ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

A crise na privatização dos serviços de saneamento em Ouro Preto-MG

Texto da interação ONDAS-Privaqua*
____________________________
A CRISE NA PRIVATIZAÇÃO DOS SERVIÇOS DE SANEAMENTO EM OURO PRETO-MG
Autores: Davi Victral, Ivanice Paschoalini, Laura Magalhães, Natália Onuzik

A histórica cidade de Ouro Preto-MG, famosa por seus chafarizes, fontes de água datadas dos séculos XVIII e XIX, conta com uma população de 70.281 habitantes (IBGE, 2010), e salário médio mensal de 3,1 salários mínimos (IBGE, 2019), sendo 35% da população com rendimentos mensais de até meio salário mínimo por pessoa. Os números do saneamento do município indicam que 96% dos domicílios urbanos e 74% dos domicílios rurais têm acesso à rede geral de abastecimento de água, e 85% dos domicílios urbanos e 54% dos domicílios rurais à rede geral de esgoto ou pluvial (PNSR, 2019). Há 22.500 ligações de coleta de esgoto da sede e dos distritos, com tratamento somente no distrito de São Bartolomeu. O restante dos efluentes do município têm como destinação galerias de águas pluviais, corpos hídricos ou drenagem natural (VALENTE et al., 2018).

Historicamente marcada pela gestão pública da água desde o século XVIII, que por meio do Programa de Aquisição de Águas Urbanas pôs sob a égide da administração pública o sistema de abastecimento de água de Vila Rica (CARLES, 2016),  a cidade vive atualmente um novo cenário no setor de saneamento básico com a privatização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, migrando da autarquia municipal Semae-OP (Serviço Municipal de Água e Esgoto de Ouro Preto) para o consórcio de empresas Ouro Preto Serviços de Saneamento (Saneouro).

A Prefeitura Municipal de Ouro Preto publicou, pela primeira vez, em 07 de junho de 2018, a abertura de procedimento licitatório n.º 06/2018, na modalidade concorrência, do tipo técnica e preço, para concessão patrocinada da prestação dos serviços públicos municipais de água potável e esgotamento sanitário do Perímetro Urbano do município de Ouro Preto, nos termos da lei n.º 11.079/2004.

O objetivo do Município de Ouro Preto era privatizar o serviço de abastecimento de água e de coleta e tratamento do esgotamento sanitário. Conforme já exposto em artigos anteriores deste espaço, a privatização pode assumir diversos modelos, desde a transferência integral e definitiva da empresa ou serviço público ao ente privado ou sua concessão, que pode ser comum ou por meio de parcerias público-privadas (PPP). Estas, por sua vez, podem ser administrativas ou patrocinadas. No caso de Ouro Preto, o município optou por uma PPP patrocinada, já que os consumidores, usuários dos serviços de água e esgotamento sanitário, serão responsáveis pelo pagamento das tarifas.

No curso do processo de licitação perceberam-se inúmeros percalços.  Os requisitos formais exigidos pela lei das PPP’s estavam presentes, como, por exemplo, as atas de reunião do Conselho Gestor do Programa de PPP no município de Ouro Preto, decreto municipal para Manifestação de interesse privado e em concessão patrocinada; legislações municipais autorizativas para a Concessão dos serviços; estudo de viabilidade técnica; publicações de convocação e atas de realização das audiências públicas. No entanto, após a efetiva publicação do edital, houve muitos pedidos de esclarecimentos o que resultou em impugnação e revogação do edital; sua revisão e alteração para que o tipo de licitação fosse o de menor preço. Por último, mas não menos importante, ocorreu a suspensão do processo pelo Tribunal de Contas do Estado de MG para diligências, após denúncias.

Assim, em 16 de outubro de 2019, o contrato de concessão patrocinada foi assinado entre o Município de Ouro Preto e a Sociedade de Propósito Específico Saneouro. Sendo assim, a Saneouro  passa a ser a responsável pelos serviços de abastecimento de água potável e esgotamento sanitário do município por 35 anos. A Saneouro é um consórcio formado pelas empresas GS Inima Brasil e MIP Engenharia, braço brasileiro do Grupo GS, grande conglomerado empresarial sulcoreano, presente em diversos países da América Latina e África.

O contrato de concessão prevê como metas a universalização dos serviços de água em cinco anos, investimentos em obras de infraestrutura, redução do volume de perdas de água tratada, ampliação da coleta de esgoto para 90% em 15 anos e tratamento de todo o esgoto coletado em 60 meses, além da hidrometração dos imóveis[1].

É necessário, também, contextualizar debates em nível nacional onde ocorrem processos de privatização de diversos serviços que impactam diretamente sua população. Um dos debates atuais, por exemplo, é sobre a atualização do marco legal do saneamento com a Lei nº 14.026/2020, que levanta questões sobre regionalização e privatização[2].

Considerando o contexto da cidade de Ouro Preto, com amplas manifestações dos cidadãos contra o modelo atual de prestação de serviços de saneamento pela Saneouro e sua vontade de cancelar a privatização, surgem questionamentos sobre como o Poder Executivo e o Legislativo podem agir frente ao descontentamento da população. Deve-se considerar que, no Brasil, há sete formas de extinção dos contratos de concessão ou de parcerias público-privadas, definidos por Ribeiro (2011), quais sejam:

i) término do prazo do contrato;

ii) encampação, que é a forma de extinção prematura do contrato de concessão comum ou PPP, por decisão política;

iii) caducidade, que ocorre por iniciativa da Administração no caso de descumprimento relevante do contrato pelo parceiro privado;

iv) rescisão, que ocorre por iniciativa do parceiro privado, no caso de descumprimento relevante do contrato pela Administração Pública;

v) anulação, para o caso de contrato inválido, seja por vícios no processo da sua celebração ou no seu conteúdo;

vi) ocorrência de caso fortuito ou de força maior, regularmente comprovada, impeditiva da execução do Contrato;

vii) falência ou extinção da empresa concessionária (RIBEIRO, 2011, p. 172).

Especificamente para o caso do Município de Ouro Preto, a possibilidade jurídica para a extinção do contrato, a princípio, seria a encampação, por decisão política devidamente fundamentada pela resistência legítima da população ouro-pretana em garantir seus direitos humanos. Contudo, pode haver um alto custo financeiro para a municipalidade, já que a concessionária deverá ser ressarcida nos seus custos reais e multas contratuais e ainda na previsão de lucros cessantes, o que a concessionária deixou de ganhar com base na sua proposta comercial e análise de um verificador independente, que também deverá ser contratado e pago pelo município.

Por fim, os processos de privatização da prestação dos serviços de saneamento, estimulados pelo “novo” Marco Legal do Saneamento Básico, podem acentuar questões de acessibilidade econômica à água e ao esgotamento sanitário no Brasil, devido às características da prestação privada – focada no lucro – e aos fatores já atrelados à prestação destes serviços – a formação de monopólios naturais e a assimetria de poder entre as prestadoras e o Estado. O caso de Ouro Preto explicita a necessidade de um acompanhamento mais próximo, desde os primeiros passos, para a privatização destes serviços, com o intuito de garantir que, sendo essa a escolha do município, que o processo ocorresse de forma simétrica e justa. O contexto atual do município, com manifestações amplas de desagrado à prestação privada, explicita que os riscos associados à contratação serão sempre do poder público, e a conta sempre vai, direta ou indiretamente, para o cidadão. A resolução desses imbróglios pode ter fins diversos com a atuação do Estado, porém as dificuldades e os custos devem ser avaliados para não se colocar em situação mais delicada as populações e indivíduos que já se encontram em situação de vulnerabilidade social e econômica. Tal discussão coloca em relevo a grande responsabilidade que se tem no processo de decisão pela privatização dos serviços de saneamento, dadas as limitações da reversão posterior desse processo.

Ouro Preto é um marco histórico da luta popular em Minas Gerais, e neste momento pode estar escrevendo mais um capítulo desta história, ao rejeitar a privatização de serviços tão essenciais como os de água e esgotos, direitos humanos fundamentais.

[1] http://www.saneouro.com.br/quem-somos/
[2] https://ondasbrasil.org/primeiros-capitulos-do-processo-de-regionalizacao-do-saneamento-no-brasil/

Referências:
IBGE. Portal Cidades@ Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/ouro-preto/panorama>.

CARLES, M.  Águas de domínio público (Brasil colonial) O caso de Vila Rica, Minas Gerais, 1722-1806. Rev. Varia História, v.32, n.58, p. 79-100, 2016.

FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE. Programa Nacional de Saneamento Rural. Brasília – DF: [s.n.], 2019.

VALENTE, L. et al. CONDIÇÕES DO SANEAMENTO BÁSICO NA CIDADE HISTÓRICA DE OURO PRETO,  2018.

RIBEIRO, Maurício Portugal. Concessões e PPPs: melhores práticas em licitações e contratos. São Paulo: Atlas, 2011.

LEIA TAMBÉM:
A crise na privatização dos serviços de saneamento em Ouro Preto – acessibilidade econômica e direitos humanos – parte II

* Privaqua é um projeto de pesquisa que busca entender o impacto da privatização dos serviços de água e saneamento nos direitos humanosRegularmente, o site do ONDAS publica notas do Privaqua de forma a dar transparência ao projeto e compartilhar alguns de seus achados preliminares.

➡️ Clique aqui e leia todos os textos já publicados da interação ONDAS-Privaqua 

📝 Interações, contribuições e sugestões são bem-vindas. Deixe seu comentário no final desta página.

📝INSCREVA-SE 👇

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *