ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Viver em município com tendência de extrema direita faz mal à saúde

Texto da interação ONDAS-Privaqua*
____________________________

VIVER EM MUNICÍPIO COM TENDÊNCIA DE EXTREMA DIREITA FAZ MAL À SAÚDE
(Resenha do artigo: Envolvimento de fatores políticos e socioeconômicos na dinâmica espacial e temporal dos resultados da COVID-19 no Brasil: um estudo de base populacional)
Autoras: Natália Onuzik e Priscila Neves-Silva

O alto crescimento populacional, desmatamentos, mudança climática, entre outros fatores, relacionam-se com o aparecimento de doenças emergentes e reemergentes, incluindo a COVID-19, que se tornou uma pandemia em 2020 e matando mais de 6 milhões de pessoas em todo o mundo até esta data. Durante o primeiro ano da pandemia, devido à inexistência de vacina ou de tratamento específico, só era possível prevenir e controlar a contaminação através de medidas como distanciamento social, lavagem das mãos e uso de máscaras, estratégias apontadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como efetivas para o combate à transmissão do vírus SARS-CoV2.

Contudo, devido ao fato de a taxa de mortalidade da COVID-19 não ser tão alta quanto a de outras enfermidades, como o Ebola, muitos países afrouxaram a estratégia de lockdown, com o discurso de poupar a economia evitando seu colapso e, na busca por uma imunização de rebanho, permitiram uma contaminação em massa da população. Essa decisão teve repercussões graves, como a observada em Manaus. A capital do Amazonas enfrentou uma resistência do governo local e federal para impor as medidas não-farmacológicas de mitigação da doença e a alta transmissão do vírus entre a população acabou gerando uma nova variante com maior poder de transmissão (gama). A combinação desses fatores e o aumento do número de hospitalizações levou ao colapso do sistema de saúde local, com falta do suprimento de oxigênio e alta taxa de mortalidade.

Nesse cenário, o Brasil emergiu como modelo no que se refere às consequências negativas causadas pela ausência de políticas públicas de saúde efetivas, em nível nacional, associada à veiculação de campanhas anticiência. Dessa forma, apesar de possuir apenas 2,7% da população mundial, o país contribuiu com 8,15% dos casos e 11,55% das mortes por COVID-19 no mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos.

O desinteresse do governo federal em implementar medidas não-farmacológicas (distanciamento social, uso de máscaras, lavagem das mãos e testes em massa), bem como o seu esforço constante e de aliados em propagar uma campanha anticiência, alicerçada na difusão de fake news e em teorias da conspiração, desempenhou papel importante nos desfechos da disseminação do SARS-CoV2. Isto incluiu a ação de algumas associações médicas, que promoveram e estimularam a automedicação com tratamentos ineficazes como o “kit covid” (cloroquina, ivermectina e azitromicina), e a demora na implementação da campanha de vacinação. Nessa conjuntura, a Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Federal confirmou a suspeita de que o governo Jair Bolsonaro falhou no enfrentamento da pandemia.

Dito isso, o estudo em questão investigou como o partidarismo político e os fatores socioeconômicos determinaram o desfecho da COVID-19 em nível local no Brasil. Tratou-se de um estudo ecológico retrospectivo, avaliando óbitos por COVID-19, no qual foram utilizados bancos de dados de mortalidade entre fevereiro de 2020 e junho de 2021 para os 5.570 municípios brasileiros. Foram incluídos parâmetros socioeconômicos, como: categorias de cidades, índices de renda e desigualdade, qualidade dos serviços de saúde e partidarismo, avaliados pelo resultado do segundo turno das eleições presidenciais brasileiras de 2018.

Os resultados apontaram que os municípios que apoiaram Jair Bolsonaro nas eleições de 2018, onde o negacionismo científico possivelmente veio a influenciar mais a população, foram os que apresentaram as maiores taxas de mortalidade por COVID-19. Essa tendência foi ainda mais acentuada durante a segunda onda da pandemia em 2021, quando se observou maior omissão por parte do Ministério da Saúde e maior descentralização das decisões, favorecendo que questões ideológicas e de orientação política determinassem a atuação, prevenção e controle em cada cidade. Esse padrão foi observado mesmo considerando as desigualdades estruturais entre os municípios, demonstrando que os efeitos negativos do partidarismo de extrema direita se sobrepõem aos fatores socioeconômicos.

O perfil dos municípios apoiadores de Bolsonaro mostrou-se homogêneo. São cidades de maior renda e melhores estruturas em assistência à saúde. Apesar disso, o estudo revelou que a taxa média de mortalidade por COVID-19 foi maior em 92,4% desses municípios quando comparados aos municípios não apoiadores de Bolsonaro. Nestes, mesmo aqueles com estruturas de saúde deficientes, de menor renda e maior desigualdade social foi possível atravessar a pandemia com menor número de óbitos.

Viver em um município rico e ideologicamente orientado para a direita, ainda que com serviços de saúde mais estruturados, aumentou o risco de morte por COVID-19 em 44%, evidenciando a influência do fator político-partidário no manejo e no desfecho da doença. Nesse sentido, o estudo sugere que o perfil ideológico da administração local e da população afetaram fortemente a resposta à COVID-19.

O negacionismo é um fenômeno de massa baseado na banalização da morte, adoção de distorções da realidade, produção de inimigos imaginários (geralmente associados às teorias da conspiração), desempoderamento das instituições e seu deslocamento para a autoridade pessoal e simbólica. Especificamente, o negacionismo científico questiona o conhecimento científico e o substitui por crenças. Nessa circunstância, e devido à grande produção de informação durante a pandemia, algumas pessoas tenderam a assimilar comportamentos, conhecimentos e atitudes dos políticos e líderes comunitários com os quais elas se identificavam. Não somente líderes nacionais e a mídia, mas grupos na comunidade com poder econômico, simbólico ou religioso, entre outros, influenciaram o comportamento e as crenças pessoais.

Importante ressaltar que o bolsonarismo se baseia na supremacia da liberdade individual, acima de qualquer outro valor iluminista como a igualdade, a defesa da vida, a justiça e a fraternidade. Nesse caso, a liberdade, frequentemente evocada pelos bolsonaristas, delega a cada indivíduo o cuidado com sua saúde, eximindo e dispensando o Estado, e introduz a ideia da morte como um evento fortuito.

Nessa lógica, o bolsonarismo afetou o manejo da COVID-19 no país também em função da falta de unidade nacional e de políticas públicas integradas, dado que coube a cada prefeito e/ou governador de estado adotar medidas de acordo com as suas ideologias e necessidades políticas e econômicas. Essa tentativa de descentralização impulsionou o comportamento de risco nas pessoas alinhadas ao pensamento de Bolsonaro, expondo-as à infecção e resultando em uma maior taxa de mortalidade, corroborando a influência do discurso negacionista na condução da pandemia. Dessa forma, o estudo mostrou que o impacto da pandemia nos municípios dependeu de uma combinação de fatores não apenas sociais, como também, políticos.

A descentralização das decisões, em especial durante 2021, o uso insistente de medidas não científicas como o “kit covid” e a divulgação de informações falsas sobre a doença podem explicar as diferenças na dinâmica da pandemia entre a primeira e a segunda onda. Em geral, questões relacionadas à inequidade de renda e dos serviços de saúde moldaram a dinâmica da pandemia durante a primeira onda. No entanto, durante a segunda onda, a escolha partidária dos municípios foi decisiva para caracterizar a pandemia no país. Dessa forma, os autores concluem que o partidarismo político é um dos fatores que explicam a alta taxa de mortalidade por COVID-19 em alguns municípios, além de explicar por que municípios com características econômicas, sociais e dos serviços de saúde similares se comportaram de forma diferente na primeira e na segunda onda da pandemia.

O estudo, sugere, portanto, que líderes influenciam padrões de comportamento e as perguntas que ficam são: quais tipos de comportamentos devem ser estimulados?  Deve-se colocar as escolhas individuais acima das coletivas? De que forma a vida em sociedade permite que cada um faça suas escolhas?

A adesão à vacinação contra a COVID-19, em especial no que se refere à vacinação infantil, tem sido um problema no território nacional. Os discursos antivacina geraram dúvidas sobre a qualidade das vacinas oferecidas, resultando em uma queda histórica da imunização de crianças e adolescentes em 2021, com a pior cobertura vacinal em mais de 30 anos, colocando em risco a volta de doenças infeccionas já erradicadas. À vista disto, torna- se necessário ampliar o discurso da saúde pública, do coletivo, do bem-estar da sociedade. Torna-se necessário dar voz aos líderes que possam valorizar questões como a equidade, a defesa da vida, a justiça e a solidariedade. Do contrário, viveremos outras pandemias que resultarão, novamente, em altas taxas de mortalidade.

Referência:
Xavier et al. (2022) Involvement of political and socio-economic factors in the spatial and temporal dynamics of COVID-19 outcomes in Brazil: A population-based study. The Lancet Regional Health. Disponível em:  https://www.thelancet.com/journals/lanam/article/PIIS2667-193X(22)00038-2/fulltext. Acesso em março de 2022.

* Privaqua é um projeto de pesquisa que busca entender o impacto da privatização dos serviços de água e saneamento nos direitos humanosRegularmente, o site do ONDAS publica notas do Privaqua de forma a dar transparência ao projeto e compartilhar alguns de seus achados preliminares.

➡️ Clique aqui e leia todos os textos já publicados da interação ONDAS-Privaqua 

📝Interações, contribuições e sugestões são bem-vindas. Deixe seu comentário no final desta página.

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *