles: Amapá – Clécio Luís (Solidariedade); Alagoas – Paula Dantas (MDB) e Fernando Collor (PTB); Bahia – ACM Neto (União Brasil); Maranhão – Weverton Rocha (PDT); Minas Gerais – Alexandre Kalil (PSD); Paraíba – Paulo Cunha Lima (PSDB) e Veneziano Vital (MDB); Pernambuco – Raquel Lira (PSDB) e São Paulo – Fernando Haddad (PT) e Tarcísio de Freitas (Republicanos). Destes, os planos dos candidatos ao governo dos estados do Amapá; Alagoas – Fernando Collor; Bahia; Maranhão, Paraíba, Pernambuco; Minas Gerais e São Paulo – Tarcísio de Freitas (Republicanos) citam de forma genérica a pauta do atendimento às populações vulnerabilizadas e rurais no que tange ao saneamento. Dos demais, apenas dois candidatos fornecem maiores detalhes sobre suas propostas. Um é o candidato ao governo do estado de Alagoas, Paulo Dantas (MDB), o qual propõe a criação do Programa “Água e Mulher”, composto pela perfuração de poços em comunidades quilombolas. É o único plano de governo a incluir a população quilombola de forma explícita. Além disso, o programa de Dantas propõe a criação de programas de saneamento rural para as comunidades e povoados que estão fora dos blocos regionais das concessões de saneamento estruturados pelo BNDES no estado. O segundo é o programa do candidato ao governo do estado de São Paulo, Fernando Haddad (PT), único a abordar a questão da tarifa social. Porém, apesar de exemplificar em números a questão da universalização do saneamento, Haddad não cita o saneamento rural como pauta.

Qual o balanço?

Como se observa, a despeito das reconhecidas carências em saneamento no país, muito enfatizadas quando o atual governo federal necessitou aprovar a privatização dos serviços, não encontram lugar adequado nas propostas dos candidatos a governadores. As exceções apontadas (sobretudo Haddad, Freixo e Kalil) mais confirmam do que contrariam a regra.

De fato, chama a atenção a absoluta invisibilidade do tema nos programas de candidatos em estados com a carência de serviços encontrada no Maranhão, em Pernambuco e no Amazonas. Não menos graves são as formulações genéricas de vários programas, sem definição de modelo de gestão, sem menção ao saneamento rural ou ao atendimento a outras populações em situação de vulnerabilidade, ou sem formulações sobre tarifas sociais. E também surpreende a ambiguidade, pelo menos no que diz respeito aos modelos de gestão: mesmo candidatos à esquerda se comprometem com a privatização dos serviços, sendo que os parlamentares de seus partidos rejeitaram os projetos de lei privatizantes nas votações na Câmara e Senado.

Entre a invisibilidade, a generalidade e a ambiguidade, não será surpresa se na próxima quadra dos governos estaduais o saneamento continuar a ocupar posição de baixa prioridade e os governadores se fascinarem com o canto de sereia da privatização fácil, como falsa panaceia para a universalização dos serviços da população de seus estados.

[1] O programa de Onyx Lorenzoni (PL, 2º colocado no Rio Grande do Sul) também aparentemente não menciona saneamento, mas é difícil delimitar com precisão porque o programa foi escaneado e não permite buscas.

 

* INTERAÇÃO ONDAS-PRIVAQUA: DE OLHO NA PRIVATIZAÇÃO DO SANEAMENTO
Privaqua é um projeto de pesquisa que obejtiva entender processos de privatização dos serviços de água e esgotos, tendo por orientação teórico-analítica o marco dos direitos humanos. Neste espaço do site do ONDAS, o Privaqua publica periodicamente textos curtos sobre a temática do projeto, visando divulgar achados parciais, compartilhar reflexões e disseminar elementos da literatura científica sobre o tema. A intenção é a de dialogar com um público não necessariamente familiarizado com a linguagem acadêmica e com os veículos tradicionais de comunicação científica. Trata-se de uma tentativa de exercitar o que se denomina de divulgação científica, para público não-especializado, transpondo os chamados “muros acadêmicos”. O desafio é de, sem perder o rigor, disseminar aspectos do tema da privatização dos serviços de saneamento, visando sobretudo qualificar as atividades da militância do setor.

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