Na semana passada o jornal inglês The Guardian publicou relevante depoimento de Jonathan Portes, professor de Economia e Políticas Públicas no King’s College London e ex-diretor, de 2011 a 2015, do Instituto Nacional de Pesquisa Econômica e Social. No artigo o Professor Portes explica porque considera um roubo organizado o processo de privatização dos serviços de água e esgoto da Inglaterra e País de Gales em 1989, do qual participou na posição de funcionário júnior do Tesouro. Portes destaca o endividamento das empresas em contrapartida aos valores absurdos das remunerações dos executivos das prestadoras privadas e ao nível elevado de remuneração de acionistas e investidores. Segundo ele, os reguladores permitiram retornos altos ou superiores ao de uma empresa privada de risco médio, mas os investidores não foram expostos a maiores riscos do que os títulos do governo. Temos o que aprender no Brasil com a avaliação de Portes.
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The Guardian
Terça, 16 de agosto de 2022
“TRABALHEI NA PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA DA INGLATERRA EM 1989. FOI UM ROUBO ORGANIZADO.”
Os contribuintes perderam e os consumidores têm sido espoliados desde então. Este regime falido já perdeu sua validade há muito tempo.
Por Jonathan Portes
“Você poderia ser um H2Owner.” Esse foi o slogan , ao som de Handel’s Water Music, da campanha de 1989 para vender ações das 10 companhias de água e esgoto da Inglaterra e País de Gales – não tão memorável, mas quase tão bem-sucedida quanto a campanha anterior “Tell Sid” da British Gas. Embora a privatização da água fosse extremamente impopular, com todas as pesquisas à época mostrando que uma maioria substancial de pessoas se opunha à política, isso não impediu que mais de 2,5 milhões de pessoas se inscrevessem para a compra de ações. A oferta foi quase seis vezes ultrapassada.
A única surpresa é que não era muito mais que isso. Muito antes de alguém falar sobre “árvores mágicas de dinheiro”[1], o governo Thatcher ofereceu uma: era dinheiro grátis para quem preenchesse o formulário de inscrição. O ganho médio para os investidores no primeiro dia de negociação foi de 40% e, nas duas décadas seguintes, as empresas de água privatizadas pagaram mais de £ 57 bilhões em dividendos, ao mesmo tempo em que acumularam grandes dívidas, cujos juros são efetivamente pagos pelos clientes.
Então, como conseguimos errar tanto? Falo de mim, não de você. Eu era um jovem funcionário do Tesouro trabalhando no projeto de privatização da água, responsável por garantir uma boa relação custo-benefício para os contribuintes e os usuários dos serviços. Em retrospecto, falhamos totalmente em ambos os aspectos: as ações foram vendidas bem abaixo de seu valor e, portanto, com menor taxação de impostos, prejudicando todos os contribuintes, e desde então os usuários têm sido espoliados. Mas isso não é apenas uma análise a posteriori. Nós sabíamos à época o que estava acontecendo, porque a privatização da água nunca foi realmente motivada pela busca por maior eficiência dos serviços. No curto prazo, a prioridade política primordial era uma venda “bem-sucedida” – onde a demanda pelas ações fosse alta – e onde aqueles que se inscreveram e que, pelas privatizações anteriores, já esperavam um grande prêmio, não ficassem desapontados.
Isso significava que a posição do Tesouro, ao defender um preço mais alto das ações ou uma regulamentação mais rígida para restringir as tarifas no futuro, era excepcionalmente fraca. O relatório do Escritório Nacional de Auditoria[2], examinando a venda, detalha como as receitas previstas caíram mais de um terço em apenas três meses, custando aos contribuintes cerca de £ 6 bilhões em dinheiro de hoje, enquanto o Tesouro era atropelado simultaneamente pela administração das companhias de água, pelo Departamento do Meio Ambiente, pelo próprio chefe do executivo britânico e por um enorme exército de banqueiros de investimento, contadores e consultores de relações públicas.
Em nossa defesa, ainda que parcial, esperávamos que essa fosse uma transferência pontual de riqueza dos contribuintes e consumidores para os acionistas e que, a longo prazo, se conseguíssemos a estrutura regulatória correta, os retornos dos acionistas chegariam a algo mais “normal”, na medida em que o Escritório de Regulação das Águas (Ofwat) se posicionasse e buscasse defender o interesse dos consumidores. Mas, como sabemos agora, estávamos errados. Ainda esta manhã, o infeliz executivo-chefe da Ofwat, David Black, estava no programa Today , alegando que a Thames Water foi penalizada por vazamentos excessivos. Coube ao incansável Feargal Sharkey colocar os números em perspectiva.
Paradoxalmente, o rebaixamento do preço das companhias de água e esgoto que ajudou a cumprir o objetivo de curto prazo de Thatcher de uma venda bem-sucedida e lucrativa para aqueles que compravam ações, minou fatalmente o objetivo de longo prazo da Primeira-Ministra, que era criar uma “democracia dos acionistas” comparável ao modo como o direito de compra criou uma “democracia de proprietários”. O problema foi que poucos foram os pequenos acionistas que conseguiram resistir à tentação de sacar seus grandes lucros.
Assim, à medida que venderam suas ações, as empresas foram compradas, principalmente por fundos de private equity, investidores institucionais e grandes empresas de infraestrutura do exterior. Esses investidores identificaram a combinação de grandes programas de investimento, retornos efetivamente garantidos e um regulador omisso e fraco e que não tinha acesso a consultores econômicos e advogados de alta potência. O resultado é que as empresas foram sobrecarregadas com dívidas que permitiram enormes retornos para os acionistas. Enquanto isso, os reguladores permitiram retornos altos ou superiores ao de uma empresa privada de risco médio, mas os investidores não foram expostos a maiores riscos do que os títulos do governo. Como disse o Financial Times , depois de 30 anos, “a privatização da água parece apenas pouco mais do que um roubo organizado”.
E agora? Aqui vale a pena examinar uma interessante – mas profundamente contraditória – defesa do setor, feita pelo chefe do Centro de Estudos Políticos, Robert Colvile. Ele reconhece de antemão que as “companhias de água são essencialmente empreiteiras. Eles estão operando o sistema de abastecimento de água em nome do estado, de uma forma acordada com o estado, e perseguindo metas estabelecidas pelo estado”.
Ora, então por que os diretores podem receber salários e bônus de milhões de libras? Por que os acionistas e investidores devem obter retornos muito superiores aos que oferecemos aos investidores da dívida pública? Sua resposta a isso é que “a maior justificativa para a privatização é a competição pelo capital”; com isso ele quer dizer que se as empresas de água estivessem no setor público, seu investimento estaria em competição com outras prioridades, de HS2 (linha ferroviária de alta velocidade) a hospitais, e o resultado, inevitavelmente, seria o baixo investimento.
Isso é útil por dois motivos. Primeiro, porque tem maior credibilidade do que outras defesas da privatização. Não reivindica alguns ganhos míticos da magia dos mercados competitivos. Tampouco é um argumento econômico. De uma perspectiva racional, não há razão para que o governo não possa investir tanto quanto justificado pela economia subjacente. Em vez disso, o argumento de Colvile é político. Isso implica que os governos, especialmente, mas não apenas os conservadores, buscam políticas estúpidas e autodestrutivas por razões políticas de curto prazo, então vale a pena os consumidores pagarem em excesso ao setor privado para garantir o nível de investimento necessário, mesmo que o setor público possa, em teoria, fazê-lo mais barato.
Em segundo lugar, isso aponta para um caminho potencial que poderia evitar tanto a reviravolta da renacionalização, quanto a dependência contínua de um regime regulatório fracassado. No momento, as companhias de água são simplesmente monopólios regulados permanentes. Mas se aqueles que operam as companhias de água são empreiteiros que prestam um serviço público, por que não, como sugere o especialista em regulamentação Dieter Helm , tratá-los como tal e forçá-los a disputar competitivamente em licitação pelo direito de operar? Uma coisa que sabemos com certeza é que o modelo atual, em que as empresas enfrentam níveis de concorrência e risco do setor público e obtêm níveis de lucros e retornos do setor privado, já ultrapassou seu prazo de validade.
[1] Ver https://positivemoney.org/what-we-do/magic-money-tree/
[2] National Audit Office (NAO) – Agência independente que fiscaliza os gastos públicos no Reino Unido.
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Traduzido por Marcos Helano Montenegro e revisado por Alex Moura Aguiar, para o ONDAS.
O original em inglês está disponível em https://www.theguardian.com/commentisfree/2022/aug/16/i-worked-on-privatisation-england-water-1989-failed-regime