ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Perspectivas históricas da esquistossomose e a era da privatização dos serviços de saneamento: breves ponderações

 

Texto da interação ONDAS-Privaqua*
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PERSPECTIVAS HISTÓRICAS DA ESQUISTOSSOMOSE E A ERA DA PRIVATIZAÇÃO DOS SERVIÇOS DE SANEAMENTO: BREVES PONDERAÇÕES

Autora: Mariana Cristina Silva Santos**

A privatização do saneamento faz bem à saúde de populações endêmicas para doenças associadas à água? Doenças Tropicais Negligenciadas (DTN), como a esquistossomose mansônica, podem ser afetadas pelo advento da Lei 14.026/2020? Considerando que o processo de privatização na execução da política pública de saneamento, desencadeia uma série de problemáticas sob diversas perspectivas, sobretudo no que se refere às questões sociais, ambientais e de saúde pública, não seria infundado o questionamento sobre o impacto desse modelo de gestão frente a esquistossomose.

A esquistossomose, também conhecida como “xistose” ou “doença dos caramujos”, é uma doença parasitária causada pelo Schistosoma mansoni em que o modo de transmissão está relacionado com o contato com águas contaminadas com cercárias, forma larval do parasito. As condições de água, esgotamento sanitário e higiene exercem papel importante no contexto de transmissão da infecção por esquistossomose [1]. Pouca ou nenhuma cobertura de saneamento básico costumam implicar alto ônus para a doença, uma vez que são também localidades que já possuem séries históricas de notificações para a infecção.

Brevemente, para contextualizar essa discussão, a análise histórica, crítica e comparativa permite configurar o cenário proposto. Ao longo de quase sete décadas, as taxas de prevalência para a doença foram inversamente proporcionais à cobertura por serviços sanitários. Desde à época dos primeiros inquéritos nacionais de prevalência de esquistossomose, na década de 1950, o país passou de, aproximadamente, 9% das localidades do país que recebiam água tratada para 85,5% de cobertura de domicílios com abastecimento de água, em 2019. Para os serviços de esgotamento sanitário, o Brasil passou de 8,6% dos domicílios ligados à rede geral coletora de esgotamento para 68,3% [2–4]. Paralelamente, a prevalência média da doença passou de 10,09% para 1,79% no mesmo período, significando uma queda de 10 vezes.

Estudo com abrangência nacional buscou compreender mais detalhadamente essa relação ao longo do processo histórico vivenciado no país, com inclusão de dados provenientes de três grandes levantamentos nacionais de prevalência realizados na década de 1950, 1970 e 2010. Os resultados demonstram que a diminuição da prevalência de infecção por Schistosoma mansoni foi associada significativamente e com efeito protetivo para redes coletoras [5]. Esses achados validam estudos internacionais que enfatizam o aumento do acesso à água potável, esgotamento sanitário e práticas de higiene como medidas importantes para reduzir as chances de infecção pela doença. Temos, portanto, que a universalização dos serviços sanitários pode ser, substancialmente, impactante nas metas de eliminação da doença.

Embora o aumento do acesso a serviços sanitários tenha sido considerado profundamente discriminatório, quanto aos critérios demográficos e sociais, principalmente a partir de 1970, eles constituíram importantes instrumentos de expansão e ampliação da rede pública de abastecimento e redes coletoras no país. Essa evolução histórica representou acréscimos importantes na acessibilidade de infraestrutura sanitária ao longo das décadas, e isso converge com esforços do país na direção do cumprimento dos Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário [6]. Entretanto, o enfoque privatista e com a instauração do “novo marco legal do saneamento” acarreta incertezas quanto a aumentos desproporcionais de tarifas, onerando os usuários, sobretudo a população mais pobre e em maior vulnerabilidade. Com isso, os esforços alcançados ao longo de décadas apresentam-se em risco quanto à efetiva universalização dos serviços e à realização dos direitos humanos.

O momento político, econômico e social que o Brasil atravessa demonstra que as iniquidades na provisão dos serviços e a desigualdade no acesso à infraestrutura sanitária comprometem a busca pela universalização. A nova Lei estabelece metas de 99% para a cobertura por abastecimento de água e 90% para coleta e tratamento de esgoto até 2033. A narrativa geral é de que esses serviços serão melhorados pela abertura de concorrência pública para novos contratos, com garantia necessária à universalização e acesso aos diretos. No entanto, há consenso que a provisão de água e esgoto faz parte dos chamados “monopólios naturais” e que não comportariam ampla competição nem concorrência perante a concessão feita pelo poder público [7]. É notório que, em um país de dimensões continentais, populações que residem e trabalham em localidades pequenas, afastadas de grandes centros urbanos, ou em áreas rurais, características da população em risco para esquistossomose, podem ser seriamente prejudicadas pela lógica setorizada e mercantilizada praticada por empresas privadas.

Nessa discussão, uma coisa é certa: a infraestrutura sanitária é, seguramente, uma das principais medidas a serem tomadas para interromper a transmissão da doença. Portanto, entendendo o saneamento básico como política de natureza social, cujos serviços relacionam-se aos determinantes e condicionantes em saúde, a privatização dos serviços sanitários pode não apresentar garantia da universalização dos serviços essenciais. Consequentemente, a não realização da meta de eliminação de infecção por esquistossomose, assumida pelo Brasil perante a Organização Mundial de Saúde para os próximos anos, pode ficar seriamente comprometida. Caso a lógica empresarial e de maximização dos lucros consagrar a discriminação de grupos afetados pela doença, que possuem menor probabilidade de arcar com os custos da privatização dos serviços, o cenário epidemiológico de doenças tropicais será ainda mais negligenciado. Enquanto elemento essencial para a qualidade de vida de povos e comunidades, a água e suas infraestruturas precisam ser cuidadas e, sobretudo, garantidas amplamente a toda a população.

Referências

  1. Colley DG, Bustinduy AL, Secor WE, King CH. Human schistosomiasis. Lancet. 28 de junho de 2014;383(9936):2253–64.
  2. Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Panorama e pesquisas. [Internet]. IBGE BRASIL. 2022. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/panorama
  3. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e e Estatística. Recenseamento geral do Brasil de 1950 [Internet]. 1950. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/67/cd_1950_v1_br.pdf
  4. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Anuário Estatístico do Brasil (AEB). Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Rio de Janeiro: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA; 1951 p. 583. (SERVIÇO GRÁFICO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA). Report No.: XI.
  5. Santos M, Oliveira G, Mingoti SA, Heller L. Efeito de fatores ambientais na redução da prevalência por esquistossomose mansônica em escolares: uma análise em painel de três grandes inquéritos nacionais de prevalência no Brasil (1950 – 2018). 2022; Artigo em submissão.
  6. ONU UNGA. UN Resolution 64/292 The Right to Water and Sanitation – WaterWiki.net. 2010 [citado 7 de novembro de 2019]; Disponível em: http://waterwiki.net/index.php?title=UN_Resolution_64/292_The_Right_to_Water_and_Sanitation
  7. Silva JIAO, Feitosa MLP de AM, Soares A de S do CM. O desmonte da estatalidade brasileira no caso da política pública de saneamento e a falácia da regionalização como vetor de desenvolvimento regional. Rev Bras Estud Urbanos Reg [Internet]. 18 de julho de 2022 [citado 2 de agosto de 2022];24. Disponível em: http://www.scielo.br/j/rbeur/a/ftZWDwDCtzfdKbtVXYxYwzL/abstract/?lang=pt

** Autora:
– Mariana Cristina Silva Santos – Doutoranda em Saúde Coletiva do Instituto René Rachou – Fiocruz Minas. Integra o grupo de Políticas Públicas e Direitos Humanos em Saúde e Saneamento (PPDH) e estuda a relação histórica do saneamento e a esquistossomose.

* Privaqua é um projeto de pesquisa que busca entender o impacto da privatização dos serviços de água e saneamento nos direitos humanosRegularmente, o site do ONDAS publica notas do Privaqua de forma a dar transparência ao projeto e compartilhar alguns de seus achados preliminares.

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