TARIFAS DE ÁGUA E ESGOTOS EM OURO PRETO: UMA CRÍTICA SOB A ÓTICA DOS DIREITOS HUMANOS
autores: Rafael K. X. Bastos, Alex M. S. Aguiar, Paula L. L. M. Pereira, Lucas A. Tótola*
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Introdução
Em 2010, o acesso à água (e ao esgotamento sanitário) foi explicitamente reconhecido como direito humano pela ONU, conectando-o, portanto, aos princípios gerais dos direitos humanos: não discriminação e igualdade, prestação de contas / responsabilização, participação, acesso à informação / transparência, sustentabilidade; princípios estes que se conectam ao conteúdo normativo estabelecido especificamente para os direitos humanos à água e ao saneamento: disponibilidade, qualidade, aceitabilidade e acessibilidade (física e financeira) (Albuquerque, 2014a,b; Bos, 2017; Heller, 2022). Acessibilidade financeira é, em boa medida, determinada pelas tarifas praticadas pelos prestadores de serviços e, de outro lado, pela realidade socioeconômica em que as tarifas incidem.
Em Ouro Preto, cidade tombada pela UNESCO como patrimônio mundial, até 2004 os serviços de saneamento eram prestados por intermédio da Secretaria de Obras da Prefeitura Municipal, sem cobrança. Em 2005, por meio da Lei Municipal nº 13, foi criado o Serviço Municipal de Água e Esgoto de Ouro Preto (SEMAE), uma autarquia municipal. Em 2009 foi aprovada a lei municipal nº 538 que definia a política tarifária do SAAE, instituindo a Tarifa Básica Operacional (TBO), a medição do consumo por meio de hidrometração e a cobrança pelo consumo. Porém, a medição e a cobrança pelo consumo não chegaram a ser implementadas e a TBO constituiu a única fonte de receitas do SEMAE até sua extinção em 2018. Em aplicação desde 2010, com diversos reajustes ao longo do tempo, o valor atual da TBO[1] na categoria residencial é de, aproximadamente, R$ 27,00 mensais (http://www.saneouro.com.br/legislacao-e-tarifas/). Esse cenário colocava Ouro Preto entre os poucos municípios brasileiros que não cobravam pelo serviço de abastecimento de água[2], ou entre os que cobravam, mas não com base no volume consumido, o que, inevitavelmente, contribuiu para a fragilização do SEMAE.
Em 2018 foi aberto edital de licitação para concessão dos serviços de água e esgotos, finalizado em março de 2019 com candidatura única (e vencedora do pleito): o consórcio formado pelas empresas GS Inima Brasil Ltda[3] e sua parceira mineira MIP Investimentos e Participações Ltda[4]. Em julho de 2019, a administração municipal anunciou a assinatura do contrato de concessão dos serviços por 35 anos. Em dezembro de 2019 foi publicada a Lei Municipal nº 188, extinguindo o SEMAE. Em janeiro de 2020, o consórcio, já então constituindo a Saneouro (nome fantasia de empresa Ouro Preto Serviços de Saneamento S.A.), passou a atuar na prestação dos serviços de água e esgotos em Outro Preto.
O contrato de concessão previa a implementação da cobrança pelo consumo apenas quando a hidrometração, a ser realizada pela Saneouro, atingisse 90% das ligações de água. Em meio a disputas, inclusive jurídicas, entre a administração municipal e a Saneouro sobre o efetivo alcance da meta de 90% de hidrometração[5], a cobrança pelo consumo somente teve início em outubro de 2022. O recebimento de contas em valores impensáveis para uma população cultural e historicamente habituada a não pagar pela água, e mais recentemente acostumada a pagar os valores módicos da já mencionada TBO, desencadeou forte reação popular, cuja indignação foi canalizada para a PMOP, provocando, inclusive, reação desproporcional da Guarda Municipal[6].
Mas isso foi resultado de uma insatisfação que já vinha crescente com a privatização em si dos serviços de saneamento. Aliás, desde as eleições de 2020 esse tema vem ocupando lugar central de debate em Ouro Preto, sendo que o prefeito em cujo mandado se deu a privatização (Júlio Pimenta, MDB) foi derrotado por Ângelo Osvaldo (PV), com a promessa de remunicipalização dos serviços. Frente ao que era visto como hesitação por parte da nova administração municipal, um forte movimento de pressão popular foi se articulando. Argumentos de irregularidades no processo licitatório deram lugar à instalação de uma CPI na Câmara Municipal em 9 de março de 2021, cujo relatório, encaminhado para o Ministério Público, aponta, entre outros aspectos, irregularidades na formação da comissão de licitação e a falta de uma agência reguladora para acompanhamento da licitação. Os próprios trabalhos da CPI foram desenvolvidos sob pressão de um acampamento de manifestantes na praça central de cidade (Praça Tiradentes), em frente à Câmara Municipal[7]. A revolta contra os valores das contas já vinha desde que a Saneouro passou a entregar simulações das cobranças que viriam nos imóveis onde os hidrômetros vinham sendo instalados A própria instalação de hidrômetros foi objeto de muita resistência por parte dos moradores[8].[9].
Cabe ainda ressaltar que, à exemplo do que é usual na prestação de serviços de água e esgotos no Brasil, a Saneouro prevê acesso à tarifa social para população de baixa renda. Porém, por força do contrato de concessão, esse benefício é restrito a apenas 5% das ligações de água; isso em uma realidade onde dados do CECAD (Consulta, Seleção e Extração de Informações do CadÚnico) indicam que cerca de 30% da população do município se encontra em situação de vulnerabilidade financeira, sendo 15% classificada como em situação de “extrema pobreza” (renda familiar per capita até R$ 105), 4% como “pobreza” (renda familiar per capita entre R$ 105 e R$ 210) e 11% como “baixa renda” (renda familiar per capita entre R$ 210 até meio salário mínimo).
Até então, as críticas mais frequentes às contas de água/ esgoto em Ouro Preto têm feito referência ao valor total de contas, na casa das centenas ou milhares de reais. Se propõe aqui um olhar mais detalhado sobre a estrutura tarifária em prática em Outro Preto, comparativamente ao encontrado em outros municípios mineiros cujos serviços são prestados por autarquias municipais ou pela companhia estadual (COPASA). Discutem-se ainda aspectos relacionados a impactos sociais das tarifas analisadas, tendo em conta as respectivas realidades socioeconômicas sobre as quais incidem.
Amostra de municípios
A amostra de estudo foi composta por seis municípios, com exemplos de diferentes portes populacionais (alguns similares), de localização mais ou menos próxima, com serviços prestados pela companhia estadual ou por serviços municipais (autarquias, empresa pública e empresa privada) e regulados por diferentes agências (algumas comuns) (Quadros 1 e 2).
A seleção desses municípios, teve como referência Ouro Preto e os seguintes critérios:
- João Monlevade: autarquia municipal, porte populacional próximo ao de Ouro Preto, localização não tão próxima à Ouro Preto (Vale do Aço), mesma agência reguladora de Ouro Preto (intermunicipal)
- Juiz de Fora: empresa pública municipal, porte populacional bem superior ao de Ouro Preto e das demais cidades, localização não tão próxima à Ouro Preto (Zona da Mata), mesma agência reguladora de Ouro Preto (intermunicipal)
- Itabirito: autarquia municipal, porte populacional inferior ao de Ouro Preto, localização bem próxima à Ouro Preto, mesma agência reguladora de Ouro Preto (intermunicipal)
- Viçosa: autarquia municipal, porte populacional similar ao de Ouro Preto, localização relativamente próxima à Ouro Preto, outra agência reguladora, estadual intermunicipal
- Ouro Branco: companhia estadual; porte populacional inferior ao de Ouro Preto, localização bem próxima à Ouro Preto, mesma agência reguladora de Ouro Preto (intermunicipal)
Quadro 1 – Amostra de municípios, respectivos prestadores de serviços de saneamento e agências reguladoras
(1) Agência Reguladora Intermunicipal de Saneamento Básico de Minas Gerais; (2) Agência Reguladora de Serviços de Abastecimento de Água e de Esgotamento Sanitário do Estado de Minas Gerais; (3) Agência Reguladora Intermunicipal dos Serviços de Saneamento da Zona da Mata de Minas Gerais e Adjacências
Quadro 2 – Amostra de municípios, características socioeconômicas
(1) População estimada em 2021 (IBGE 2021); Salário médio mensal dos trabalhadores formais em 2020 (IBGE (2021); (3) SENARC (2022); (4) % população cadastrada no CadÚnico em relação à população estimada em 2021; (5) número de famílias cadastradas no CadÚnico em setembro de 2022; (6) extrema pobreza: renda familiar per capita até R$ 105; (7) pobreza: renda familiar per capita entre R$ 105 e R$ 210); (8) baixa renda: renda familiar per capita entre R$ 210 até meio salário mínimo (SM)
Estruturas tarifárias
A estrutura tarifária de todos os serviços aqui avaliados é a tipicamente praticada pelos prestadores de serviços de água e esgotos no país: (i) cobrança progressiva por faixa de consumo; (ii) preços diferenciados por categoria dos usuários:(residencial, comercial, industrial e público); (iii) tarifa social, como subsídio aos usuários de menor poder aquisitivo (iv) tarifa de esgoto fixada em determinado percentual da tarifa de água; (v) taxa fixa para todas as categorias de consumo, correspondente à disponibilização da infraestrutura dos serviços (na maioria dos casos aqui avaliados); ou (vi) fixação de consumo mínimo e, portanto, de conta mínima (apenas em João Monlevade). Usualmente, as diferenças entre as estruturas tarifárias são notadas nas faixas de consumo e, evidentemente, nos valores das tarifas (Quadros 3 a 8).
A tarifa de esgotos praticada em Ouro Preto (≈ 40% da tarifa de água), juntamente com a de João Monlevade (30%), é das mais baixas entre os serviços analisados: Juiz de Fora (60-70%), Itabirito (60%), Viçosa (50%), Ouro Branco / COPASA (75%). Entretanto, Ouro Preto prevê duas categorias de tarifa de serviços de esgotos: coleta (≈ 40% da tarifa de água) e coleta + tratamento (≈ 95% da tarifa de água).
Em João Monlevade se aplica tarifa e conta mínimas até 10 m³/mês, mas não há tarifa social. Nos demais serviços é adotado o critério de Tarifa Básica Operacional.
No que diz respeito à tarifa residencial social, com base nas informações dos Quadros 3 a 8, as diferenças são também grandes em termos de descontos em relação à tarifa residencial social: Ouro Preto (50-67% até 40m3), Juiz de Fora (50%, sem limitação de consumo mensal), Itabirito (≈ 30% até 20m3), Viçosa (10-80% até 20m3), Ouro Branco / COPASA (50% até 20m3). João Monlevade não pratica tarifa social. Sobre Ouro Preto, apesar do Quadro 3 estar disponível nas webpages da Saneouro e da ARISB, na webpage da Saneouro também se encontra a informação que a Tarifa Social prevê reduções de 22% nas faturas para pessoas de baixa renda e consumo de até 20 m³ de água por mês (http://www.saneouro.com.br/legislacao-e-tarifas/)
Quadro 3. Estrutura tarifária em vigor em Ouro Preto
Fonte: http://www.saneouro.com.br/legislacao-e-tarifas/
Quadro 4. Estrutura tarifária em vigor em João Monlevade
Fonte: Resolução ARISB-MG nº. 200, de 30 de junho de 2022
Quadro 5. Estrutura tarifária em vigor em Juiz de Fora
Fonte: Resolução de fiscalização e regulação – ARISB-MG nº 187, de 01 de março de 2022
Quadro 6. Estrutura tarifária em vigor em Itabirito
Fonte: Resolução de fiscalização e regulação – ARISB-MG nº Nº 194, de 30 de abril de 2022
Quadro 7. Estrutura tarifária em vigor em Viçosa
Fonte: Resolução de regulação nº 016, de 13 de setembro de 2021
Quadro 8. Estrutura tarifária em praticada em Ouro Branco (COPASA)
Fonte: ARSAE-MG
Preços dos Serviços
Com base nas estruturas tarifárias acima descritas, foram simuladas contas de água + esgotos nos seis municípios para diferentes valores de consumo mensal de água nas categorias Residencial (Figura1) e Residencial Social (Figura 2). Foram realizadas simulações das contas até 20 m³/mês de consumo de água – limite da tarifação social na maioria dos casos desse estudo. Como já referido, João Monlevade aplica tarifa e conta mínimas até 10 m³/mês e não há tarifa social (aparece na Figura 2 apenas a título de comparação). No caso de Ouro Preto, as simulações das contas de esgotos consideraram apenas as tarifas de esgoto coletado.
Figura 1- Simulações das contas de água + esgoto, categoria residencial
Figura 2- Simulações das contas de água + esgoto, categoria social
A Figura 1 evidencia que: (i) as contas residenciais em Ouro Preto (serviço municipal privatizado) se assemelham às de Ouro Branco (companhia estadual, que opera em mais de 600 municípios); (ii) as contas dos serviços municipais públicos, de diferentes portes, são, em geral, muito inferiores às de Ouro Preto e Ouro Branco; se assemelham entre si, porém com valores mais elevados nas faixas mais altas de consumo na cidade de maior porte (Juiz de Fora)
Na Figura 2 nota-se que: (i) a tarifa social mais generosa é praticada em Viçosa, que, por outro lado, apresenta o maior percentual população em situação de vulnerabilidade financeira (34%); (ii) Ouro Branco e Itabirito (respectivamente 28% e 24% da população no CadÚnico) ofertam os menores benefícios em termos de tarifa social, por vezes se aproximando de João Monlevade, cidade com o menor índice de população no CadÚnico e onde não há tarifa social; (iii) em posição intermediária de benefício social se encontra Ouro Preto (30% da população no CadÚnico), coincidindo com Juiz de Fora, cidade de porte bem maior e com melhor condição socioeconômica (20% da população no CadÚnico). Cabe, entretanto, ressaltar que os gráficos da Figura 2 foram construídos com base nos dados dos Quadros 3 a 8, mas que no caso de Ouro Preto há informações desencontradas em relação à tarifa social na própria webpage da Saneouro. Ou seja, os descontos concedidos na foma de tarifa social em Ouro Preto mostrados na Figura 2 podem estar superestimados. Há ainda a já mencionada cláusula contratual que limita a concessão do benefício da tarifa social à 5% das ligações de água
O cenário até aqui descrito é de certa forma confirmado nos dados da Quadro 9: percentuais da conta de água + esgoto (categoria residencial) em relação ao valor do salário mínimo em 2022: de um lado Viçosa, com os melhores índices, de outro, Ouro Preto e Ouro Branco, com os piores. As células preenchidas em cinza destacam valores acima do limite recomendado pela ONU de comprometimento de 5% da renda domiciliar familiar com serviços de água e esgotos (ONU, 2014). Ainda que essa comparação não seja direta, pois os dados do Quadro 9 são referentes ao salário mínimo, o destaque mantém sentido quando se consideram os elevados números de população em situação de “extrema pobreza” (renda familiar per capita até R$ 105), “pobreza” (renda familiar per capita entre R$ 105 e R$ 210), e “baixa renda” (renda familiar per capita entre R$ 210 até meio salário mínimo).
Quadro 9 – Percentual das contas de água + esgotos em relação ao salário mínimo de 2022
Considerações finais
As informações aqui reunidas revelam que as tarifas cobradas pelos serviços de saneamento em Ouro Preto são: (i) em geral, bem mais elevadas, que em outras cidades de Minas Gerais de diferentes portes populacionais, cujos serviços são prestados por entes municipais públicos; (ii) se assemelham às tarifas praticadas pela Companhia Estadual, uma empresa de economia mista e que opera em que opera em mais de 600 municípios. Revela ainda que as elevadas tarifas incidem em uma realidade socioeconômica frágil e que a tarifação social não parece suficiente para mitigar o elevado comprometimento do orçamento familiar para pagar pelos serviços de saneamento.
Enfim, se está perante riscos de exclusão de pessoas ao acesso a esses serviços essenciais por incapacidade de pagamento. Por conseguinte, violação dos direitos humano à água e ao saneamento, inscritos no rol dos direitos humanos fundamentais da Organização das Nações Unidas, no que tange ao princípio da acessibilidade econômica aos serviços; princípio este que inclui a prevenção ao retrocesso (passo atrás no gozo de um direito ao qual as pessoas já tiveram acesso) e do comprometimento do gozo de outros direitos humanos fundamentais por comprometimento de renda pelo custo dos serviços de saneamento.
[1] Na gestão da Saneouro, a TBO passou a ser denominada Tarifa de Disponibilidade
[2] De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), que reúne dados de abastecimento de água de 5.191 municípios, dos 1.603 prestadores de serviços locais que declaram informações ao SNIS em 2018, 387 que não cobravam pelos serviços prestados
[3] A GS Inima Brasil reporta-se à GS Inima Environment, que por sua vez é controlada pela GS E&C, braço de engenharia do quinto maior conglomerado empresarial da Coréia Do Sul (http://www.saneouro.com.br/acionistas/)
[4] Uma empresa do Grupo MIP Holding S.A, criado em 2019, reunindo as participações acionárias das empresas MIP Engenharia Ltda, MIP Edificações Ltda, MIP Investimentos e Participações Ltda e Multilift Logística Ltda (http://www.saneouro.com.br/acionistas/)
[5]https://www.agenciaprimaz.com.br/2022/07/26/saneouro-nao-pode-cobrar-pelo-consumo/#:~:text=No%20Parecer%20Jur%C3%ADdico%20019%2F2022,baseado%20no%20termo%20do%20Edital.
[6] https://www.otempo.com.br/cidades/ouro-preto-ato-contra-valores-abusivos-de-contas-de-agua-acaba-em-confusao-1.2752840
[7] https://www.agenciaprimaz.com.br/2021/08/27/caminhada-fora-saneouro-reforca-mobilizacao-popular-contra-privatizacao-da-agua-em-ouro-preto/
[8] https://www.otempo.com.br/cidades/simulacoes-de-contas-de-agua-acima-de-r-1-000-assustam-moradores-de-ouro-preto-1.2510112
[9] https://lampiaodigital.ufop.br/index.php/cobranca-agua-ouro-preto-saneouro/
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* Rafael K. X. Bastos – Professor da Universidade Federal de Viçosa, membro da Coordenação Executiva do Ondas; Alex M. S. Aguiar – Engenheiro, membro do Conselho de Orientação do Ondas; Paula L. L. M. Pereira – Engenheira Ambiental, doutoranda na UFV; Lucas A. Tótola: Engenheiro Ambiental, doutorando na UFV