ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

A conexão Mayotte – Londres: o capital financeiro no saneamento

autor: Marcos Montenegro*

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Até pouco dias eu não tinha ouvido falar de Maiote ou Mayotte (em francês).

Ilha no Oceano Índico, entre Madagascar e a costa de Moçambique, Maiote tem status de departamento de ultramar da França. Foi anexada em 1841e hoje é o mais pobre departamento da França. É, na África, testemunho do colonialismo francês como são aqui na América Latina, a Martinica, St. Martin e a Guiana Francesa.

Fiquei sabendo de Maiote pelas páginas do Libération, diário francês apelidado de Libé pelos leitores, em matérias tratando da tremenda crise de abastecimento de água enfrentada pelos seus habitantes. A má gestão do recurso hídrico agrava a falta de água para o consumo dos cerca de 300 mil habitantes e para a agricultura em um contexto de estiagem prolongada.

No início deste mês, o governo francês anunciou que vai arcar com o pagamento das contas de água dos residentes na ilha até dezembro. Afinal, eles estão enfrentando um racionamento de um dia com água por dois sem. E, segundo a deputada Estelle Youssouffa, uma dos dois parlamentares eleitos pelo departamento de Maiote, quando água sai da torneira, é marrom e inadequada para consumo humano. O governo francês também prometeu aumento da distribuição gratuita de água engarrafada.

Em declaração à Rede França Internacional (RFI), Racha Mousikoudine, coordenadora do coletivo Mayotte à Soif (Maiote tem Sede), se diz cética em relação ao anúncio do governo e culpa a SMAE Mahoraise des Eaux, uma filial do grupo Vinci que presta os serviços de água do departamento. “A situação foi criada porque a rede de água e a água em geral são mal geridas”, disse ela à RFI. “Então a SMAE deve agora responder a isso. A culpa é deles.”

Segundo reportagem da RFI a estiagem é agravada pela falta de investimento nas infraestruturas de abastecimento, enquanto a população do arquipélago aumenta cerca de 4 por cento ao ano, em grande parte devido à imigração das ilhas vizinhas das Comores. O governo francês comprometeu-se com 35 milhões de euros para reduzir perdas de água e afirma que as duas centrais de dessalinização há muito prometidas estarão concluídas até ao final de 2024.

O grupo VINCI, holding da SMAE, atua mundialmente em concessões, energia e construção em mais de 120 países e tem capital social de 1,5 bilhões de euros, do qual 72,8% são possuídos por investidores institucionais (bancos, seguradoras, fundos de investimentos, fundos de pensão e family offices que gerem o capital de cotistas, buscando aplicar este montante em aplicações financeiras lucrativas).

Enquanto isso, na Inglaterra, subinvestimento, cortes agressivos de custos e enormes pagamentos de dividendos

A Thames Water, a maior empresa privada prestadora dos serviços de água e esgoto, atendendo mais de quinze milhões de pessoas na área de Londres e sudeste da Inglaterra, está ameaçada de nacionalização (estatização) temporária em razão do péssimo desempenho operacional e da precária situação financeira, afundada por uma dívida de cerca de 16 bilhões de libras esterlinas (cerca de 93 bilhões de reais). O gráfico elaborado pelo Guardian mostra a evolução do endividamento desde 1989 até o final de 2022.

Evolução do endividamento da Thames Water em bilhões de libras esterlinas

A Thames Water foi privatizada livre de dívidas em 1989, no governo neoliberal de Margareth Tatcher. Mas de lá para cá, a empresa teve seu desempenho operacional fragilizado pelo subinvestimento e pela priorização de pagamentos vultosos aos seus acionistas privados. Em 32 anos foram pagos 7,2 bilhões de libras em dividendos aos acionistas, cerca de metade do valor da dívida atual.

Completando o quadro, o Conselho dos Consumidores de Água considerou a Thames Water, juntamente com a Southern Water, outra prestadora privada, como  os “destaques de baixo desempenho” no tratamento de reclamações de clientes em 2022. Segundo o Guardian, no mês passado, o regulador, Ofwat, ordenou que a Thames Water devolvesse £ 101 milhões (R$ 620 milhões) aos clientes, por não atingir as metas de controle de perdas e de extravasão de esgoto não tratado nos corpos d’água superficiais. 

Em 32 anos, £ 7,2 bilhões – Histórico dos pagamentos de dividendos pela Thames Water aos seus acionistas (em milhões de libras esterlinas)

As contas da Thames Water são um exemplo típico das consequências da financeirização da gestão dos prestadores de água e esgoto. A privatização, propagada como o meio de levar a uma nova era de investimento, na verdade foi direcionada como fonte de remuneração rápida para investidores institucionais. Segundo o Guardian, este direcionamento foi levado ao paroxismo no período de 2006 a 2017, no qual a empresa australiana de gestão de ativos de infraestruturas Macquarie controlou a Thames Water e sistematicamente contraiu empréstimos contra os seus ativos para aumentar o pagamento de dividendos aos acionistas.

O jornal The Standard informa que atualmente os maiores acionistas da Thames Water são: o fundo de pensão canadense Ontario Municipal Employees Retirement System (Omers), com 32%, o maior fundo soberano da China, a China Investment Corporation, com quase 9%; o maior fundo de pensões privado do Reino Unido, o Universities Superannuation Scheme, com 20%; e o Infinity Investments, uma subsidiária da Autoridade de Investimentos de Abu Dhabi, com 10%.

Segundo a mesma matéria, mais de 90 por cento das empresas de água inglesas são propriedade de investidores internacionais, fundos de private equity e bancos.

A financeirização da gestão vem sendo acompanhada pela oligopolização da prestação destes serviços públicos essenciais. Na França, a Suez foi adquirida, em uma operação de 13 mil milhões de euros, pela Veolia, cujos acionistas são essencialmente bancos e fundos de gestão de ativos.

Quem, razoavelmente informado, pode acreditar que este modelo de negócio fundado na ganância é o caminho para a realização progressiva dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário?

Nem Cândido, ícone da ingenuidade!


*Marcos Helano Montenegro é engenheiro civil e mestre em Engenharia Urbana e de Construções Civis, coordenador de comunicação do ONDAS e diretor nacional da ABES.

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