ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

(In) Segurança da água: garantindo o direito à água

(IN) SEGURANÇA DA ÁGUA: GARANTINDO O DIREITO À ÁGUA
LOFTUS, Alex. Water (in)security: Securing the right to water. Geographical Journal, v. 181, n. 4, p. 350–356, 2015.

A resenha inaugural do site do ONDAS traz um artigo de Alex Loftus, pesquisador do Departamento de Geografia do King’s College London em temas como ecologia política e direito à água, e também comoditização e financeirização da água. Uma de suas pesquisas mais citadas abordou o fracasso da privatização do saneamento em Buenos Aires na década de 1990[1].

O texto debate a segurança (e a insegurança) para o acesso à água por todos, desafia as visões dominantes sobre “segurança da água” e apela à mudança política para se explorar modos pelos quais o acesso à água potável pode ser ampliado. Centenas de milhões de pessoas alcançaram acesso à água neste século, no entanto, a sustentabilidade do suprimento é questionável. Loftus desenvolve seu argumento com uma crítica aos discursos dominantes sobre segurança hídrica para, a partir dos fundamentos da ecologia política, tratar da luta pelo acesso democrático à água sob o viés do pensamento gramsciano e, por fim propor transformar a concepção de segurança hídrica.

Os discursos do establishment sobre segurança hídrica são dirigidos para naturalizar as causas da insegurança hídrica, afastando-as das relações sociais, políticas e de poder. A despolitização presente nessas visões conflui para determinismos como, por exemplo, “a insegurança hídrica resulta de chuvas insuficientes”, que submergem a injusta distribuição do suprimento de água potável.

Loftus aponta três problemas dos discursos mainstream sobre segurança da água. Primeiro, a despolitização da “insegurança” da água negligencia interesses envolvidos na reprodução da sua existência e despreza a compreensão das relações entre pessoas, instituições e o ambiente político-econômico. Segundo, despolitizar a distribuição da água suscita o determinismo ambiental de pobreza e insegurança hídrica como consequências do local, desprezando o conjunto de relações sociais que podem ser transformadas. Terceiro, apesar de ganhos aparentes na melhoria da segurança da água mediante medidas tecnocráticas, as melhorias mundiais ocultam problemas sobre a sustentabilidade da provisão de água, bem como as disparidades entre diferentes regiões do Sul global.

A ecologia política opõe-se às leituras apolíticas da crise ambiental e oferece a lente que permite entender a segurança da água – ou insegurança – motivada não pela escassez ou por um determinismo tecnológico fazedor de “milagres”, mas sim pelo envolvimento de um conjunto mais amplo de conteúdos socionaturais ou sociotécnicos.

A esperança da garantia do direito à água está em movimentos sociais que contestam estreitas interpretações desse direito, defendendo uma segurança hídrica em que todos são capazes de participar democraticamente na produção e distribuição para todos. O direito à água deve ser lido como o direito à participação e à democratização dos meios por onde se realiza o direito à água, em uma relação pedagógica dialética na qual o educador também deve ser educado, coerente com o pensamento de Gramsci em desafiar os intelectuais da prática política comum, remodelando as relações com movimentos sociais.

A academia deve aprender com as práticas desses movimentos e atuar em uma relação colaborativa e informativa de mão dupla. Loftus cita Gramsci: “é uma questão de começar com uma filosofia que já desfruta, ou poderia desfrutar, de certa difusão, porque está conectada e implícita à vida prática, e elaborando-a para que se torne um renovado senso comum possuidor de coerência e base de filosofias individuais. Mas isso só pode acontecer se as demandas de contato cultural com o simples são continuamente percebidas.”.

A manutenção da relação de poder – entre aqueles conhecedores das políticas da água e aqueles que são guiados pelo conhecimento dos outros – reproduz formas de insegurança hídrica de várias maneiras: as ligações de água tornam-se disfuncionais, pois o valor a ser pago impede acesso à água dos mais pobres, assim como as tecnologias dominam a tomada de decisão em vez das pessoas para as quais essas tecnologias servem.

Transformar a concepção da segurança da água resultante da aliança da tecnocracia com mercado, Estados e “sociedade civil”, é afirmá-la como uma conquista democrática por meio da ativa participação de movimentos sociais defensores do acesso mais justo à água. Nessa concepção política a “sociedade civil” não pode ser tratada como uma massa a ser consultada sobre as mudanças que lhe serão trazidas brevemente; em vez disso, deve ser reconhecida como a produtora da mudança, a criadora de uma nova realidade.

Sem transformar fundamentalmente os aspectos que compreendem a insegurança hídrica, tal insegurança será revisitada de outra forma. Por isso, Loftus defende uma mudança que reconheça as muitas maneiras pelas quais os sujeitos da insegurança hídrica são criadores de suas próprias histórias, embora não sejam produtos de suas próprias escolhas. Ele faz um chamamento aos pesquisadores para reconhecer as lições que podem aprender a partir dos esforços para criar uma nova realidade, com base na ecologia política da água.

Pode-se afirmar que Alex Loftus é bastante preciso na abordagem deste artigo, pois associa os elementos da visão pedagógica dialética de Gramsci com a crítica da ecologia política, definida como a análise da maneira que a sociedade transforma a natureza por meio de processos econômicos e políticos que, por fim, transformarão a própria sociedade.

Loftus defende essa associação como essencial à necessária transformação para alcançar – verdadeiramente – a segurança e o direito à água. Erik Swyngedouw, destacado ecologista político, diz que “a infraestrutura hídrica não é apenas resposta às proposições biofísicas, pois é o resultado dos processos sociais, culturais, políticos e econômicos, que ao serem percorridos são evidenciados pelas redes de relações sociais de poder político, econômico, cultural e discursivo.”[2].

Nesses tempos de supremacia do neoliberalismo, o texto de Loftus aponta um caminho contra-hegemônico em direção ao direito democrático à água, fornecendo subsídios para aqueles que lutam por esse ideal adotarem a associação mutuamente pedagógica e colaborativa dos movimentos sociais e da academia sob a lente crítica da ecologia política.

Por Amauri Pollachi[3]

[1] LOFTUS, A.; MCDONALD, D. Of liquid dreams: a political ecology of water privatization of Buenos Aires. Environment and Urbanization, v. 13, n. 2, p. 179–199, 2001.

[2] SWYNGEDOUW, E. 2006. Power, water and money: exploring the nexus. United Nations Human Development Report. Oxford University, Oxford, UK. (http://hdr.undp.org/sites/default/files/swyngedouw.pdf).

[3] Conselheiro do ONDAS e mestrando em Planejamento e Gestão do Território da UFABC. Graduado em Engenharia Mecânica e História pela USP.

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