Entrevista de Alexandre Pessoa à Revista Poli – Saúde, Educação, Trabalho – nº 79 – set/out. 2021 – páginas 18 a 21
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“SE NÃO REVERTERMOS ESSE PROCESSO, CAMINHAREMOS PARA O COLAPSO AMBIENTAL”
Será a “extinção” do licenciamento ambiental no Brasil. Assim a nota da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, Abrasco, define o que vai acontecer se o projeto nº 2.159, de 2021, que já foi aprovado na Câmara dos Deputados e está sendo agora discutido no Senado, se tornar lei. Depois de tramitar por mais de 20 anos, o texto que institui uma lei geral do licenciamento ambiental finalmente avançou, mas não sem antes ser completamente descaracterizado, tornando-se o oposto do que defendiam pesquisadores, entidades e movimentos sociais ambientalistas.
Alexandre Pessoa, engenheiro sanitarista e professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), da Fiocruz, ajudou a construir o posicionamento público da Abrasco e tem travado esse debate em todos os espaços possíveis. Nesta entrevista, ele mostra como o PL praticamente elimina o papel do Estado na regulação de obras de infraestrutura, energia elétrica, saneamento e instalações agropecuárias, entre vários outros empreendimentos que possam gerar impactos socioambientais e à saúde das populações. Além de detalhar as muitas ‘armadilhas’ embutidas no texto e exemplificar com tragédias e riscos reais, Pessoa alerta para o que considera um dos principais retrocessos do projeto: a separação, proposital, entre ambiente e saúde, ignorando-se os impactos mais ou menos diretos que as questões ambientais têm sobre a qualidade de vida das pessoas e as condições sanitárias do país.
Revista Poli: Gostaria que você falasse sobre a relação entre as áreas de meio ambiente e saúde, que vêm se aproximando e constituindo uma espécie de ‘campo’ de estudos, de pesquisa e de atuação política. Quais são as principais pautas que aproximam essas áreas?
Alexandre Pessoa: O campo de conhecimento e atuação da saúde e ambiente no Brasil tem uma longa história. Podemos citar ainda nas primeira e segunda décadas do século 20 as expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz que, no enfrentamento das epidemias do litoral e das endemias identificadas com a descoberta dos sertões, revelavam as precárias condições de vida, moradia, trabalho e insalubridade das populações rurais. A descoberta da doença de Chagas, em 1909, pelo sanitarista Carlos Chagas, é uma importante referência da epidemiologia ambiental, uma vez que ele identificou todo o ciclo da doença, integrando as relações entre o ambiente, a ecologia humana e dos animais que eram reservatórios da doença, do vetor transmissor – o barbeiro – e do protozoário. Os relatórios de campo faziam uma descrição minuciosa de como as condições ambientais interferiam na saúde e na reprodução da vida, com extenso registro fotográfico.
De lá para cá, com o aumento das transformações nas áreas urbanas, periurbanas e rurais, novas alterações interferiram na dinâmica dos processos saúde-doença-cuidado, promovendo inclusive deslocamentos na medida em que estradas e aglomerados populacionais entram nas florestas e em outros ecossistemas, gerando alterações ecológicas e doenças emergentes. A maioria das novas doenças infectocontagiosas no mundo são zoonoses, resultantes do deslocamento de animais silvestres para os humanos, podendo passar de forma intermediária por animais de criação. O próprio Sars-CoV-2, o vírus da Covid-19, tem como hipótese atualmente mais aceita a origem em morcegos. As florestas e a biodiversidade são consideradas barreiras ecológicas, de proteção contra novos saltos zoonóticos. O campo da saúde e ambiente tem aprofundado os temas sobre biodiversidade, saneamento, agriculturas, impactos de grandes empreendimentos, agrotóxicos, mineração, vigilância em saúde e do desenvolvimento, saúde do trabalhador, das populações do campo, da floresta e das águas, clima e desastres, dentre outros.
Revista Poli: Os impactos ambientais sobre a saúde das populações podem ser mais ou menos diretos e imediatos. Você pode dar exemplos?
Alexandre Pessoa: Primeiro é importante destacarmos que os problemas da saúde não podem ser reduzidos somente às doenças, mas devem ser consideradas as determinações socioambientais da saúde. Por exemplo, o direito das populações ao acesso à água, à terra, ao trabalho, aos recursos naturais para existência em conexão com seus modos de vida é determinante para a saúde coletiva. O Brasil possui uma megabiobiversidade e uma ampla cartografia social que precisam ser preservadas pelo Estado. Grandes empreendimentos que visam à exploração das riquezas naturais, que se utilizam de estradas, indústrias, unidades geradoras de resíduos e de contaminação hídrica, contaminação do solo, atmosférica, dos seres vivos, dos ecossistemas, obras que modificam os cursos da água, como as barragens e transposições, ou seja, intervenções que podem reduzir a biodiversidade de forma irreversível e gerar problemas de saúde dos trabalhadores e processos de desterritorialização da população local que passam a ser denominados como atingidos, devem, portanto, ser regulados, licenciados e fiscalizados pelo Estado. Esses são exemplos concretos da relação entre economia, ambiente e saúde. O atual modelo de desenvolvimento tem gerado crises ecológicas, sanitárias, violências, pobreza, insegurança hídrica e alimentar.
Pensando diretamente na geração de doenças, vale lembrar que existem doenças relacionadas à pobreza mas também as doenças do desenvolvimento. A malária é um bom modelo explicativo pois, apesar de ter como causa imediata um protozoário transmitido por mosquito, o número de casos se agrava na medida em que ocorrem alterações drásticas no ambiente, seja pela construção de barragens, seja pelo aumento do desmatamento. Por isso, é necessário compreendermos as ‘causas das causas’ e suas forças motrizes, senão ficamos na crise dos sintomas, sem reconhecer suas determinações. A exposição frequente a diversos tipos de agrotóxicos que estão no ambiente, no ar, no solo, nas águas e nos alimentos, com o passar dos anos e de forma invisível, pode gerar inúmeras doenças crônicas, tais como alergias respiratórias, lesões hepáticas e renais, efeitos neurotóxicos, cânceres, dentre outros. O ‘Dossiê Abrasco – os impactos dos agrotóxicos na saúde’ é uma importante referência no tema, entretanto a autorização de novos produtos tem aumentado, desde 2019, de forma exponencial no país. A poluição atmosférica gerada pelo aumento exponencial de incêndios que têm ocorrido em grandes extensões no Brasil, além da destruição ambiental, é um grave problema de saúde pública, uma vez que pode causar inúmeras doenças respiratórias, processos alérgicos e inflamações pulmonares, insuficiência respiratória, problemas cardiovasculares, cânceres e várias outras. As interações desses diversos problemas de saúde diante da crise sanitária configuram um efeito sistêmico de aumento da vulnerabilidade socioambiental, que denominamos de sindemia.
Revista Poli: A criação de uma Lei Geral do Licenciamento Ambiental é, originalmente, uma demanda de grupos militantes e pesquisadores ambientalistas. Por quê?
Alexandre Pessoa: Uma lei geral de licenciamento ambiental já foi objeto de debates com intuito de estruturar melhor e padronizar em termos gerais o licenciamento no Brasil para que se evitasse exatamente o processo de fragilização das legislações estaduais e municipais. Entretanto, essa proposta foi capturada e invertida de forma oportunista, em plena pandemia, por meio de um PL [projeto de lei] movido pelos interesses de corporações privadas sem preocupação socioambiental, eliminando completamente uma estratégia de sustentabilidade de atendimento às necessidades coletivas e de aperfeiçoamento da legislação ambiental. Isso infelizmente visa eliminar a proteção do Estado e reduzir custos de forma que os investimentos, inclusive internacionais, possam avançar sobre unidades de conservação ambiental e territórios de comunidades tradicionais que são verdadeiras protetoras do meio ambiente. As terras indígenas e quilombolas são mais protegidas pela legislação vigente e quando o Estado não cumpre o seu papel de proteção, os povos tradicionais se mobilizam em redes, denunciando junto ao Ministério Público e à imprensa nacional e internacional as ações criminosas de avanço sob suas terras por fazendeiros, madeireiros, grileiros, garimpeiros, dentre outros.
Revista Poli: A nota emitida pela Abrasco sobre o PL 2.159/2021 cita recentes tragédias como a queda da barreira de Brumadinho e Mariana, derramamento de petróleo no mar, incêndios no cerrado, desmatamento da Amazônia e até o avanço da monocultura baseada em agrotóxicos como exemplos de situações que demandam uma boa Lei Geral do Licenciamento Ambiental. Como o licenciamento ambiental pode prevenir ou minimizar os impactos de tragédias como essas ao meio ambiente e à saúde?
Alexandre Pessoa: O licenciamento ambiental é um dos pilares da Política Nacional de Meio Ambiente, instituída em 1981, que estabelece diversas exigências para que os empreendimentos possam comprovar, por meio da apresentação de estudos técnicos, sua viabilidade de implantação, bem como cumprir seus condicionantes de operação, que incluem a definição das áreas de influência previstas para implantação e expansão, os recursos naturais utilizados, os padrões de lançamento de resíduos, medidas mitigadoras ambientais e compensatórias para as populações locais, entre outros. Em resumo, os condicionantes são o atendimento a todos os requisitos estabelecidos na etapa de autorização do empreendimento. A proposta desse PL, acrescida de diversos outros projetos de lei que estão tramitando em caráter de urgência no Congresso Nacional relativos às restrições dos direitos dos povos indígenas, faz parte da mesma estratégia neoliberal de desmonte dos órgãos de controle ambiental que tem inviabilizado cada vez mais o papel fiscalizador do Estado, conforme descrito na nota da Abrasco. Essa fiscalização deve ser efetiva para instalações, unidades de extração, transporte, produção e infraestrutura já licenciadas, bem como é necessária para enfrentar ações irregulares e criminosas, a exemplo do garimpo em terras indígenas, que forma enormes crateras nas florestas a olhos vistos, em total descumprimento da Convenção de Minamata, acordo internacional que determina a retirada do mercúrio da atividade humana. Como o Brasil é signatário dessa Convenção, isso deveria envolver ações efetivas, integradas e urgentes dos governos federal, estadual e municipal. Caso contrário, além da ingestão de peixes contaminados pelas populações indígenas, ribeirinhas e de cidades próximas, os conflitos e violência se ampliam.
As tragédias citadas na nota da Abrasco são evidências de que as políticas públicas de meio ambiente precisam ser fortalecidas, caso contrário os impactos são avassaladores sobre a saúde, a vida das populações e o próprio SUS. Quando falamos da estratégia da promoção de territórios sustentáveis e saudáveis, estamos afirmando que as ações preventivas de proteção ambiental e de promoção da saúde diminuem danos, as doenças e agravos à saúde e reduzem de forma significativa a demanda por assistência à saúde, os custos de medicamentos e as internações hospitalares.
Revista Poli: Faz uma avaliação geral sobre esse Projeto de Lei para a gente?
Alexandre Pessoa: A flexibilização e a fragilização da legislação ambiental já vêm ocorrendo no Brasil há algum tempo, a exemplo da revisão do Código Florestal. Mas esse PL que tramita agora no Senado está sendo questionado por parlamentares, inúmeras entidades e movimentos sociais porque representa um risco de extinção do licenciamento ambiental no Brasil. O PL possui em todo o seu corpo um conjunto de mudanças no arcabouço legal que fere de forma frontal os princípios da prevenção, da precaução e da participação social. Um exemplo central disso está na proposta da Licença de Adesão e Compromisso, que instaura em nível federal o autolicenciamento. Se aprovado, isso permitiria que licenças de empreendimentos passassem a ser emitidas automaticamente, sem estudo ambiental e sem a análise específica pelo órgão ambiental considerando as demandas de recursos naturais e dos estudos dos impactos socioambientais das diversas atividades potencialmente poluidoras. Na verdade, essa autodeclaração não deveria ser considerada nem uma licença e nem mesmo uma autorização, mas apenas um cadastro registrando sua existência. Isso se configura como um grave retrocesso pois retira de forma significativa o dever do poder público de defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações, conforme prescrito no Artigo 225 da Constituição Federal. Caso esta proposta seja aprovada, poderá ocorrer um efeito cascata para as instâncias estaduais e municipais, uma vez que poderá se configurar uma concorrência entre os governos para serem menos criteriosos e exigentes, passando com isso a terem maior atratividade aos empreendimentos impactantes, aumentando a vulnerabilidade socioambiental. Além disso, os efeitos dessas alterações estarão em dissonância com diversos acordos internacionais, como a Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho], a Agenda 2030, em praticamente todos os seus ODS [Objetivos de Desenvolvimento Social] e o Acordo de Paris sobre as mudanças climáticas, o que poderá trazer desgastes de repercussão internacional.
Revista Poli: A palavra ‘saúde’ aparece uma única vez no texto do PL, no artigo 15. Da mesma forma, entre os termos definidos no projeto aparecem “impactos ambientais” diretos e indiretos, mas não aparece nada relacionado ao “impacto à saúde”. Falta a área da saúde no PL?
Alexandre Pessoa: Considero esse um dos problemas centrais. Mesmo diante de uma pandemia, dos riscos de saltos zoonóticos, de doenças emergentes decorrentes das graves alterações dos ecosssistemas, o PL não traz sequer uma previsão normativa que estabeleça de forma preventiva a necessidade de avaliação de impacto de empreendimentos sobre a saúde humana nem sobre as mudanças climáticas. Pelo contrário, o PL traz uma redefinição de impacto ambiental que elimina por completo as referências à saúde e ao bem-estar e às condições estéticas e sanitárias do meio ambiente, que constavam do Artigo 1 da Resolução Conama [Conselho Nacional do Meio Ambiente] nº 01, que é de 1986. A consequência é que essa proposta criaria barreiras que dificultariam a atuação do setor de saúde pública para eliminar ou reduzir impactos negativos às condições de vida, de trabalho e de saúde nos territórios. Metodologias como Avaliação de Impacto à Saúde, preconizadas pela Organização Mundial da Saúde e mesmo pareceres e equipes interdisciplinares entre saúde e ambiente deveriam ser fomentadas para melhor qualificar e detalhar estudos ambientais e com isso trazer mais segurança ambiental, sanitária, econômica e jurídica. Infelizmente, o país, em vez de avançar, se aprovar este PL, retrocederá em mais de 30 anos.
Revista Poli: Os artigos 8º e 9º do PL listam uma variedade de empreendimentos que não precisarão mais de licenciamento ambiental. Qual a justificativa para essas exceções?
Alexandre Pessoa: É uma lista extensa de exclusão de atividades ao licenciamento que incluem iniciativas de caráter militar, obras de infraestrutura, instalações elétricas, sistemas e estações de tratamento de água e de esgoto, cultivos agrícolas e atividade pecuária, dentre outras. Essa proposta injustificável utiliza o argumento da necessidade de celeridade dos processos, quando na verdade o licenciamento precisa considerar diversas etapas que devem incluir a participação social, inclusive na realização de audiências públicas que possam qualificar o detalhamento dos estudos e projetos. São necessários urgentes investimentos e autonomia da atuação dos órgãos de controle ambiental a fim de termos resultados eficazes para o licenciamento e a fiscalização que impeçam danos socioambientais e consequentes processos e instabilidades sociais e jurídicas.
Revista Poli: Todas as exceções listadas no artigo 9º dizem respeito mais diretamente à atividade agropecuária. Existe uma razão para esse foco?
Alexandre Pessoa: Esse direcionamento para atividades agropecuárias indica a possibilidade de o PL buscar atender aos interesses de setores do agronegócio com intuito de expandir suas fronteiras de exploração da natureza e de extensas monoculturas dependentes de agrotóxicos, transgênicos e de fertilizantes sintéticos. Estamos diante de um modelo neoextrativista nocivo e insustentável.
Revista Poli: O licenciamento ambiental no Brasil é comumente tratado como demorado e burocratizado. A aceleração desse processo é defendida muitas vezes como de interesse público, quando se trata de obras que beneficiariam as populações locais, como de saneamento, por exemplo. Esse diagnóstico é verdadeiro?
Alexandre Pessoa: Somente fazem parte do licenciamento empreendimentos que se utilizam de recursos naturais ou potencialmente poluidores. A flexibilização da legislação ambiental para gerar aceleração deve ser traduzida como a fragilização dos estudos técnicos que exigem o licenciamento ambiental, que por sua vez é uma função intransferível do Estado. No caso dos sistemas e estações de tratamento de água e esgoto, os sistemas de irrigação precisam considerar a insegurança hídrica e as estações de tratamento de esgoto precisam ser eficazes e terem estudos de concepção e projetos seguros. Por exemplo, aquelas que recebem para tratamento em uma mesma tubulação o esgoto sanitário da região com águas pluviais, denominados sistemas de captação de tempo seco, trazem maiores riscos sanitários com relação ao sistema separador absoluto que separa, desde a coleta, somente o esgoto sanitário. Dessa forma, a captação de tempo seco tem poluído os corpos hídricos nos períodos chuvosos. Portanto, deveriam ter uma análise mais criteriosa para serem licenciadas mas, ao se retirar a exigência do licenciamento, somente agravam-se os riscos de poluição e consequentemente à saúde.
É importante destacar também que o PL é marcado por inúmeros constrangimentos à participação popular. A possibilidade de audiências públicas remotas traria mais agilidade, mas impediria o direito ao contraditório da participação das populações mais vulneráveis e que são em grande maioria as mais atingidas. Diante da tragédia em Mariana e Brumadinho, do uso intensivo de águas pelas monoculturas, do desmatamento autorizado ou clandestino, não deveria haver dúvidas quanto aos graves impactos socioambientais negativos desses empreendimentos. Infelizmente, o Brasil é marcado por inúmeras experiências, processos, dossiês e pesquisas que comprovam isso.
Revista Poli: Tal como outros pesquisadores, você destacou os impactos que essas mudanças propostas pelo PL podem ter sobre comunidades indígenas e quilombolas. Por quê?
Alexandre Pessoa: O PL aumenta a vulnerabilidade socioambiental das populações das cidades, do campo, da floresta e das águas. No caso dos povos e comunidades tradicionais, ele piora o cenário na medida em que pretende desconsiderar no processo de licenciamento as terras indígenas que ainda não possuem demarcação concluída, bem aquelas que não possuem as áreas tituladas de comunidades remanescentes quilombolas. Isso é inconstitucional e um completo contrassenso, uma vez que cabe ao próprio Estado reconhecer os diversos territórios de ocupação tradicional cujos processos de homologação sofrem longos atrasos por falta de prioridade e por redução orçamentária. E essa omissão do Estado se traduz em conflitos e em violação dos direitos dos povos indígenas e comunidades quilombolas.
Revista Poli: O PL determina que só se pode impor condicionantes ao empreendedor quando se estabelece o “nexo causal” entre o empreendimento e o impacto ambiental que ele poderia causar. No caso dos impactos à saúde, muitas vezes o nexo causal é difícil de ser estabelecido porque é preciso esperar um tempo mais longo para se comprovarem as consequências. Nesse caso, como fica o princípio da precaução?
Alexandre Pessoa: Ficam completamente comprometidos tanto o princípio da precaução, quanto o da prevenção. Isso é um golpe ao gerenciamento de risco, expresso nas legislações ambientais e de saúde pública, em especial da vigilância em saúde – por meio de seus programas de vigilância em saúde ambiental, epidemiológica, sanitária e saúde do trabalhador – construída com muito esforço de conhecimento, de organização sistêmica e de participação social, parlamentar e governamental. É mais uma tática de excluir o setor de saúde na identificação preventiva dos fatores de riscos à saúde. E, se for aprovado, os governos federal, estaduais e municipais terão que conviver com o aumento dos conflitos sociais e jurídicos diante dos danos gerados. Dependendo do tipo de impacto ambiental, são evidenciados problemas de saúde no curto ou no longo prazo, a exemplo de doenças crônicas decorrentes de exposição prolongada de poluentes. Isso exclui discussões sobre toxicologia, os efeitos sinérgicos e cumulativos da contaminação sobre a saúde ou mesmo os riscos de desastres que trazem graves transtornos de adaptabilidade, com sofrimento psicossocial.
Revista Poli: A quem interessam essas mudanças no licenciamento ambiental?
Alexandre Pessoa: Esse processo de fragilização e de desregulação do licenciamento ambiental interessa a setores do agronegócio, das mineradoras e de corporações nacionais e internacionais que desejam ampliar a exploração e expropriação de nossas riquezas naturais, dos nossos bens comuns, a partir de uma lógica neoextrativista. Os lucros são privatizados e concentrados e os prejuízos socializados, inclusive trazendo prejuízos para o Estado e as políticas públicas. Se não revertermos esse processo, caminharemos para o colapso ambiental. A emergência climática, o desmatamento, a perda da biodiversidade terrestre e aquática com acelerada extinção de espécies, a acidificação dos oceanos, a crise hídrica, a ampliação e a introdução de novos poluentes são graves desequilíbrios ecológicos que se retroalimentam. Desconsiderar essas evidências seria um negacionismo científico.
Revista Poli: Foi amplamente divulgado e debatido recentemente um relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU, a Organização das Nações Unidas, que aponta os efeitos já perceptíveis das mudanças climáticas. O debate sobre licenciamento ambiental tem relação com isso?
Alexandre Pessoa: Sem dúvida, os eventos climáticos e hidrológicos extremos, as alterações da ocorrência e movimentos dos ciclos das águas, as ondas de calor, o prolongamento de secas, intensificação de inundações, são derivados das mudanças climáticas, que estão cada vez mais recorrentes e com maior magnitude no Brasil e no mundo. A atual emergência ecológica e climática já era justificativa suficiente para que as políticas públicas brasileiras de proteção ambiental fossem cada vez mais exigentes com relação aos estudos e critérios de análise de viabilidade de novos empreendimentos, mas infelizmente estamos caminhando no sentido contrário, de aumentar os desequilíbrios ecológicos. A emergência climática é um problema não somente para as gerações futuras, mas para a atual e irá nos impor mais cedo ou mais tarde uma outra relação humanidade-natureza.
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▪️ Nota sobre a nova Lei Geral (da extinção) do Licenciamento Ambiental
▪️ As ameaças do projeto de lei geral do licenciamento ambiental e os impactos à saúde – debate virtual
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Revista Poli – Saúde, Educação, Trabalho – nº 79 – set-out. 2021