ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Atualizando o processo de regionalização no Brasil

 

Texto da interação ONDAS-Privaqua*
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ATUALIZANDO O PROCESSO DE REGIONALIZAÇÃO NO BRASIL
Autores: José Irivaldo Alves O. Silva e Laiana Carla Ferreira [1]

A crise econômica brasileira ao fim da década de 1980 teve como resultado o fim do PLANASA, uma vez que o Banco Nacional de Habitação perdeu a capacidade de financiar o setor. A promulgação da nova ordem constitucional, em 1988, elevou os Municípios a entes federativos, aumentando a sua autonomia. (FERREIRA, 2021)

Assim, os Municípios passam a titularizar os serviços de saneamento, devendo planejar, prestar e fiscalizar tais serviços. Entretanto, a ausência de capacidade financeira e técnica e pressões políticas conduziram a maior parte dos Municípios a optar pela conservação das concessões feitas às Companhias Estaduais de Saneamento Básico- CESBs.

As CESBs em geral utilizavam-se de uma estrutura tarifária única em sua área de atuação. O equilíbrio econômico-financeiro desta operação sobrevinha do fato de que os municípios superavitários custeavam os deficitários na arrecadação. Deste modo, por meio do incentivo à regionalização, era possível a prestação dos serviços através da criação de subsídios cruzados.

Nesse contexto, em 2020, com a alteração do marco legal do saneamento, pela lei nº14.026, surge novamente a regionalização, quando ela passa a condicionar a adesão dos municípios a uma estruturação de prestação regionalizada para a alocação de recursos federais. A lei nº 14.026/2020 fez outra vez a previsão do agrupamento de municípios para provisionar um conjunto dos serviços de saneamento.

O art. 3º da lei nº 11.445/07 foi alterado pela lei nº 14.026/20, transformando o conceito da prestação regionalizada. Antes consistia somente em: “aquela em que um único prestador atende a 2 (dois) ou mais titulares” (redação original do inc. VI do art. 3º da Lei nº 11.445/07). Atualmente, a prestação regionalizada abarca três novas categorias de (a) região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião; (b) unidade regional e de (c) bloco de referência, in verbis:

(…)

VI – prestação regionalizada: modalidade de prestação integrada de um ou mais componentes dos serviços públicos de saneamento básico em determinada região cujo território abranja mais de um Município, podendo ser estruturada em:

a) região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião: unidade instituída pelos Estados mediante lei complementar, de acordo com o § 3º do art. 25 da Constituição Federal, composta de agrupamento de Municípios limítrofes e instituída nos termos da Lei nº 13.089, de 12 de janeiro de 2015 (Estatuto da Metrópole);

b) unidade regional de saneamento básico: unidade instituída pelos Estados mediante lei ordinária, constituída pelo agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes, para atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, ou para dar viabilidade econômica e técnica aos Municípios menos favorecidos;

c) bloco de referência: agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes, estabelecido pela União nos termos do § 3º do art. 52 desta Lei e formalmente criado por meio de gestão associada voluntária dos titulares;

O o art. 25 da Constituição Federal de 1988, complementada por diretrizes do Estatuto da Metrópole (Lei n° 13.089/2015), já traz a previsão da adesão compulsória dos municípios ao primeiro grupo de estruturas regionalizadas (região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião). Nessas situações, haveria a discricionariedade do Estado em instituí-las, através de lei complementar, e seriam constituídas “pela aglomeração de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.” (BRASIL,1988). Ademais, essas estruturas regionalizadas tiveram sua constitucionalidade reconhecida pela ADI nº1.842/RJ, uma vez que o STF estabeleceu a compatibilidade entre a autonomia municipal e integração compulsória de região metropolitana.

Noutro giro, a formação de Unidades Regionais, criada pela lei 14.026/20, implica uma estrutura formada por municípios não necessariamente limítrofes, sendo criadas pelos Estados por lei ordinária. Diferente do art. 25 da CF, aqui, não há necessidade de lei autorizativa pelos municípios para compor o arranjo, sendo facultado o seu ingresso.

De acordo com a alteração legislativa promovida pela lei nº 14.026/20, a regionalização busca a universalização dos serviços por meio de ganhos de escala, aumento de eficiência e viabilidade técnica e econômico-financeira (FERREIRA, 2021).  Nesse sentido, o presente texto inicia-se com um diagnóstico político e legislativo, que não exaure o fenômeno, ainda em andamento, das impressões depois de um ano da institucionalização das regionalizações no âmbito dos Estados da Federação. Ademais, salienta-se a utilização de algumas categorias/indicadores detectados quando da análise legislativa do processo, constituindo-se, no entanto, em um pequeno recorte da pesquisa.

O Quadro 1 aponta uma parte dos indicadores que utilizamos numa análise mais ampla.

Quadro 1. Quadro analítico da regionalização brasileira. Junho/2022

Elaboração própria
Legenda: 1=possui; 0=não possui; 1+=trata-se de um modelo mais robusto; +/-=não estão definidas as atribuições do conselho participativo; -1=menciona apenas a possibilidade de ter audiências públicas ou outro tipo de participação;

M – Microrregional; UR – Unidade Regional; NE – Não Estabelecido; AR – Autarquia; AE – Administrado pelo Estado; SR – Saneamento Rural; ARJ – Arranjos; BL – blocos; NJ – Natureza Jurídica; CP – Conselho Participativo; ESP – Estrutura Própria; 3 – a lei não menciona o PSR, apenas aponta a possibilidade de permanência dos planos municipais.

Há aproximadamente um ano atrás analisamos os primeiros capítulos da regionalização, ou melhor, como ela estava se desenvolvendo em território nacional. Expusemos o início do processo e como as leis naquele momento estavam se desenhando. Desse modo, passados quase um ano da edição da maioria das leis de regionalização já é possível caracterizar melhor esse processo.

Desse modo, no âmbito do projeto Privaqua foi possível elaborar um quadro analítico dos detalhes mais relevantes de cada lei editada. Isso é extremamente relevante, pois nos auxilia nas reflexões acerca desse fenômeno, ainda marcado de incertezas. Entretanto, esse marco analítico, aqui representado por uma pequena parcela no Quadro, aponta para detalhes que precisam ser aprofundados ao longo dos próximos anos à medida que forem implementados os modelos de regionalização nos Estados.

O quadro destaca que alguns tipos de arranjos regionalizados já haviam sido iniciados antes mesmo da alteração legislativa promovida pela lei nº 14.026/20, bem como que alguns processos estão estruturados numa base jurídica semelhante. Na verdade, a regionalização não é uma novidade em si, pois já estava estabelecida como diretriz da Política Nacional de Saneamento Básico, porém a grande diferença atual é o conteúdo do processo, isto é, o que está por trás ou quais as motivações desse conjunto de medidas para descentralização do saneamento em microrregiões, unidades regionais ou regiões metropolitanas.

É possível compreender que se está diante de modelos aparentemente semelhantes, mas que precisam ser estudados mais a fundo, pois existem peculiaridades que estão de plano estabelecidas no texto das leis e outras que ainda não foram efetivadas. A maior parte dos modelos adotados é o de caráter microrregional, que tem como característica essencial a compulsoriedade de ingresso,e a conformação da estrutura de governança interfederativa, que deverá ser realizada nos termos da respectiva lei complementar estadual de criação. Coube aos Estados que adotaram tal modelo editar leis complementares que dispensam a anuência local dos municípios para integrarem tais regiões.       Isso significa dizer que 70,5%, dos 17 Estados com sistemas aprovados, adotaram o modelo microrregional. De plano, isso retirou, ou tolheu, a participação dos municípios, levando a um processo de pouca ou nenhuma participação em seu nascedouro. Os poucos Estados que adotaram a Unidade Regional como modelo de regionalização estabeleceram a possibilidade de os municípios expressarem sua vontade por meio do Prefeito ou das Câmaras de Vereadores

A análise das leis estaduais leva a uma miscelânea de sentidos ou impressões acerca dessa colcha de retalhos em que se transformou a política de saneamento nacional. Considerando a voluntariedade da adesão às Unidades Regionais, as leis que a instituíram têm um desenho institucional da governança da política de saneamento[1] [2] mais aberto, para ser estabelecido após maior clareza sobre sua composição. Por outro lado, é possível observar que parte das leis que estabeleceram o modelo microrregional apontam para um desenho, ainda prematuro, de governança.
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Nesse sentido, os 12 estados com modelo microrregional já de pronto estabeleceram as autarquias intergovernamentais como modelo administrativo para conduzir a política regional de saneamento. Quando se busca o sentido jurídico de autarquia é possível depreender que sua essência está justamente na autonomia e na autogestão orçamentária dessas entidades.

Entretanto, quando se verifica cada um dos modelos, é possível notar que essas entidades nasceram dependentes de outras estruturas estatais, seja do Estado ou dos Municípios, que formam a microrregião, o que é possível perceber na categoria Estrutura Própria (ESP) do quadro acima. Dessa forma, a      instituição que vai gerir o saneamento nas microrregiões criadas já inicia esvaziada sem estrutura mínima para funcionamento, tudo ficando a critério da vontade do Estado em destinar bens, móveis e imóveis, bem como servidores para atuarem na gestão e governança do saneamento. Portanto, em 100% dos Estados que já possuem suas leis de regionalização, o órgão gestor não possui estrutura própria, ficando para Estados e/ou municípios essa incumbência. Em alguns desses, o Conselho Microrregional elaborará uma resolução que definirá essa questão.

Outro indicador que chama atenção é o nível de participação instituída nas leis estaduais a partir do momento da criação e instalação das microrregiões, uma vez que elas ainda estão no papel. Cerca de 41% dos Estados possuem declarada alguma estrutura de participação, em sua maioria reunidas sob a ideia de um Conselho Participativo. Tal estrutura tem a prerrogativa de propor pautas ao Conselho Regional, órgão central da governança microrregional. Porém, o detalhe que se apresenta na análise detida da legislação é que há situações em que o conselho participativo tem previsão legal, no entanto o legislador não estabeleceu as funções dele. Além disso, é pertinente lembrar que o regimento que prevê as regras de funcionamento do Conselho microrregional e das instâncias de participação será elaborado pelo Chefe do Executivo Estadual, o que parece que vai de encontro a qualquer modelo  democrático.

Outrossim,  as leis dos Estados, em cerca de 80% daqueles com os diplomas legais em vigor, nada mencionam sobre Saneamento Rural, que é rebaixado a uma política subsidiária e que fica numa espécie de “limbo” de gestão. Dessa forma, o que se projeta é a priorização, de forma mais acentuada, dos territórios urbanos.

Outro ponto importante que caracteriza essa nova configuração da política de saneamento é a prevalência dos Planos de Saneamento Regionais (PSR), os quais se sobrepõe aos planos municipais já elaborados, uma vez que onde não houver o plano de saneamento municipal, não haverá necessidade de sua elaboração, ficando todas as metas e diretrizes a cargo do PSR. Destaca-se a lei potiguar que estabelece que a aprovação dos Planos Microrregionais deverá ser compatível com os Planos de Bacias Hidrográficas, com os Planos Diretores dos Municípios e contemplar os objetivos e metas dos Planos Municipais de Saneamento Básico. Entretanto,      os planos editados pelos Municípios, referentes aos serviços públicos de abastecimento de água ou de esgotamento sanitário, antes da vigência  da lei Potiguar, permanecerão em vigor por 48 (quarenta e oito) meses, podendo permanecer vigentes para além deste prazo, mediante Resolução do Colegiado Regional. Portanto, nesse tipo de texto é possível notar uma flexibilidade maior quanto ao campo de ação dos municípios. Desse modo, a maioria das leis estaduais reafirmam a existência de um PSR e que este ditará a política regional de saneamento.

Outro dado importante é a separação entre a lógica da bacia hidrográfica e os modelos de regionalização estabelecidos pelas leis estaduais. Isso pode ser constatado quando o quadro aponta que apenas dois estados fizeram constar a bacia hidrográfica como elemento relevante para a tomada de decisão, quando se sabe que saneamento e política de recursos hídricos devem caminhar conjuntamente.

Dessa forma, essas são impressões coletadas com o “carro em movimento”. Essa institucionalidade toda ainda está no campo normativo, faltando sua implementação de fato para sabermos como na realidade esses atores irão se comportar e se as possibilidades participativas se tornarão concretas para a sociedade. Daí, poderemos estabelecer um contraponto com esse modelo, via de regra adotado sem muita discussão com a sociedade civil.

Referências:
BAHIA, A.N. M. Estruturas de Regionalização na Lei nº 14.026: Qual o Futuro para os Serviços Municipais de Saneamento Básico?. Disponível em: <https://ondasbrasil.org/estruturas-de-regionalizacao-na-lei-no-14-026/>. Acesso em 20 jun 2022.

FERREIRA, L. C. O ACESSO AO DIREITO HUMANO À ÁGUA NO NOVO CENÁRIO DA PRESTAÇÃO REGIONALIZADA. In: Encontro nacional pelos direitos humanos a agua e ao saneamento, 2021, brasil. Anais do Encontro Nacional pelos Direitos Humanos a água e ao saneamento, 09 a 11 de dezembro de 2021, Brasilia ON- LINE [recurso eletrônico]. Brasília: ONDAS.2021. Brasília, 2021.

[1] Autores:
– José Irivaldo A. O. Silva – Professor Adjunto da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG – Unidade Acadêmica de Gestão Pública – UAGESP; Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas – UFPB; Professor do Mestrado Profissional em Gestão e Regulação dos Recursos Hídricos – UFCG; Professor no Mestrado Profissional em Administração Pública – UFCG; Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2, CNPq
Laiana Carla Ferreira – Advogada, Pós Graduada em Direito Público, Mestranda no PROURB/UFRJ.

* Privaqua é um projeto de pesquisa que busca entender o impacto da privatização dos serviços de água e saneamento nos direitos humanosRegularmente, o site do ONDAS publica notas do Privaqua de forma a dar transparência ao projeto e compartilhar alguns de seus achados preliminares.

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