ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

As empresas privadas atuantes no saneamento: entre a financeirização e a concentração do mercado

Texto da interação ONDAS-Privaqua*
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AS EMPRESAS PRIVADAS ATUANTES NO SANEAMENTO: ENTRE A FINANCEIRIZAÇÃO E A CONCENTRAÇÃO DO MERCADO
Autoras: Ana Britto e Isadora Cruxên **

Em uma matéria recente sobre o crescente interesse de atores financeiros em investimentos ligados à água, o jornal O Globo destaca que “no mercado financeiro, a água é chamada de ‘ouro azul’.”[1] A matéria aponta diferentes mecanismos de investimento nesse recurso como o mercado de contratos de futuros de água na Califórnia ou ações de empresas focadas em tratamento de água ou na provisão de saneamento básico. O maior envolvimento de investidores financeiros e a proliferação de mecanismos de investimento relacionados à água e ao saneamento podem ser entendidos em relação a um fenômeno mais amplo frequentemente denominado de financeirização.

A ideia de financeirização em geral relaciona-se à expansão da influência do mercado financeiro—de seus atores, instrumentos e práticas—sobre a organização de diversas atividades econômicas e sociais (Aalbers, 2019). Desde a década de 1970, a financeirização tem sido considerada um aspecto central do capitalismo contemporâneo. Buscando caracterizar esse processo mais amplo, Lapavitsas (2013) destaca dois pontos que consideramos centrais para entender a financeirização no contexto específico do setor de saneamento. Em primeiro lugar, empresas não financeiras têm se envolvido cada vez mais em processos financeiros, o que pode afetar a sua rentabilidade, organização interna e perspectivas de investimento. Em segundo lugar, não só bancos (públicos e privados) têm se concentrado em transações em mercados financeiros, como indivíduos e famílias têm dependido cada vez mais do sistema financeiro formal para acessar bens e serviços vitais, incluindo moradia, educação, saúde e transporte.

A financeirização também vem mudando a forma como os governos fornecem serviços públicos. Atores do mercado financeiro passaram a desempenhar um papel maior na prestação de serviços públicos e no financiamento (Thomson e Dutta, 2015). Esse processo por vezes se ancora em políticas de austeridade e pró-mercado, comumente entendidas como políticas neoliberais, ainda que a relação entre neoliberalismo e financeirização seja objeto de algum debate (Muellerleile and French, 2022). De todo modo, vários estudos apontam que a financeirização não ocorre sem a participação ou intervenção estatal. Para Furlong (2019), trata-se de um processo de “re-regulação” sob a neoliberalização, o qual requer ação governamental conjunta. No contexto brasileiro, esse processo tem sido marcado pela forte atuação do governo federal—liderado por órgãos como o Ministério da Economia e o BNDES—no sentido de ampliar a participação de investidores privados em infraestrutura, inclusive no setor de saneamento básico. Ao passo que o governo brasileiro reconhece o grande déficit de serviços, argumenta que o Estado brasileiro atravessa uma crise fiscal que inviabiliza os investimentos públicos no setor e conclui que a única saída é atrair investimentos privados. A Lei 14.026/2020 criou as bases legais para atrair esses investimentos, ao mesmo tempo em que dificultou o acesso das empresas públicas aos investimentos federais. Processos recentes de concessão de serviços de saneamento ao setor privado, como em Alagoas e Rio de Janeiro, refletem esse contexto político e institucional.

Neste ensaio, buscamos capturar o processo de financeirização da provisão de serviços de saneamento por meio do mapeamento da estrutura de capital das empresas privadas atuantes no setor. Como os casos de Alagoas e Rio de Janeiro também ilustram, as principais empresas privadas de saneamento passaram por mudanças importantes em sua estrutura de capital recentemente. Ao mesmo tempo, essas mudanças ocorreram em relação a um processo histórico de forte concentração do mercado: poucas empresas detêm a maior parte das concessões e têm vencido os principais leilões de saneamento organizados nos últimos três anos (ver Tabela 1). Nossa discussão baseia-se em uma série de estudos recentes que têm tentado capturar mudanças na dinâmica de investimentos privados no setor a partir de diferentes perspectivas (ver Britto e Rezende, 2017; Cruxên, 2022; Instituto Mais Democracia, 2017).

Investidores financeiros e participação privada no saneamento
No leilão da Região Metropolitana de Alagoas (CASAL – Bloco “A”), a grande vencedora foi a BRK Ambiental. O capital da BRK é dividido entre a Brookfield Business Partners, empresa de origem canadense que detém 70% do capital, e o FI-FGTS, que detém os 30% restantes. A Brookfield Business Partners é o braço de private equity da Brookfield Asset Management, grupo financeiro que atua no Brasil desde o século XIX. A Brookfield Asset Management é uma gestora líder global de ativos com mais de US$ 625 bilhões em ativos envolvendo gestão de imóveis, infraestrutura, energia renovável, private equity e crédito. A BRK iniciou suas atividades em 2017, quando a Brookfield assumiu a Odebrecht Ambiental (OA). A OA fazia parte da Odebrecht S.A., holding que atuava em diversos setores (construção e engenharia, química e petroquímica, energia, entre outros). Em 2009, a Odebrecht S.A. criou a subsidiária FOZ Ambiental—posteriormente Odebrecht Ambiental—para atuar nos serviços de água e saneamento. O FI-FGTS, sigla para Fundo de Investimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, foi criado em 2007 e é administrado pela Caixa Econômica Federal com foco na concretização de projetos de infraestrutura no Brasil. Hoje a BRK detém cerca de 24 contratos de saneamento no país, entre concessões, subdelegações e PPPs.

No Rio de Janeiro, as outras empresas líderes do mercado conseguiram arrematar os quatro blocos de municípios entre os quais a maior parte do estado foi dividido. A Aegea arrematou os dois maiores, Blocos 1 e 4. Assim como a Odebrecht Ambiental, a Aegea foi inicialmente estruturada por um grupo de engenharia, Equipav. A Equipav tem suas origens na década de 1960, quando começou a atuar nas áreas de pavimentação e construção. A partir de 2010, o grupo focou seus investimentos no setor de água e saneamento, por meio de sua participação majoritária na Aegea Saneamento e Participações, e no setor de terminais rodoviários, deixando gradualmente de investir em outros setores.  A partir de 2012, a Aegea incorporou dois novos acionistas em sua estrutura de capital: o GIC (18,67%) e o International Finance Corporation / IFC Asset Management do Banco Mundial (10,28%). O GIC (Government of Singapore Investment Corporation) é um fundo soberano de Cingapura. O fundo é uma das três entidades de investimento do país que administram reservas estatais, ao lado da Autoridade Monetária de Cingapura (MAS) e da Temasek. A Equipav permaneceu como acionista majoritário (71,05%).

Em 2019, a International Finance Corporation (IFC) vendeu sua participação na Aegea. Assim, a controladora passou a deter 71,63% das ações ordinárias, enquanto o GIC ficou com 28,37%. Em abril de 2021 a Aegea anunciou que a Itaúsa, uma holding de investimentos brasileira, seria a mais nova investidora estratégica da empresa, com 10,20% do capital. A Itaúsa foi fundada há 45 anos e está presente em mais de 50 países. Ela em participação em diversas empresas de grande porte, como, como Itaú Unibanco (banco), Alpargatas (calçados), Duratex (artigos de banheiro), Copagaz (empresa de serviços de gás) e NTS (empresa de transporte de gás). A holding conta com cerca de 900.000 pessoas físicas como acionistas – uma das maiores bases acionárias da bolsa brasileira. Atualmente, a Aegea detém 49 contratos de saneamento no Brasil.

Outra empresa vencedora de um dos leilões da CEDAE no Rio, arrematando o Bloco 2, foi a Iguá Saneamento. O capital da empresa é organizado principalmente em torno de fundos de investimento em participações (FIPs) administrados pelo grupo de private equity IG4 Capital, especializado na aquisição e reestruturação operacional de empresas. O grupo reestruturou a Iguá Saneamento após adquirir a empresa CAB Ambiental, que pertencia ao Grupo Galvão de Engenharia. Os dois FIPs que compõem o capital da Iguá Saneamento é o FIP Iguá (17,63% do capital) e o segundo é o FIP Mayim (41,17% do capital). O FIP Mayim reúne recursos da AIMCo (Alberta Investment Management Corporation), uma das maiores e mais diversificadas gestoras de investimentos institucionais do Canadá. A AIMCo é responsável pelos investimentos de fundos de pensão e governamentais em Alberta. Outras gestoras de investimento com aportes de capital na Iguá são o CCP (Conselho de Investimento do Fundo de Pensão de Professores do Canadá), que detém 14,91% do capital, e o BNDESPar (13,08%), holding de investimento sob o controle do BNDES. O BNDESPar é um braço do banco estatal que investe comprando ações e participações em empresas de segmentos diversos, de acordo com os interesses do governo brasileiro. A Iguá Saneamento atualmente detém cerca de 19 contratos de provisão de serviços de saneamento.

A quarta empresa que se destaca nas concessões privadas de saneamento é a Águas do Brasil. Desde 1998, a Águas do Brasil atua em concessões de água e esgoto. A empresa começou como uma associação de empresas brasileiras de engenharia e obras: Carioca Engenharia, Queiroz Galvão Saneamento, Trana Participações e Investimentos S.A. e Construtora Cowan S.A. Em 2015, por meio da subscrição e integralização de debêntures emitidas pela Queiroz Galvão Infraestrutura, o grupo japonês Itochu passou a participar da empresa, convertendo as debêntures em ações. O grupo Itochu assumiu 49% da participação da Queiroz Galvão na Águas do Brasil. Itochu é a terceira maior corporação japonesa, depois da Mitsubishi Corporation e Mitsui & CO, atuando em vários segmentos. No entanto, a Queiroz Galvão deixou o quadro de sócios da Águas do Brasil em 2021. Atualmente a companhia é controlada pela Developer S.A. (que emerge do grupo Carioca Engenharia) e a New Water Participações, de capital nacional,. A Águas do Brasil detém 13 contratos no setor, incluindo o contrato da Zona Oeste Mais Saneamento, no Rio, em parceria com a BRK.

Para além dessas quatro grandes empresas, há também outras de olho em novas concessões. Uma delas é a GS Inima. A companhia tem as suas origens na OHL (Obrascon Huarte Lain’s), uma empresa multinacional espanhola que iniciou as suas atividades nos anos 1950, com presença em vários países. A GS Inima é controlada desde 2012 pelo Grupo GS, quinto maior conglomerado empresarial da Coréia do Sul, que atua nos setores de petróleo e gás, engenharia, energia elétrica e renovável, varejo, e-commerce, cimento, siderurgia e esportes. A GS Inima tem operações em continentes como África, Europa, América do Norte, América Central e América do Sul.

Em conjunto, essas cinco companhias—BRK, Aegea, Iguá, Águas do Brasil e GS Inima—concentram quase 60% dos contratos público-privados atualmente existentes no setor de saneamento básico no Brasil. Somente as três primeiras abarcam quase 48% desse total. Em todas as três, conforme discutido, há substantiva participação do capital financeiro nas estruturas de capital. É importante notar, contudo, que o processo de concentração do mercado nas mãos de poucas grandes empresas antecede algumas das mudanças de estrutura de capital discutidas, tendo ocorrido em grande parte sob a liderança de grandes grupos de construção, como a Odebrecht, a partir de meados dos anos 2000 (Cruxên, 2022). Dessa forma, a maior inserção de atores financeiros ocorre em relação a um processo anterior de consolidação e ganhos de escala. Nesse contexto, a atratividade dos investimentos financeiros no setor de saneamento tem em vista a possibilidade de obter retornos estáveis, ajustados de acordo com a inflação. A natureza do monopólio do fornecimento de água e os fluxos de renda cativos envolvidos têm o potencial de entregar taxas conhecidas de retorno ao longo de períodos fixos para os investidores (Allen e Pryke, 2013).

Algo que fica claro a partir da análise acima é que as estruturas de capital das empresas privadas de saneamento são relativamente fluidas, sobretudo em um contexto de financeirização. Em contrapartida, são menos claras as implicações dessas mudanças para a realização do direito humano à água e ao saneamento (DHAES). Algumas questões se colocam. A primeira é como garantir as taxas de retorno esperadas pelos investidores financeiros e ao mesmo tempo garantir o atendimento a populações vulneráveis, com baixa ou nenhuma capacidade de pagar pelos serviços? A segunda diz respeito ao controle público da prestação privada. Na recente modelagem de contratos, em Alagoas e no Rio de Janeiro, o papel do BNDES foi central para a estruturação de projetos. Contudo, na qualidade de investidor do setor, que mantém relações estreitas com outros agentes financeiros privados envolvidos, é possível questionar em que medida o banco defende efetivamente o interesse público e dos usuários dos serviços. Além disso, em um mercado fortemente concentrado, assimetrias de poder são inevitáveis, sobretudo quando o setor público tende a ter menos recursos e a ser menos capacitado para lidar com atores privados. Por exemplo, grandes empresas tendem a ter maior conhecimento e recursos para negociar contratos quando comparadas a governos estaduais e municipais. Esses desequilíbrios de conhecimento e de informações fragilizam os entes públicos na gestão e regulação de contratos, podendo favorecer os interesses das empresas privadas em detrimento do interesse público, que deve ser garantidor da implementação dos DHAES. Como essas tensões serão resolvidas é algo para se observar nos próximos capítulos.

[1] O Globo, “No mercado financeiro, água já é considerada o ‘ouro azul’,” 22 Março de 2022.

**Autoras:
Ana Britto  – Conselheira de Orientação do ONDAS e Professora associada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do PROURB – Programa de Pós-graduação em Urbanismo da UFRJ.
– Isadora Cruxên  – Professora de Negócios e Sociedade na Queen Mary University of London, UK.

Referências
Aalbers, Manuel B. (2019) ‘Financialization’. In International Encyclopedia of Geography, 1–12.

Allen, John, and Michael Pryke. (2013) ‘Financialising Household Water: Thames Water, MEIF, and ‘ring-fenced’ politics’. Cambridge Journal of Regions, Economy and Society 6, no. 3: 419–39.

Britto, Ana Lucia, and Sonaly Cristina Rezende. (2017) ‘A Política Pública Para Os Serviços Urbanos de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário No Brasil: Financeirização, Mercantilização e Perspectivas de Resistência’. Cadernos Metrópole 19, no. 39: 557–81.

Cruxên, Isadora A. (2022) ‘Disordering Capital: The Politics of Business in the Business of Water Provision’. PhD Dissertation, Massachusetts Institute of Technology.

Furlong, Kathryn  (2019) Furlong, K. Geographies of infrastructure 1: Economies, Progress in Human Geography I–II, 2019.

Instituto Mais Democracia. (2017) ‘Projeto: Quem são os proprietários do saneamento no Brasil?’. Relatório.

Lapavitsas, Costas (2013) The financialization of capitalism: ‘Profiting without producing’, City, 17:6, 792-805, 2013

Muellerleile, Chris, and Shaun French. (2022) ‘Variegated Intersections of Neoliberalism and Financialization’. Environment and Planning A: Economy and Space 54, no. 1: 136–43.

Thomson, Frances e Dutta, S : Sahil Ja. (2015) Financialisation, a primer. Transnational Institute, 2015.

* Privaqua é um projeto de pesquisa que busca entender o impacto da privatização dos serviços de água e saneamento nos direitos humanosRegularmente, o site do ONDAS publica notas do Privaqua de forma a dar transparência ao projeto e compartilhar alguns de seus achados preliminares.

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