ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Ponderações sobre o Anteprojeto de Lei da Regionalização do Saneamento em MG

O artigo que segue é quarto da série de quatro outros publicados pelo site do ONDAS – Sobre a Nota Técnica Metodologia de construção das Unidades Regionais de Saneamento Básico no Estado de Minas Gerais (leia: A proposta de Zema para a regionalização do Saneamento em MG: qual futuro nos espera? )

PONDERAÇÕES SOBRE O ANTEPROJETO DE LEI DA REGIONALIZAÇÃO DO SANEAMENTO EM MG
Alex M. S. Aguiar, Elias Haddad Filho, Fábio J. Bianchetti*

A Lei Federal 14.026, publicada em 16 de julho de 2020, introduziu diversas alterações à Lei 11.445/2007, conhecida como o Marco Legal do Saneamento no país. Dentre essas alterações há a obrigatoriedade de os estados criarem, no prazo de um ano da publicação da lei, uma estrutura de regionalização do saneamento em seus territórios.

Em atendimento a esse requerimento, o Governo Zema, por meio da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável – SEMAD, abriu em 05 de maio passado processo de consulta pública ao anteprojeto de lei ordinária contendo sua proposta de regionalização do saneamento no estado. Foram disponibilizados: a minuta do projeto de Lei (PL) e seus anexos I e II, contendo a listagem dos municípios integrantes de cada unidade regional de água e esgotos (URAE) e de resíduos sólidos (URGR); e uma Nota Técnica (NT) descrevendo a metodologia empregada e uma síntese dos estudos realizados para definição da proposta de regionalização.

Neste artigo serão abordadas questões referentes ao texto do PL.

Das Disposições Preliminares

O Capítulo I do anteprojeto de lei trata das Disposições Preliminares, apenas apresentando definições ajustadas ao texto da Lei 14.026 anteriormente referida.

Vale observar que nas definições de Unidade Regional de Gestão de Resíduo – URGR (Art. 2º, II) e de Unidade Regional de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário – URAE (Art. 2º, III) há a inserção da frase “de forma compartilhada” ao objetivo de promover a prestação dos serviços como forma de viabilizar a universalização do acesso, o ganho de escala e a viabilidade técnica e econômica da prestação dos serviços. Precisa ser apontado que a redação dos incisos contendo essa inserção não se sobrepõe aos conceitos estabelecidos na Lei 14.026/2020: (i) as unidades regionais não encerram a obrigatoriedade de um único prestador dos serviços em seu território; (ii) permanecem reconhecidas as formas de prestação direta dos serviços na área das unidades regionais.

Das Unidades Regionais de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário

A proposta do PL do Governo Zema prevê a instituição de 22 (vinte duas) URAEs no estado. No Art. 5º do PL é estabelecido como finalidade de cada URAE “exercer as competências relativas à organização, ao planejamento e à execução dos serviços de abastecimento de água potável, coleta e tratamento de esgotos sanitários, de forma compartilhada, propiciando o ganho de escala e a viabilidade técnica e econômica com vistas à universalização dos serviços, conforme metas e prazos estabelecidos na Lei Federal nº 14.026, de 15 de julho de 2020, nos municípios que a integram.” Novamente se observa a inserção da frase “de forma compartilhada”, cujas observações apontadas quanto às Disposições Preliminares se repetem.

É importante ressaltar que as competências definidas para as URAEs precisam contar com a adequação das estruturas territoriais já existentes no estado, e nas quais o saneamento básico é definido por lei como função pública de interesse comum. Assim, 34 dos 51 municípios que integram a URAE 22 são integrantes da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), na qual “a integração dos sistemas de abastecimento e esgoto sanitário do aglomerado metropolitano” é definida como objeto abrangido pela gestão metropolitana (art. 8º, IV, “a” da Lei Complementar nº 89, de 12 de janeiro de 2006), portanto uma função pública de interesse comum. Com isso, esses 34 municípios ficariam subordinados a duas governanças distintas, a da RMBH e a da URAE 22, versando sob o mesmo tema, o que não é cabível juridicamente. Ainda que a RMBH possua natureza de autarquia interfederativa de integração compulsória, conforme previsto no art. 25, §3°, da Constituição Federal, enquanto as unidades regionais de saneamento básico tenham natureza de gestão associada, fundamentada no art. 241 da Constituição Federal, o exercício da titularidade sobre os serviços públicos de saneamento básico em duas esferas colegiadas distintas não é compatível. Logo, aponta-se a necessidade de aprovação de lei complementar retirando da RMBH a função pública de interesse comum.

A mesma situação se observa na URAE 03, da qual fazem parte os municípios de Coronel Fabriciano, Ipatinga, Santana do Paraíso e Timóteo, todos integrantes da Região Metropolitana do Vale do Aço (RMVA), para a qual a gestão metropolitana abrange “a integração dos sistemas de abastecimento e esgoto sanitário do aglomerado metropolitano” (Art. 8º, IV, “a” da Lei Complementar nº 90, de 12 de janeiro de 2006). Logo, a exemplo do apontado para a RMBH, também a RMVA deverá dispor de lei complementar retirando o saneamento básico de função de interesse comum naquele território, impedindo a imposição a estes municípios de duas governanças distintas tratando do mesmo tema.

Outro ponto a observar é a expressa utilização dessa obrigatoriedade imposta pela Lei 14.026/2020 para avançar em uma das bandeiras do atual governo estadual: a desestatização das empresas estatais mineiras. Enquanto essas 22 URAEs foram constituídas em um desenho formatado com visão na licitação dos serviços, a proposta de regionalização em trâmite em São Paulo[1], mesmo com deficiências e impropriedades legais, reuniu em uma das unidades regionais todos os municípios atendidos pela Sabesp, buscando preservar a atuação daquela empresa no estado.

Das Unidades Regionais de Gestão de Resíduos

A proposta do PL do Governo Zema prevê a instituição de 34 (trinta e quatro) URGRs no estado. No Art. 8º do PL é estabelecido como finalidade de cada URGR “exercer as competências relativas à integração da organização, do planejamento e da gestão de resíduos sólidos urbanos com vistas à disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos e à universalização dos serviços conforme metas e prazos estabelecidos no Art. 54 da Lei Federal n° 12.305, de 2010, com a redação da Lei Federal nº 14.026, de 2020, nos municípios que a integram” (grifo nosso). Observa-se que esta descrição cria um conflito de finalidades com o Art. 2° que define a URGR como um “agrupamento de municípios (…) para promover a prestação dos serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos […] de forma compartilhada” (grifo nosso), uma vez que o Art. 2º remete ao gerenciamento de resíduos sólidos (Art. 3º, X da Lei Federal 12.305/2010), ao passo que o Art. 8º aponta mais para o campo da gestão integrada de resíduos sólidos (Art. 3º, XI da Lei Federal 12.305/2010).

Também para as URGRs são válidas as ponderações tecidas para as URAEs referentes à necessidade de adequação das estruturas territoriais já existentes no estado, e nas quais o saneamento básico é definido por lei como função pública de interesse comum. Logo, aponta-se a necessidade de aprovação de leis complementares retirando da RMBH e da RMVA a função pública de interesse comum referentes aos resíduos sólidos (Art. 8º, IV, b das Leis 89/2006 e 90/2006) para que as competências definidas para as URSBs sejam legalmente válidas. Conforme mencionado em artigo componente desta série, a URGR 14 conta com 24 municípios da RMVA, estando os outros 4 distribuídos nas URGRs 13, 15 e 29, ao passo que a URGR 25 dispõe de 44 municípios da RMBH, estando os demais distribuídos nas URGRs 4, 15, 20 e 23. Consideraram-se nos números os municípios que fazem parte dos colares metropolitanos das duas regiões.[2]

Das Estruturas de Governança

A Lei 11.445/2007, com redação dada pela Lei 14.026/2020, estabeleceu (Art. 8º, II, §3º) que “a estrutura de governança para as unidades regionais de saneamento básico seguirá o disposto na Lei nº 13.089, de 12 de janeiro de 2015 (Estatuto da Metrópole).” De acordo com este Estatuto (Art. 8º, I a IV), a governança interfederativa compreenderá em sua estrutura básica: (I) instância executiva composta pelos representantes do Poder Executivo dos entes federativos integrantes das unidades territoriais urbanas; (II) instância colegiada deliberativa com representação da sociedade civil; (III) organização pública com funções técnico-consultivas; e (IV) sistema integrado de alocação de recursos e de prestação de contas. Já o PL da equipe de Zema aponta para as unidades regionais propostas a seguinte estrutura (Art. 10, I a III):

Art. 10. – A governança Interfederativa das Unidades Regionais Saneamento Básico do Estado de Minas Gerais compreenderá em sua estrutura básica:

I – Instância Executiva composta pelos chefes do poder executivo dos municípios integrantes das Unidades Regionais de Saneamento Básico;

II – Instância Colegiada deliberativa;

III – Entidade responsável pela fiscalização e regulação

Observa-se, de início, a constituição da Instância Executiva composta por chefes do poder executivo (prefeitos e prefeitas), e não por seus representantes, conforme estabelece a Lei 13.089/2015. Neste ponto, o PL cria uma atribuição aos executivos municipais, conflitando com a natureza jurídica das leis orgânicas municipais, às quais caberia o estabelecimento das competências do cargo.

Adicionalmente, observa-se que o Art. 10 do PL insere na estrutura básica da governança uma entidade responsável pela fiscalização e regulação dos serviços, não prevista nos termos da Lei 13.089/2015. Além disso, em seu Art. 25 o PL estabelece que “enquanto não houver disposição em contrário da Instância Executiva prevista no art.10., inciso I, as funções de fiscalização e regulação nas URAE’S serão desempenhadas pela Agência Reguladora de Serviços de Abastecimento de Água e de Esgotamento Sanitário do Estado de Minas Gerais – ARSAE-MG.” Esta imposição da ARSAE-MG como regulador conflita com a Lei 11.445/2007, que estabelece que “a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico poderá ser delegada pelos titulares a qualquer entidade reguladora, e o ato de delegação explicitará a forma de atuação e a abrangência das atividades a serem desempenhadas pelas partes envolvidas” (Art. 23, XIV, §1º).  Ainda que o caput deste Art. 25 aponte a eventual disposição da Instância Executiva na definição do ente regulador, a PL desconsidera a condição dos contatos vigentes entre municípios e os reguladores por eles escolhidos, impondo a imediata regulação pela ARSAE-MG aos municípios de cada uma das URAEs.

Observa-se, também, uma inadequação nas funções atribuídas às instâncias da governança. Por exemplo, as funções técnico-consultivas previstas na Lei 13.089/2015 foram delegadas à Instância Executiva, cuja composição se dá pelos chefes dos poderes executivos municipais. Apenas para comparação, na estrutura de governança da RMBH essas funções são de atribuição da Agência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte, autarquia instituída pela Lei Complementar nº 107/2009, e que tem por atribuição promover a implementação de planos, programas e projetos de investimento estabelecidos no Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado; propor estudos técnicos de interesse regional, compatibilizando-os com os interesses do Estado e dos municípios integrantes da RMBH; e propor normas, diretrizes e critérios para compatibilizar os planos diretores dos municípios integrantes da RMBH com o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado. Verifica-se que o detalhamento das atribuições dadas à Instância Executiva, em especial a elaboração do planejamento e definição do modelo de operação dos serviços de saneamento no âmbito da respectiva Unidade Regional (Art. 11, II), se sobrepõem àquelas exercidas pela Agência Metropolitana da RMBH, consistindo efetivamente de um órgão técnico-consultivo da estrutura de governança, como prevê a Lei 13.089/2015.

Nessa mesma linha, observa-se que o PL dá atribuição à Instância Deliberativa (Art. 12, I) de “estabelecer diretrizes sobre o planejamento, a organização e a execução dos serviços abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos e gestão de resíduos sólidos urbanos, a serem observadas pela instância executiva da Unidade Regional de Saneamento Básico.” Ora, tal atribuição é esperada de um órgão técnico-consultivo, e não de uma instância cuja natureza é de aprovar/reprovar matérias propostas para a Unidade. A quem caberá a aprovação/reprovação das matérias propostas pela Instância Deliberativa?

Ainda sobre a Instância Deliberativa, o Art. 12, IV estabelece como sua atribuição “definir a entidade responsável pela regulação e fiscalização dos serviços de saneamento básico que atuará na respectiva Unidade Regional.” Este inciso conflita diretamente com a Lei 11.445/2007 (Art. 23, XIV, §1º), conforme já exposto anteriormente, que estabelece de maneira clara que a escolha da regulador dos serviços é um direito e uma competência do titular dos serviços.

Por fim, observa-se que a composição da Instância Deliberativa deixa de atender ao disposto na Lei 13.089/2015 quanto à representação da sociedade civil, enfraquecendo o caráter democrático das decisões daquele plenário. Da mesma forma, não há no PL a previsão de sistema integrado de alocação de recursos e de prestação de contas, conforme dispõe a Lei 13.089/2015 (Art. 8º, IV).

Da Adesão dos Titulares

O PL apresentado prevê em seu Art. 15 que “a adesão dos municípios às Unidades Regionais de Saneamento Básico se dará por meio de manifestação de interesse, encaminhada para Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, assinada pelo prefeito municipal, de adesão à URAE e/ou URGR e à estrutura de governança a que se refere o artigo 10 desta Lei”(grifo nosso). Vale mencionar que esse é um aspecto trazido pela Lei 14.026/2020 que tem sido alvo de questionamentos jurídicos por limitar a adesão à uma decisão dos prefeitos, com entendimento de que tal definição deveria ser objeto de apreciação e deliberação nas câmaras municipais dos integrantes de cada unidade regional, em razão de interpretação do art. 241 da Constituição Federal.

Já o Art. 17 do PL prevê a possibilidade de os municípios aderirem a unidades regionais diversas daquelas em que estão originalmente inseridos, conforme as listagens dos anexos I e II do PL. Para isso, define como de responsabilidade do titular dos serviços – portanto o município – de comprovar, por meio de parecer técnico fundamentado, a viabilidade técnica e econômica de prestação compartilhada dos serviços, com vistas à sua universalização, na Unidade Regional de Saneamento de interesse. Assim, fica delegado a um município o levantamento de dados de outros diversos municípios, e a realização de estudos para tal comprovação sem o estabelecimento prévio de critérios, parâmetros, insumos mínimos e outros elementos que possam referenciar em quais bases se dará a aprovação – ou a reprovação – desta comprovação, e nem a quem caberá tal deliberação.

Ainda sobre o Art. 17, é no mínimo curioso que o Governo publique uma Nota Técnica acostada ao seu PL apontando o esforço de um ano na complexa estruturação da regionalização, justificando a adoção de critérios e premissas para garantia do alcance da viabilidade técnica e financeira desses arranjos, para no PL incluir a observação de que os municípios podem optar por aderirem a outras unidades que não aquelas resultantes de seu estudo.

Já em seus artigos 18 e 19, o PL imputa aos municípios que optarem por não aderirem às URAEs e às URGRs a obrigação de comprovarem sua capacidade de alcançar, isoladamente, as metas de universalização dos serviços de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos propostas pela Lei Federal nº 14.026, de 15 de julho de 2020. Este artigo em comento extrapola o que foi inserido na Lei 11.445/2007 pela Lei 14.026/2020. Primeiramente, a Lei 11.445/2007, a partir da redação dada pela Lei 14.026/2020, requer a comprovação de capacidade financeira ou de endividamento das contratadas para prestação dos serviços, e não dos municípios (grifo adicionado):

“Art. 10-B. Os contratos em vigor, incluídos aditivos e renovações, autorizados nos termos desta Lei, bem como aqueles provenientes de licitação para prestação ou concessão dos serviços públicos de saneamento básico, estarão condicionados à comprovação da capacidade econômico-financeira da contratada, por recursos próprios ou por contratação de dívida, com vistas a viabilizar a universalização dos serviços na área licitada até 31 de dezembro de 2033, nos termos do § 2º do art. 11-B desta Lei.

A imposição contida nesses dois artigos carece de melhor explicação por parte da equipe que elaborou o PL. Além de extrapolar os requerimentos da Lei 11.445/2007, eles não caminham em nenhuma direção: se o município deixar de apresentar o Parecer Técnico, se apresentar e o Parecer Técnico não for devidamente fundamentado, ou ainda se o Parecer Técnico não referendar a tal capacidade exigida, o que acontecerá? O município será obrigado a aderir, jogando por terra a tese da “adesão voluntária”? Essa imposição dos artigos 18 e 19 do PL conflita diretamente com a Lei 13.089/2015, que em seu Art. 6º, III estabelece que governança interfederativa respeitará, dentre outros princípios descritos, a autonomia dos entes da Federação.  Enfim, uma abordagem inadequada e insuficiente para um documento que se propõe a ser transformado em lei.

Da Prestação dos Serviços

O Art. 20 garante que “a prestação dos serviços prezará [grifo nosso] pela universalização do atendimento,...”, utilizando um termo absolutamente estranho a textos legais: prezará. A utilização deste verbo parece indicar que não existe compromisso do texto legal com a universalização dos serviços. Ao contrário do proposto no PL, a lei originária Lei federal 11.445/2007 tem objetividade no critério da universalização como pode ser visto nos extratos:

“Art. 2o.  Os serviços públicos de saneamento básico serão prestados com base nos seguintes princípios fundamentais [grifo nosso]:

I – universalização do acesso e efetiva prestação do serviço;

….

XIV – prestação regionalizada dos serviços, com vistas à geração de ganhos de escala e à garantia da universalização [grifo nosso] e da viabilidade técnica e econômico-financeira dos serviços;”

….

“Art. 10-B. Os contratos em vigor, incluídos aditivos e renovações, autorizados nos termos desta Lei, bem como aqueles provenientes de licitação para prestação ou concessão dos serviços públicos de saneamento básico, estarão condicionados à comprovação da capacidade econômico-financeira da contratada, por recursos próprios ou por contratação de dívida, com vistas a viabilizar a universalização dos serviços [grifo nosso] na área licitada até 31 de dezembro de 2033, nos termos do § 2º do art. 11-B desta Lei.”

Outra questão que enseja reflexão é que a redação do Art. 21 do PL proposto determina que “A prestação dos serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos deve incluir toda a rota tecnológica, priorizar a coleta seletiva, incluir ações de educação ambiental, favorecer e estimular a não geração, o reaproveitamento e reciclagem dos resíduos e o tratamento diferenciado para as frações orgânicas, recicláveis e rejeitos, de forma a atender o que preconiza o art. 9º da Lei Federal 12.305, de 2010” [grifo nosso]. Todavia, como o verbo “priorizar” se sobrepõe aos verbos “incluir”, “favorecer” e “estimular”, depreende-se que este dispositivo fere norma geral sobre resíduos sólidos, pois, o próprio artigo da legislação federal citado é bem claro ao estabelecer que “deve ser observada a seguinte ordem de prioridade: não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos” [grifos nossos]. Observa-se que o dispositivo da Política Nacional de Resíduos Sólidos busca concretizar o princípio da ecoeficiência (Art. 6º, V da Lei Federal 12.305 de 2010), ao impor que as atividades sejam realizadas com o mais elevado nível de eficiência econômica e ambiental. Por outro lado, o Art. 21 do PL proposto não demonstra a mesma preocupação e observância do citado princípio, ao subverter a ordem de prioridades estabelecida pela Política Nacional de Resíduos Sólidos.

O PL, no seu Art. 22, ao tratar da prestação dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, propõe que “A modelagem de prestação dos serviços de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos deve contemplar alternativas tecnológicas que resultem em maior eficiência do processo de tratamento, reduzam perdas no sistema, permitam o reuso dos efluentes, prezando pela sustentabilidade financeira e o alcance das metas de universalização”. Ora, o PL trata da prestação dos serviços em si e não da modelagem que será utilizada para montar pacotes licitatórios pelo governo estadual quando for licitar as concessões das Unidades Regionais.

Acrescenta-se que o PL não explicita que a Prestação dos Serviços poderá se dar por meio de autarquia intermunicipal formada pelos municípios envolvidos na regionalização proposta.

Das Disposições Finais e Transitórias

Em seu artigo 24, o PL deposita nas tarifas a serem cobradas a manutenção da viabilidade econômica dos serviços, e ressalta a consideração na estruturação tarifaria dos seguintes fatores: (I) categorias de usuários, distribuídas por faixas ou quantidades crescentes de utilização ou de consumo; (II) padrões de uso ou de qualidade requeridos; (III) quantidade mínima de consumo ou de utilização do serviço, visando à garantia de objetivos sociais, como a preservação da saúde pública, o adequado atendimento dos usuários de menor renda e a proteção do meio ambiente; (IV) custo mínimo necessário para disponibilidade do serviço em quantidade e qualidade adequadas; (V) ciclos significativos de aumento da demanda dos serviços, em períodos distintos; e (VI) capacidade de pagamento dos consumidores. É preciso apontar que o que é estabelecido nesse artigo se mostra insuficiente para prevenir a ocorrência de exclusão de pessoas dos sistemas motivada pela incapacidade de pagamento. Há URAE, por exemplo, em que se observa mais de 50% da população classificada como de baixa renda, chegando a alcançar percentuais superiores a 70% em alguns municípios. Se não houver clara manifestação no sentido de garantir o acesso de todos os cidadãos em situação de extrema pobreza, pobreza e baixa renda aos serviços, os inúmeros riscos de sua exclusão concorrerão para afastar a realidade da universalização pretendida.

No Art. 25, já comentado nesse texto, a imposição da ARSAE-MG como regulador em todas as URAEs é conflitante com a Lei 11.445/2007 (Art. 23, XIV, §1º) e, também, com a Lei 13.089/2015 – Estatuto da Metrópole (Art. 8º, I a IV).

De maneira semelhante, o Art. 26, §1º, ao dispor que exercício das funções de regulação e fiscalização deverá ser atribuído a uma única entidade reguladora em cada Unidade Regional de Saneamento Básico, fere o disposto na Lei 11.445/2007 (Art. 23, XIV, §1º), ressaltando que não há a obrigatoriedade de se ter um único prestador dos serviços em uma unidade regional. Além disso, os requerimentos para a entidade reguladora dispostos no §3º do Art. 26 extrapolam o que foi estabelecido pela Lei 11.445/2007 a partir da redação dada pela Lei 14.026/2020, consistindo apenas de uma tentativa de restringir as opções dos municípios e favorecer a imposição da ARSAE-MG como regulador em todo o estado.

Conclusões

O texto do anteprojeto de lei submetido pela SEMAD à consulta pública, pelo conjunto de imperfeições aqui apontadas, se mostra muito distante de um texto capaz de ser efetivado em lei.

Do ponto de vista da proposta de regionalização, os apontamentos registrados nos demais artigos desta série[3] demonstram diversas fragilidades dos estudos, e o risco de uma intervenção desta monta, com impactos sobre toda a população do estado, conhecendo tais fragilidades. Adicionalmente, o texto do PL magnifica esses riscos, por conter imperfeições que variam de meras insuficiências textuais, incitando dúvidas diversas nas possíveis interpretações do anteprojeto, até aspectos cuja constitucionalidade se mostra questionável, e que se sobrepõem às legislações existentes, conflitando com a autonomia dos municípios e com os princípios da cooperação interfederativa, previstos na Constituição Federal (art. 241), na Lei 13.089/2015 (Estatuto da Metrópole), e na própria Lei 11.445/2007 com redação dada pela Lei 14.026.

Se mostra muito preocupante a viabilidade resultante dos estudos apresentados, calcada em uma estimativa de receita fundamentada em uma renda per capita média, sem considerar, contudo, as desigualdades no estado. São quase 6 milhões de pessoas, aproximadamente 1/3 da população do estado, em situação de Extrema Pobreza, Pobreza e Baixa Renda, conforme o Cad Único[4]. Destas, quase 3 milhões se encontram em situação de Extrema Pobreza (renda per capita de até R$89/mês). Assim, entende-se que o PL deveria apontar a obrigatoriedade de adoção de estrutura tarifária adequada para promover e garantir a essas pessoas o acesso aos serviços, buscando de fato sua universalização.

A estruturação proposta para a governança das unidades se mostra aquém do que estabelece a Lei 13.089/2015, e distribui de forma inadequada as atribuições das instâncias que compõem essa estrutura – ao ponto de definir como atribuição da instância deliberativa ações associadas ao planejamento dos serviços. Se por um lado a estrutura de governança proposta deixa de atender ao Art. 8º, II da Lei 13.089/2015: “instância colegiada deliberativa com representação da sociedade civil”, enfraquecendo o exercício do controle social das decisões dessa instância, a tentativa de impor a regulação dos serviços por meio da ARSAE-MG, a agência reguladora vinculada ao estado, se mostra como uma forma de privilegiar a presença do estado no âmbito das unidades regionais, em detrimento do protagonismo dos municípios.

A proposta de regionalização do saneamento não é um tema que produz efeitos momentâneos. Seus efeitos serão sentidos por décadas, e os eventuais impactos negativos terão pequena reversibilidade, possivelmente atrelada a complexas judicializações. Com isso, é muito difícil separar a proposta de anteprojeto apresentada do Governo responsável por sua elaboração. Neste contexto, não é difícil identificar aspectos que se relacionam mais com a visão política e ideológica do atual governo estadual do que com o objetivo de universalizar o saneamento. Assim, a estruturação de um projeto de regionalização fundamentado na hipótese de uma breve licitação da prestação dos serviços de saneamento no estado deixa de ampliar garantias que busquem favorecer a universalização do saneamento. Como exemplo, deveriam constar no PL: (i) a obrigatoriedade de adoção de uma estrutura tarifária capaz de garantir e promover o acesso aos serviços a todos, independentemente da capacidade de pagamento das pessoas; (ii) o impedimento da utilização da outorga máxima pela prestação dos serviços como critério de decisão nas eventuais licitações; (iii) o apontamento de que as outorgas eventualmente auferidas nos processos licitatórios tenham sua integralização distribuídas de forma homogênea ao longo dos dez primeiro anos das concessões; (iv) e que essas outorgas sejam, obrigatoriamente, revertidas para investimentos de saneamento nas áreas de maior vulnerabilidade socioeconômica dos territórios em questão.

A avaliação de todo esse cenário recairá sobre a Assembleia Legislativa de Minas Gerais, a quem caberá a aprovação da proposta de regionalização do saneamento no estado elaborada pelo Governo.  Isso torna imprescindível que os deputados estaduais e suas bases se apropriem das informações sobre a proposta, dando consequência a sua decisão.

[1] PL 251/2021. Disponível em https://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1000366067
[2] Disponível em https://ondasbrasil.org/gestao-dos-residuos-solidos-sobre-a-nota-tecnica-metodologia-de-construcao-das-unidades-regionais-de-saneamento-em-mg/
[3] Disponível em https://ondasbrasil.org/proposta-de-zema-para-a-regionalizacao-do-saneamento/
[4] CECAD, 2021. Disponível em https://cecad.cidadania.gov.br/tab_cad.php
[5] Disponível em https://ondasbrasil.org/gestao-dos-residuos-solidos-sobre-a-nota-tecnica-metodologia-de-construcao-das-unidades-regionais-de-saneamento-em-mg/
[6] Disponível em https://ondasbrasil.org/proposta-de-zema-para-a-regionalizacao-do-saneamento/
[7] CECAD, 2021. Disponível em https://cecad.cidadania.gov.br/tab_cad.php

* AUTORES:
Alex M. S. Aguiar – Engº Civil, M.Sc. em Saneamento (UFMG), diretor da H&A Saneamento e membro do ONDAS.

Elias Haddad Filho – Engº Civil, MBA em Gestão de Empresas de Saneamento (FJP), diretor da H&A Saneamento e membro do ONDAS.
Fábio J. Bianchetti – Engº Civil, M.Sc. e doutorando em Saneamento (UFMG), professor do CEFET MG e membro do ONDAS.

LEIA TODA A SÉRIE DE ARTIGOS:
. A proposta de Zema para a regionalização do Saneamento em MG: qual futuro nos espera? – primeiro artigo
Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário – Sobre a Nota Técnica Metodologia de construção das Unidades Regionais de Saneamento Básico no Estado de Minas Gerais – segundo artigo
Gestão dos Resíduos Sólidos – Sobre a Nota Técnica Metodologia de construção das Unidades Regionais de Saneamento em MG – terceiro artigo
. Ponderações sobre o Anteprojeto de Lei da Regionalização do Saneamento em MG – quarto artigo

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