Neste artigo, a Professora Suyá Quintslr[i] examina a terceira e a quarta propostas formuladas pelo ONDAS em Carta à Sociedade Brasileira a propósito da epidemia do COVID-19, que teve o endosso da Fiocruz e do Relator da ONU para os Direitos à Água e ao Saneamento:
- assegurar água de forma regular, em quantidade suficiente e com qualidade adequada, às comunidades que habitam em ocupações nas áreas centrais e periféricas das cidades, bem como em localidades e assentamentos rurais, garantindo diálogo e participação da comunidade nas soluções a serem implementadas;
- interromper procedimentos de redução da pressão de redes de água que abastecem comunidades, favelas e periferias onde vivem famílias mais vulneráveis, sem renda ou com trabalho precarizado, visando garantir disponibilidade de água com pressão necessária para todos os moradores dessas localidades 24h por dia;
Com o avanço da pandemia causada pelo novo Coronavírus, alguns dados a respeito do desigual impacto da Covid-19 começam a surgir e demonstrar como alguns grupos sofrerão desproporcionalmente suas piores consequências.
No contexto estadunidense, onde os dados raciais estão disponíveis para algumas localidades, a diferença na mortalidade de negros e brancos é marcante: na cidade de Chicago (Illinois, EUA), por exemplo, apesar de os negros representarem 30% da população, a morte de pacientes negros chega a 70% do total. Esse padrão se repete de forma mais ou menos acentuada em outras cidades, condados e estados (Corrêa, 2020).
Naquele contexto, a disparidade vem sendo relacionada às desigualdades estruturais entre negros e brancos nos EUA e, particularmente, ao acesso desigual à saúde.
No Brasil, a existência do SUS, que garante – ao menos formalmente e apesar das dificuldades bastante conhecidas – acesso universal à saúde, é visto como uma oportunidade para o enfrentamento da pandemia. Todavia, o desigual acesso à moradia adequada, à água e ao saneamento podem ser ameaças, na medida em que dificultam as medidas de contenção da disseminação do vírus.
Buscando enfrentar essas dificuldades, o Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS) redigiu uma carta aberta com sugestões de medidas emergenciais para reduzir os impactos sobre os grupos mais vulneráveis. Algumas dessas medidas são direcionadas, especificamente, à população com acesso precário à moradia – seja em comunidades, cortiços, favelas e periferias, seja em ocupações.
Nas metrópoles de São Paulo e Rio de Janeiro – até agora os centros mais afetados – grande parte das favelas, apesar de possuir acesso à rede de abastecimento, sofre com intermitências no fornecimento de água. O mesmo ocorre nas periferias de diversos municípios dessas regiões, nos quais o centro é bem abastecido e, na medida em que nos afastamos da área central, os períodos de tempo sem receber água se multiplicam.
Os motivos técnicos alegados para tal deficiência referem-se à pressão exigida na rede para a água chegar a essas localidades: é necessário manter a pressão suficiente para que a água possa alcançar as áreas elevadas dos morros e as famosas “pontas de linha” da periferia. Entretanto, a redução de pressão é usada frequentemente pelos prestadores de serviços de saneamento para minimizar as enormes perdas ocasionadas pelos vazamentos ao longo da rede. Em outros casos, manobras nas redes direcionam água para áreas diferentes da cidade em dias alternados. Como consequência, moradores de áreas precárias que, em diversos casos, não possuem caixas d’água, passam horas, às vezes dias, sem acesso à água em suas moradias.
Para evitar essa situação, o ONDAS recomenda a interrupção dos “procedimentos de redução da pressão de redes de água que abastecem comunidades, favelas e periferias onde vivem famílias mais vulneráveis, sem renda ou com trabalho precarizado, visando garantir disponibilidade de água com pressão necessária para todos os moradores dessas localidades 24h por dia” (ONDAS, 2020).
Cabe ressaltar que, segundo o IBGE (2011), apenas nas favelas (ou aglomerados subnormais, segundo a classificação do Instituto) vivem mais de 11,4 milhões de pessoas. O contingente populacional nas periferias urbanas com atendimento precário dos serviços de água é ainda maior, mas a ausência ou a deficiência de informações sobre as intermitências de abastecimento e áreas atingidas impede um cálculo preciso do número de afetados.
Além disso, nos grandes centros urbanos do país, multiplicam-se as ocupações de prédios ociosos por cidadãos sem acesso à moradia. Em grande parte dos casos, as ocupações ocorrem em edifícios localizados em áreas centrais e que não cumprem a função social da propriedade garantida na Constituição Federal de 1988. A localização privilegiada tem algumas implicações importantes: além de facilitar o acesso às oportunidades de emprego e educação por parte de seus moradores, são edificações em áreas consolidadas da cidade e, portanto, com acesso às redes de saneamento. Ainda assim, o direito à água não é assegurado a seus moradores, que garantem o abastecimento de forma “alternativa” (Cortez, 2019). Os cortes de água e energia, obtidos de forma precária pela população, são frequentes, sendo utilizados, inclusive, para forçar a desocupação nas tentativas de reintegração de posse. Assim, a carta do ONDAS recomenda também que seja assegurada “água de forma regular, em quantidade suficiente e com qualidade adequada, às comunidades que habitam ocupações nas áreas centrais”. Esta recomendação, entretanto, se estende às áreas periféricas das cidades e às localidades e assentamentos rurais. Neste caso, recomenda-se que seja garantido o “diálogo e participação da comunidade nas soluções a serem implementadas” (ONDAS, 2020).
CORRÊA, Alessandra. Coronavírus: por que a população negra é desproporcionalmente afetada nos EUA? BBC, Winston-Salem, 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52267566. Acesso em: 14/04/2020.
CORTEZ, Rayssa Saidel. Água no centro: segurança hídrica em uma ocupação popular por moradia na área central de São Paulo. Dissertação (mestrado), Universidade Federal do ABC, Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território, São Bernardo do Campo, 2019.
IBGE. Dia Nacional da Habitação: Brasil tem 11,4 milhões de pessoas vivendo em favelas. Agência IBGE. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/15700-dados-do-censo-2010-mostram-11-4-milhoes-de-pessoas-vivendo-em-favelas. Acesso em: 14/04/2020.
IBGE. Censo Demográfico 2010. Aglomerados subnormais – Primeiros resultados. Rio de Janeiro, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, 2011.
ONDAS. 10 medidas emergenciais para garantir à população o direito à água durante a pandemia. ONDAS, 2020. Disponível em: https://ondasbrasil.org/10-medidas-emergenciais-para-garantir-a-populacao-o-direito-a-agua-durante-a-pandemia/. Acesso em: 14/04/2020.
[i] Doutora em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). Mestre em Ciência Ambiental (PGCA/UFF) e Bacharel em Ecologia (UFRJ). Professora Adjunta no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ).
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