Em contribuição ao debate do tema, a partir do artigo A norma brasileira de qualidade da água para consumo humano em revisão – um convite à reflexão sob a ótica dos direitos , de autoria do professor Rafael Kopschitz Xavier Bastos
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Érika Martins[1]
O mundo está tão distópico que discutir uma nova Portaria de Potabilidade da Água parece representar muito mais do que o tema da segurança da qualidade da água pode alcançar. Opera como um alento – Habemus Portaria -, se comparado ao sentimento de pânico que sua incorporação à Portaria de Consolidação no 5/2017 causou, frente a um cenário da não existência de uma norma de potabilidade de água de abrangência nacional. Ou seja, é preciso comemorar a finalização de mais um ciclo de revisão da referida norma, que logrou constituir grupo de especialistas que se dedicaram a atualizar à luz da ciência e dos novos contextos esse fundamental instrumento de proteção da saúde pública e; além disso, entregar à população a oportunidade de manifestação por meio de consulta pública. Em outras épocas poderíamos dizer que não fizeram mais do que a obrigação, mas nos dias de hoje convém comemorar e agradecer aos profissionais que se dedicaram à tarefa de nos brindar com a possibilidade de drinques de água segura.
Ao invés de discutir detalhes técnicos, avanços e recuos desta edição da Portaria, esta nota foca em alguns problemas mais abrangentes que impedem seu pleno cumprimento e em alguns desafios que se colocam na atual conjuntura. Esse recorte de análise deriva sobretudo do reconhecimento da confiança que esse instrumento gera aos atores, seja pela sua robustez em termos de suficiência, clareza e harmonia na definição de competências e de procedimentos operacionais; seja pelo seu caráter de permanência e atualidade. A rigor seria bastante injusto colocar essa lei na categoria daquelas que são feitas para não serem cumpridas, e talvez razoável se pudéssemos quantificar e qualificar sua colaboração para a evolução das práticas operacionais e da qualidade da água ao longo do tempo. Não dispondo dessa informação, podemos admitir que sua consolidação pressiona os agentes a se adaptarem e melhorarem seus procedimentos, e até mesmo a iça a uma posição de bastião intocável, em que o não atendimento causa mal estar aos políticos e aos prestadores pelo risco de serem expostos, e medo aos técnicos que podem ser responsabilizados. Mas a verdade é que há uma certa complacência com o não cumprimento da legislação em alguns quesitos que nem sempre são percebidos pelos leigos e que parece ir além da competência dos agentes envolvidos com o controle e a vigilância sanitária.
- Os limites da Portaria: quem é o responsável?
O descumprimento da Portaria pode-se dar pelo não atendimento aos valores permitidos para cada um dos parâmetros, que é tratado com a obrigatória identificação de causa e execução de plano de ação. No entanto, existem descumprimentos sistemáticos em que a atuação do controle e da vigilância sanitária são bastante inócuos, pois envolvem investimentos de maior vulto, sendo um deles a situação em que o tipo de tratamento instalado não é adequado para lidar com a água do manancial utilizado. Nesse caso, o não atendimento à legislação – CONAMA 357/2005 e outros dispositivos legais de nível estadual-, que classifica os corpos d´água quanto aos usos e define tipo de tratamento necessário, foi descumprida antes de haver o descumprimento à Portaria. Via de regra o principal poluidor dos mananciais de abastecimento é o próprio prestador de serviço de água, que também presta serviços de esgoto e descumpre a legislação já citada, que também define os limites permitidos para lançamento de efluentes. Há, portanto, um círculo vicioso que vige há décadas em todo Brasil, em que a inadequada qualidade da água é resultado do adiamento dos investimentos em coleta e em tratamento de esgotos e em tratamento avançado para a produção de água. Esse círculo vicioso se fecha com a narrativa de que os governos e os prestadores de serviços não seriam capazes de resolver o problema, pois não dispõem de recursos e a população não conseguiria arcar com tarifas mais altas. No entanto, boa parte desses prestadores é ironicamente objeto do interesse da privatização do setor, de forma que poderíamos concluir que sua capacidade de gerar excedentes financeiros para capitalistas poderia ser direcionada à realização de investimentos nos sistemas de água e de esgoto.
Então, vigilância e controle sanitários nada mais fazem do que constatar o eterno não atendimento a alguns parâmetros de qualidade que o sistema como um todo não é capaz de atender, numa situação que parece ultrapassar a esfera de competência de sua alçada. A bem da verdade as vigilâncias sanitárias poderiam ser acusadas de estarem prevaricando ou de terem sido cooptadas pelos governos ou prestadores de serviço, mas a inação parece estar mais ligada à consolidação de um estado das coisas em que as punições não teriam efeito prático, pois somente dariam conta de responsabilizar os não responsáveis.
Concorre para esse imbróglio a controvérsia sobre a responsabilização técnica, tendo em vista a distribuição de competências de operação das etapas dos processos entre diferentes gerências. Ou seja, a Portaria prevê a identificação de um único responsável técnico para cada sistema de abastecimento, quando algumas realidades têm a responsabilidade técnica extremamente diluída, o que significaria uma responsabilidade compartilhada ou à responsabilização de um representante hierarquicamente superior na organização. Em última instância a responsabilização técnica caberia ao representante legal do prestador, o que parece ir contra a lógica do que pretende a Portaria, qual seja a de garantir perícia técnica para operação de um sistema de abastecimento. Então, não é sem mal estar que os gerentes assumem a posição de responsáveis técnicos, cientes dos seus poucos poderes e na esperança de serem somente interlocutores que representam os prestadores de serviço nessa especialidade. Cientes dessa situação, a vigilância sanitária se depara com o que parece ser o limite de sua atuação, que somente seria ultrapassado por evento que descortinasse a realidade e mobilizasse a população e, por conseguinte, outros órgãos de controle. Outra possibilidade menos traumática seria o da evolução para maior intersetorialidade que unisse questões relativas à qualidade dos corpos d´água, geração de poluição, saúde pública e qualidade da água produzida, com vistas a dividir a responsabilidade e a iniciativa da abertura de processos de ajustamento de conduta e de previsão de investimentos nos planos de saneamento e nos contratos de programa.
- O impacto do modelo neoliberal nas funções de controle e vigilância sanitária
Outra importante forma de descumprimento da Portaria se dá pela não execução de todas as atribuições e procedimentos previstos, por insuficiência de quadro técnico qualificado e/ou não disponibilização de recursos materiais e tecnológicos. É preciso que se saiba em que medida as funções de controle e vigilância sanitária estão colocados em risco por conta dos processos de redução do tamanho da administração pública pregados pela ideologia neoliberal. O desmonte envolve o enxugamento de quadros, a desvalorização das carreiras e a consequente incapacidade técnica para cumprimento da legislação; bem como a falta de veículos e combustível para realização de coleta de amostras e de inspeções; e o contingenciamento de despesas para operação e manutenção de equipamentos e compra de insumos para a realização de ensaios laboratoriais. Assim, a pergunta que se coloca é se estamos a par do tamanho do desmonte que está havendo, e para responder a essa questão precisaríamos conhecer o quadro de recursos humanos e de infraestrutura laboratorial necessários e disponíveis nas três esferas da administração e em todos os cantinhos do Brasil.
Especificamente para a execução das atribuições de vigilância, é fundamental a existência de recursos humanos altamente especializados para realizar a análise dos relatórios carregados no Siságua; conduzir estudos de nexo entre doenças e eventos de saúde pública e a qualidade da água; bem como para acompanhar planos de ação de correção de não conformidades detectadas. Nesse sentido, à exemplo da avaliação de capacidade das agências reguladoras realizada pelo Ministério das Cidades no Programa Interáguas, seria interessante que o Ministério da Saúde conduzisse avaliação com vistas a quantificar e qualificar a capacidade técnica e operacional das vigilâncias sanitárias sobretudo dos municípios, de forma a subsidiar um programa de apoio técnico. O enfrentado a essa situação poderia também se dar com o apoio das agências reguladoras, na medida em que parte da atribuição da vigilância não é propriamente dita técnica, mas diz respeito a verificar se o controle de qualidade está sendo realizado pelos prestadores. Dessa forma, as agências reguladoras poderiam assumir o papel de verificação do cumprimento da legislação, qual seja saber se os planos de amostragem e os ensaios previstos estão sendo realizados, se resultados não conformes estão sendo tratados e se as informações estão acessíveis para a população. Além disso, as agências reguladoras poderiam também dar publicidade às informações de qualidade da água.
No caso dos controles sanitários, a sobrevivência da função enfrenta dificuldades oriundas da lógica da administração privada adotada pelos prestadores desses serviços públicos. Assim, os controles sanitários perdem o status de operarem atribuição imprescindível e obrigatória, e são obrigados a disputar recursos em meio às diretivas de redução de custos dos prestadores de serviço. Além disso, assuntos relacionados a qualidade da água são tratados com estratégias de marketing e não conformidades são tratadas pelo viés do prejuízo à imagem dos prestadores, como se as exigências relacionadas à saúde pública fossem um meio e não um fim. Então, os controles sanitários perdem autoridade, suas demandas são reduzidas a reclamações cujas causas não são visibilizadas, e acabam tendo que lidar sozinhos com a tarefa de resolver e esconder as não conformidades. Essa situação é bastante triste, pois os controles sanitários eram formados por profissionais que se reconheciam como sanitaristas com forte apelo dos primórdios da disciplina, qual seja de garantir que a redução da mortalidade infantil, impedir eventos de epidemias de veiculação hídrica, reduzir cárie dentária etc. Não bastasse isso, são ameaçados com propostas de terceirização de toda a atividade de controle sanitário, ou de contratação externa de análises laboratoriais, ou de venda de serviços como uma forma de gerar lucro para garantir sua existência. Esse estado das coisas é injustificável e não caberia discricionariedade do agente da vigilância que aliviasse o prestador de serviço pela não disponibilização de recursos humanos e materiais para o cumprimento das atribuições previstas na Portaria.
- A conjuntura determina o foco: como dividir responsabilização?
A Portaria tem ainda que se adaptar às novas conjunturas, sendo de extrema relevância no momento a atualização dos parâmetros de agrotóxicos devido à liberação de novos princípios ativos por parte do governo federal. Portanto, é bem provável que o primeiro interesse dos que leem a minuta da revisão é buscar entender as alterações relacionadas aos agrotóxicos. Parece que fomos pegos de surpresa, pois há cerca de três anos atrás diríamos que as grandes alterações da Portaria se dariam no sentido de introduzir parâmetros relacionados a princípios ativos de fármacos, a hormônios ou de avanços nos ensaios microbiológicos devido à biologia molecular. Ingenuamente também poderíamos ter imaginado que a tabela de agrotóxicos tenderia sempre à redução, porque continha produtos que há muito tempo já não se utilizava e havia a expectativa da redução do uso de pesticidas devido à evolução para uma agricultura mais sustentável e orgânica. Após contar, por curiosidade, quantos parâmetros saíram, quantos entraram e quantos tiveram seus valores máximos permitidos alterados; a pergunta que paira é se a alteração é suficiente para dar conta de monitorar todas as novas substâncias e compostos que estão sendo comercializados e de garantir que os valores máximos permitidos protegerão a saúde humana.
A questão dos agrotóxicos parece também extrapolar o alcance da Portaria se levarmos em conta que estamos lidando com uma das externalidades do setor de agronegócio, que se dá pelo repasse dos custos do controle dessas novas substâncias e compostos aos prestadores de serviços e, portanto, aos cidadãos. Enquanto discutimos a Portaria os controles sanitários provavelmente já foram impactados ou estão se programando para implantar e colocar em linha a execução de novos ensaios, o que envolve tempo de pessoal e de equipamentos que pode estar acima da capacidade instalada, e talvez nem estarem disponíveis em laboratórios privados. Poder-se-ia pensar na dispensa de sua execução se houvéssemos avançado na elaboração de planos de segurança da água e se houvesse disponibilidade de informações sobre local da aplicação desses produtos. No entanto, é difícil acreditar que os responsáveis técnicos do controle estejam dispostos a solicitar a dispensa e que as vigilâncias tenham coragem de aprová-las, haja vista a imagem de anarquia do setor agropecuário e a possibilidade de evento sanitário, mesmo em se tratando de mananciais mais próximos aos centros urbanos.
O futuro dirá se os efeitos dos alimentos ou da água que consumimos fará parte da próxima distopia, restando no âmbito da Portaria pensar até que ponto seus limites de atuação não poderiam prever a responsabilização dos agentes das cadeias de poluidores, não somente com relação aos custos já comentados de controle dos poluentes no meio ambiente e nos processos de produção de água, mas também por meio de apoio técnico e obrigatoriedade de fornecimento de informações. Esse assunto provavelmente não será resolvido nesta edição da Portaria, até por conta da escassa intersetorialidade já comentada, que envolve também a interface com mecanismos de poluidor-pagador; mas deveria ser objeto de discussão com vistas a formulação de legislação específica ou previsão para próxima Portaria.
- A Portaria é inacessível ao controle social
Na medida em que os sistemas operacionais se tornam mais complexos, existe forte tendência a que sua gestão adote viés tecnocrata, o que implica em assimetria de informação e de poder entre os profissionais do setor e os agentes que pretendem realizar o controle social. Essa situação foi bastante clara no evento da crise hídrica ocorrida entre 2014 a 2016 no Sudeste, em que houve forte empenho por parte dos prestadores de serviço e dos órgãos de controle cooptados pelos governos em não somente esconder como em tornar sigilosas diversas informações, mas também em fazer com que todo o problema não fosse inteligível para a população. É como se os dados e as informações desaparecessem antes da água, e o questionamento aos tecnocratas de plantão que protegem as instituições somente pudesse ser interposto mediante comprovação de titulação acadêmica. Dois instrumentos ganham então importância, a saber o Decreto Presidencial 5440/2005 e o sistema de informações Siságua, para que não estejamos à mercê da abertura ou do desaparecimento das “caixas pretas”, que se dão em meio às crises.
Com relação ao Decreto, pode-se dizer que, apesar das boas intenções e da elevação do nível de transparência que houve num primeiro momento, está claro que não houve sua plena implementação por parte dos prestadores e que o avanço é bastante questionável no que se refere à realização de direitos substantivos de acesso a informações. Basicamente o que se verifica é que estão disponíveis informações dos cinco parâmetros básicos nas contas mensais de água, a saber: turbidez, cor, cloro, coliformes totais e fecais em termos de quantidades de amostras mínimas, realizadas e conformes; bem como a descrição do significado desses parâmetros. Além disso, os prestadores encaminham relatórios anuais aos consumidores, que dão conta de apresentar as mesmas informações resumidas mensalmente ao longo de todo o ano junto com alguns detalhes sobre os mananciais e os sistemas de tratamento de água. Todavia, são raros os prestadores que realmente disponibilizam informações referentes às substâncias que causam risco à saúde, seja nas contas mensais ou nos relatórios anuais. Então a sua parcial implementação, quer seja na não liberação do resultado de todos os parâmetros não conformes, quer seja na apresentação da situação dos mananciais e das causas das eventuais não conformidades não retratam a realidade e não instrumentalizam a sociedade para o exercício de seu direito a água de qualidade. No caso da conta de água o cidadão se depara com uma informação que é de difícil compreensão e parece não ter significado prático; e no caso do relatório anual a impressão é que se tratar de uma peça publicitária. Vale colocar que a operacionalização do Decreto é relativamente complexa pois obriga a interface e automatização dos processos comercial de emissão de conta e o de controle sanitário na execução de ensaios laboratoriais; além de análise de dados, produção e distribuição de relatórios anuais. Esse Decreto precisaria ser avaliado no que se refere a sua eficácia e na abrangência de sua implementação por parte dos prestadores, que vinha sendo realizado por tarefa conjunta de quatro ministérios da Justiça, Saúde, Cidades e Meio Ambiente; e que talvez devesse fazer parte do escopo da revisão da Portaria.
A implantação do Siságua também se configura como um avanço, ao padronizar e obrigar a entrega dos relatórios dos prestadores e disponibilizar a base de dados na abrangência de todo o país. No entanto, o sistema ainda tem bastante a evoluir, sobretudo na construção de uma interface amigável com aqueles que não são usuários, disponibilizando ferramenta de filtro, gráficos e relatórios de análise. Ou seja, já foi dado um primeiro grande passo no sentido de conseguir construir sistema que centralize o histórico de dados e que possa ser utilizado como ferramenta para as operações de controle e vigilância sanitária. Mas o sistema não é acessível a cidadãos leigos, pois o manuseio da imensa massa de dados disponibilizada somente é alcançado por especialistas, e mesmo assim com bastante esforço.
E por fim, como colaboradores do Ondas, poderíamos refletir sobre os esforços que ainda não foram feitos no sentido de compartilhar nossos conhecimentos técnicos sobre o tema com os leigos, sobretudo por meio do envolvimento dos movimentos sociais nessa discussão e da educação popular.
[1] Engenheira sanitarista.
LEIA:
➡️ A norma brasileira de qualidade da água para consumo humano em revisão – um convite à reflexão sob a ótica dos direitos – Artigo Rafael Kopschitz Xavier Bastos
➡️ Apresentação: Revisão do Anexo Portaria de Consolidação nº 5/2017 (antiga Portaria nº 2914 / 2011), que trata dos procedimentos de Controle e de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano – um convite à reflexão sob a ótica dos direitos
CONTRIBUIÇÕES AO DEBATE
➡️ Revisão da Norma de Potabilidade: inclusões com vista aos direitos humanos – Alex M. S. Aguiar
➡️ Potabilidade: por um Anexo XX da Portaria mais inclusivo – Elias Haddad Filho
➡️ Fortalecer a vigilância da qualidade da água e melhorar a transparência sobre sua qualidade da água distribuída é contribuir para garantir o direito humano à água – Silvano Silvério da Costa
➡️ A portaria de potabilidade da água: insistência em avançar em meio ao retrocesso – Érika Martins
ONDAS faz balanço da proposta de revisão da portaria sobre água para consumo humano
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