ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS - Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Na Inglaterra, as privadas atolaram

Autor: Marcos Helano Montenegro*

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PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA EM CRISE

Na Inglaterra, as privadas atolaram

Na Inglaterra, a crise da prestação os serviços de água e esgoto por empresas privadas está sob a luz dos holofotes. Enquanto isso no Brasil, desde o golpe que depôs a presidenta Dilma Roussef, a privatização dos serviços públicos de água e esgoto ganha impulso, por meio de variadas formas: venda de empresas estaduais, privatização de serviços autônomos (SAAEs, concessões parciais e parcerias público-privadas.

As dificuldades de financiamento dos prestadores públicos, a atração de governadores e prefeitos pela outorga onerosa paga à vista pelas concessionárias privadas, o apoio do BNDES são elementos da atmosfera tóxica onde a palavra de ordem, cinicamente justificada pela busca da universalização, é ganhar dinheiro com a exploração de um serviço essencial.

No Brasil, não podemos desprezar as lições que os ingleses já levam 34 anos para aprender.

A crise é generalizada

As empresas privadas prestadoras dos serviços de água e esgoto na Inglaterra vão de mal a pior. Segundo Dieter Helm, professor de Economia da Universidade de Oxford, “they have run into the sands”! Uma expressão verbal pouco conhecida, “to run into sands” significa literalmente atolar.

Na verdade, várias das empresas privadas que atendem a população da Inglaterra e do País de Gales estão enfrentando sérias dificuldades em razão de um endividamento que, para o conjunto das empresas, chegou a £60.3 bilhões (cerca R$ 379 bilhões) em março de 2023 e cuja gestão se tornou mais difícil pela conjuntura de inflação crescente e juros altos.

Filhas da privatização promovida em 1989 pelo governo liberal de Margareth Thatcher as empresas privadas receberam os serviços e seus ativos livres de dívidas e agora estão atoladas em dívidas. Além disso estão operando com índices de perdas elevados e crescentes e vêm poluindo sistematicamente praias e rios com esgotos extravasados de sistemas de coleta e tratamento que não foram modernizados.

O jornal inglês The Guardian avalia que o setor das empresas privadas de água e esgoto inicia 2024 endividado, com fama de poluidor e com elevadas perdas de água. A propriedade das empresas, em grande parte, está nas mãos de fundos estrangeiros de investimento, de private equity e de pensão responsáveis por décadas de subinvestimento, ilustrado de forma mais chocante pela escala do despejo de esgoto bruto nos rios.

Ao longo das últimas três décadas, as empresas privadas oneraram os seus balanços com dívidas, não realizaram os investimentos necessários, mas pagaram dividendos excessivos aos seus acionistas e remuneraram seus executivos com somas absurdas. Em pouco mais de três décadas, segundo cálculos do mesmo jornal, feitos com base nos balanços publicados, as empresas privadas pagaram cerca de £53,1 bilhões em dividendos aos seus acionistas – mais de £83,7 bilhões em preços de hoje (cerca de R$ 526 bilhões)

Depois de 34 anos, está cada vez mais claro que a regulação não funcionou. A We own it, ong que tem como lema “serviços públicos para as pessoas, não para o lucro” lista as principais razões para o fracasso da regulação dos serviços de água e esgotos privatizados em 1989:

  • as empresas de água privatizadas não correm o risco de perder os seus monopólios;
  • Ofwat, o regulador, está irremediavelmente capturado;
  • a Agência do Ambiente vem sendo sistematicamente subfinanciada;
  • as multas impostas às empresas de água são relativamente muito pequenas;
  • as companhias de água privadas são concebidas para priorizar o lucro de seus acionistas.

A crise também influencia negativamente a confiança dos usuários nas empresas privadas de água. Pesquisa realizada pelo Ofwat em fevereiro de 2023 constatou que quase metade dos usuários (47%) acredita que as empresas colocam os interesses dos acionistas e proprietários em primeiro lugar e apenas 27% dos usuários acredita que as empresas priorizem os interesses deles.

O humor dos usuários deve piorar com o anúncio, esperado para os próximos dias, de elevação das tarifas prevista para vigorar a partir de abril. O aumento deverá colocar mais uma vez sob escrutínio a capacidade das famílias de baixa renda de pagar suas contas de água e esgotos. Atualmente mais de 1,3 milhões de famílias se beneficiam de tarifas sociais cujas regras são estabelecidas pelas próprias empresas. O The Guardian informa que o governo abandonou os planos para uma tarifa social padronizada da água.

 A Thames Water agoniza?

A situação da Thames Water, a maior das empresas privadas de água e esgoto, que atende 16 milhões de usuários residentes em Londres e adjacências (o que corresponde a cerca de 25 por cento da população em Inglaterra), é cada vez mais crítica.

A condição é tão grave que seus acionistas estão desvalorizando seus investimentos. Em dezembro passado veio a público que a Church Water Investment Ltd., parte do Universities Superannuation Scheme (USS), o maior fundo de pensões privado do Reino Unido, havia desvalorizado suas participações em 62% em março de 2023. O valor da participação do USS na Thames Water foi reduzido para £364,4 milhões (R$ 2,28 bilhões) contra £955,8 milhões (R$ 5,98 bilhões) no ano passado. A Church Water Investment é a segunda maior acionista da Thames Water, possuindo 20% das ações da sua controladora, Kemble Water Holdings Ltd. Antes, em 2022, o Ontario Municipal Employees Retirement System, o maior acionista da empresa, já havia desvalorizado o valor do seu investimento em 30%.

Em 21 de dezembro último, a Fitch Ratings rebaixou o rating de dívida da holding Kemble Water Finance Ltd. Segundo a agência de classificação de risco o rebaixamento reflete principalmente as dificuldades que a Kemble está enfrentando para renegociar um empréstimo de £190 milhões com vencimento em abril de 2024. Reflete também a crescente pressão por liquidez devido ao maior controle regulatório e político sobre a distribuição de dividendos da Thames Water Utilities Limited (TWUL) para a holding, a serem utilizados para honrar o serviço da dívida que se concentra na holding.

O Ofwat, órgão regulador nacional, está sendo pressionado pela Thames Water a autorizar um aumento de 40% nas tarifas para, segundo a empresa, viabilizar investimentos em controle de perdas, tratamento de esgotos, segurança hídrica e qualidade da água. No entanto, existe uma percepção crescente que recursos adicionais poderiam ser engolidos pelo serviço da imensa dívida. O que não é de se descartar, tendo em vista que segundo as análises realizadas pelo The Guardian, o equivalente a 27,8% da receita da Thames Water foi gasto com o serviço de sua dívida de £ 14,7 bilhões em média nos últimos cinco anos.

Nas justificativas para o rebaixamento do rating, a Fitch identificou risco de a execução do plano de recuperação – que visa fortalecer o desempenho da empresa em áreas-chave como redução da poluição por esgoto, redução de perdas e de interrupções no abastecimento e melhoria da qualidade da água – não ser bem-sucedida.

Em comunicado, a Thames Water informou que está “trabalhando de forma construtiva” com os seus acionistas para garantir aportes adicionais de recursos para apoiar sua recuperação. A dúvida é se os acionistas, especialmente os fundos soberanos, estão dispostos a apostar na recuperação da empresa de serviços públicos em dificuldades.

O desafio de, na crise, garantir os interesses dos acionistas da Thames Water é do novo CEO, Chris Weston que assumiu o cargo em 8 de janeiro com um salário anual de £ 850.000 e mais fringe benefits de £ 117.000 em pagamentos anuais de pensão e subsídio de carro. Ele ainda poderá receber um bônus anual no valor de £ 1,3 milhão – o que poderia aumentar sua remuneração anual para £ 2,3 milhões (cerca de R$ 14,5 milhões).

Nesta conjuntura, várias vozes vêm defendendo publicamente que se os acionistas da Thames Water não aportarem o capital necessário para realizar o plano de investimentos o governo britânico deve recorrer a uma intervenção, dita uma “nacionalização temporária”. Um processo que já foi utilizado quando a distribuidora de energia Bulb entrou em colapso em 2021 e no resgate do Royal Bank of Scotland e do Lloyds Banking Group na crise financeira global de 2008.

A líder do Partido Verde, Caroline Lucas, em pronunciamento no Parlamento, também pediu mudanças: “As empresas de água não tinham dívidas quando privatizadas. Desde então, eles pegaram 52 bilhões de libras emprestadas e pagaram 72 bilhões de libras em dividendos. Enquanto isso, temos um escândalo de (poluição por) esgoto. A privatização da água foi um erro grave e precisa ser corrigido permanentemente.”

Entrevistado pelo The Guardian, o Dr. Ewan McGaughey, professor de Direito do King’s College London, defendeu que a Inglaterra deveria seguir os passos de Paris, do País de Gales e da Escócia para restaurar a propriedade pública do sistema utilizando o marco jurídico já existente. “A intervenção deveria ser acionada se os prestadores sinalizarem que não irão conseguir pagar as suas dívidas sem contar com subsídios públicos, ou se falharem nos seus deveres ao não reduzirem as perdas de água ou não controlarem a poluição por esgotos”, explica.

Em resposta às críticas de que indenizar os acionistas e pagar as dívidas seria demasiado caro, McGaughey argumenta: “a lei atual permite que as dívidas sejam reduzidas ou mesmo canceladas se estas prejudicarem a capacidade do prestador de cumprir adequadamente os seus deveres legais.”

McGaughey propõe a supressão das regras que determinam que o regulador, Ofwat, deve garantir retornos razoáveis para o capital dos investidores e que seja criado “um regulador social com obrigação de garantir que os usuários que pagam as contas tenham água potável e esgotamento sanitário adequado, que as comunidades tenham cursos de água e praias limpas e que todos os excedentes futuros sejam investidos na modernização de infraestruturas.”

A We own it, ong citada anteriormente, está promovendo um abaixo assinado dirigido ao Secretário de Estado de Negócios e Comércio Deputado Hon Kemi Badenoch, defendendo que a Thames Water seja convertida em propriedade pública, com três condições:

  • nenhum resgate às custas do público – o governo deve usar a lei para proteger os usuários e os contribuintes, e não as instituições financeiras que nos colocaram nesta confusão
  • A nova Thames Water, de propriedade pública, deve dar às comunidades um papel na governança e ser responsáveis por um plano sério para combater perdas e extravasões de esgotos e despoluir os rios;
  • A propriedade pública da empresa deve ser permanente e não temporária.

 Um exemplo de financeirização e de suas consequências

Sob risco de insolvência e de sofrer intervenção governamental, a Thames Water é um exemplo preciso dos prejuízos trazidos à saúde, à qualidade de vida e ao meio ambiente e ao bolso dos usuários pela financeirização de um serviço público essencial e cuja prestação enfrenta desafios crescentes com a mudança climática.

A prestadora é propriedade da Kemble Water Holdings Limited, fazendo parte de uma estrutura empresarial complexa onde é a única empresa regulada.

Dos nove acionistas da Kemble Water Holdings Limited, seis fundos de pensão ou gestores de fundos de pensão detém 71,1% do capital e dois fundos soberanos – da China e de Abu Dhabi – detêm 18,6%. Os restantes 10,3% pertencem a dois investidores corporativos. Nenhum deles tem outro interesse na prestação dos serviços de água e esgoto na região de Londres que não seja o retorno lucrativo dos recursos financeiros que aplicaram. Veja no quadro a participação de cada acionista segundo informa a própria empresa.

Fonte: https://www.thameswater.co.uk/about-us/governance/our-structure


*Marcos Helano Montenegro é engenheiro civil e mestre em Engenharia Urbana e de Construções Civis, coordenador de comunicação do ONDAS e diretor nacional da ABES.

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