SANEAMENTO COMO POLÍTICA PÚBLICA: UM OLHAR A PARTIR DOS DESAFIOS DO SUS – CAPÍTULO 2
HELLER, Léo (Org.). Rio de Janeiro: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz / Fiocruz, 2018. ISBN: 978-85-8110-041-8
No segundo capítulo, “Proposições para acelerar o avanço da política de saneamento no brasil: Tendências atuais e visão dos agentes do setor”, Ana Lucia Britto[1] apresenta um histórico detalhado do período 2003 a 2018 do desenvolvimento da política nacional de saneamento.
Inicialmente, a autora analisa os fatores que levaram à universalização do acesso aos serviços de saneamento em países do Norte global como Alemanha, Espanha, Inglaterra, Estados Unidos e Portugal, nos quais, até a segunda metade do século XIX, os serviços eram providos por “empresas privadas relativamente pequenas para fornecimento de água a uma parcela restrita da população.”
Da segunda metade do século XIX até 1918 houve a municipalização dos serviços, onde a rentabilidade se torna uma preocupação secundária, pois financiada com recursos públicos.
Após a I Guerra Mundial, os Estados Nacionais passam a ocupar um papel central no processo de regulação, controle e investimentos alinhados ao modelo de estado de bem-estar social, para diversos serviços como: saneamento, eletricidade e telecomunicações. O acesso a esses serviços públicos passa a ser constitutivo do conceito de cidadania. São relevantes para esse processo e para o estabelecimento de um projeto de universalização: (i) o desenvolvimento de meios de consumo coletivo; (ii) a socialização das despesas de investimento e consumo; (iii) a intervenção do Estado e; (iv) o desenvolvimento de órgãos de gestão pública específicos. Até 1990 esses países já contavam com todos os serviços, ou quase todos, universalizados, em ambiente rural ou urbano.
Os processos verificados em França, Alemanha, Grã-Bretanha, Estados Unidos e Irlanda demonstram que a universalização ocorreu enquanto os estados aportaram recursos públicos em larga escala. Alguns momentos de crise dos estados nacionais levaram a mudanças nas relações público/privado no saneamento, mas geralmente sobre municípios e infraestruturas já instaladas em termos de investimento inicial para universalização. O processo conduzido na gestão Thatcher para repasse do saneamento pós-universalização à gestão privada na Inglaterra, levou a um incremento de 46% nas tarifas e de 142% nos lucros operacionais das empresas, com redução de investimentos e prejuízo à saúde pública.
Britto conclui que o processo de construção de serviços universais ocorreu nesses países sob um contexto de crescimento econômico e de direitos sociais com investimentos públicos massivos. Não foi o capital privado ou a lógica de mercado que levaram à universalização. Havia um quadro normativo sólido com diferentes modelos de gestão entre países e controle público da sociedade. Ao longo do tempo, as instituições públicas consolidaram a capacidade técnica e a visão do saneamento como direito assegurado pelo poder público.
Sobre o recente período brasileiro, a autora avalia a dimensão institucional (estrutura institucional e jurídica), a dimensão processual (processo político, objetivos e decisões) e a dimensão material (programas e implementação), sob a metodologia de Frey (2000)[2].
Explica-se os quatro tipos de políticas: (i) redistributivas, (ii) distributivas, (iii) regulatórias e (iv) estruturadoras ou constitutivas. A política de saneamento tem potencial para se tornar reguladora e estruturadora, mas sua implementação provou-se insuficiente para ser considerada estruturadora.
A autora descreve profundamente o processo de negociação e tomada de decisão antecedentes à Lei 11.445/2007, as Conferências Nacionais das Cidades e a participação dos principais atores políticos. Relata o histórico da Lei 11.445/2007, inclusive bastidores políticos do segundo mandato do Presidente Lula (2007-2010). Explica os conflitos entre atores políticos que levaram à tardia publicação do Decreto 7.217/2010 e o descompasso entre os investimentos do PAC 1 e 2, o marco regulatório, a capacidade de supervisão pelo Governo Federal, a ausência de controle social sobre investimentos, a ausência de planejamento atendendo a interesses políticos, e a geração tardia de resultados mais contundentes.
Destaca a importância do Plansab, publicado em 2013, como definidor de diretrizes e planejamento, mas que não conseguiu encontrar caminhos de implantação definitiva.
Reforça que não houve falta de recursos, apontando o grande atraso e impasses de gestão no planejamento e execução das obras com inconsistências em projetos, atrasos em alvarás e aquisição de terrenos, licenças ambientais e fraca capacidade técnica de municípios e algumas companhias estaduais de água e esgoto. O ano de 2015 foi marcado por uma paralisação das políticas públicas de desenvolvimento do saneamento em função do impeachment da presidenta Dilma e uma inflexão, a partir de 2016 da visão do saneamento como negócio.
O Governo Temer desmontou a estrutura de participação e controle social da política nacional de saneamento, congelou, com a EC 95, os gastos públicos e apontou para o mercado privado como provedor de recursos para o saneamento. Iniciou o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) para concessões, inclusive no saneamento e tentou viabilizar a privatização das companhias estaduais de saneamento.
Apresentou, após debate interno e com um grupo seleto de agentes do mercado, uma Medida Provisória (844/2018) com objetivo de rever conceitos básicos da Política Nacional de Saneamento (lei 11.445/2007), eliminando a referência lógica do saneamento como direito, promovendo forte abertura para empresas privadas no setor, desestabilizando as relações entre companhia estadual e municípios e fragilizando a titularidade. O desmonte do Conselho das Cidades, a instituição do PPI, a redução dos recursos disponibilizados, a MP e a ausência de debate com a sociedade demonstram a inversão da lógica de saneamento como direito.
A autora ainda apresenta as posições dos diferentes atores que participam do debate político sobre o saneamento em nível federal, aprofundando nas posições históricas de cada agente e sua influência no processo de formulação atual da política. São apresentadas as posições dos prestadores de serviço (Associação Brasileira das empresas Estaduais de Saneamento – Aesbe, da Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento – Assemae, Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto – Abcon, Instituto Trata Brasil); dos usuários (Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLM, União Nacional pro Moradia Popular – UNP, Confederação Nacional de Associações de Moradores – Conam, Central de Movimentos Populares –CMP, Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e Favelas – MLB, entre outras); e dos profissionais do setor (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental – ABES e Federação Nacional dos Urbanitários – FNU).
Por fim, a autora conclui e explica 8 caminhos para avançar na perspectiva de saneamento como direito social:
1- Necessidade de revisão do marco legal que orienta a gestão do saneamento, no sentido de fortalecer a concepção de saneamento como direito social;
2 – A necessidade de ampliação da disponibilização de recursos públicos, inclusive a fundo perdido;
3 – Simplificar os processos de financiamento para acessar recursos do Orçamento Geral da União;
4 – Ampliar estudos e debates públicos sobre modelos de tarifas sociais;
5 – Repensar a regulação e a possibilidade de associá-la ao controle social;
6 – O respeito às diretrizes do Plansab;
7 – Organização de uma rede de avaliação dos planos municipais de saneamento básico;
8 – Organizar a disputa política na defesa do modelo de gestão pública.
O conteúdo deste capítulo é uma aula sobre a dinâmica política dos setores e grupos envolvidos no debate sobre o saneamento. Demonstra que a universalização nos países desenvolvidos foi realizada com recursos públicos e em contexto diferente da situação atual no Brasil e apresenta caminhos para avançar na perspectiva do saneamento como um direito social. É um texto altamente relevante para o debate atual sobre o direito ao saneamento.
Por Sávio Mourão Henrique[3]
[1] Geógrafa, doutora em urbanismo, professora do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo – PROURB, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e Coordenadora de Projetos do ONDAS.
[2] FREY, K. Políticas públicas: um debate conceitual e reflexões referentes à prática da análise de políticas públicas no Brasil. Planejamento e Políticas Públicas, n. 21, p.211-259, jun. 2000.
[3] Biólogo pela Universidade de São Paulo e Mestre em Planejamento e Gestão do Território pela Universidade Federal do ABC, Atua há 15 anos como consultor em planejamento urbano e ambiental com foco em recursos hídricos e saneamento. É diretor do SAS Brasil, pesquisador e apoiador do ONDAS.
➡ Leia também:
▪ Resenha do 1º capítulo: Política de saneamento vis-à-vis à política de saúde: encontros, desencontros e seus feitos
▪ Resenha do 3º capítulo: Padrão de investimento e a estratégia financeira das grandes empresas regionais do setor de Água e Esgoto (A&E) no Brasil
▪ Resenha do 4º capítulo: Saneamento no Brasil: outro mundo é possível e desejável
Nota do editor da seção Resenha, Amauri Pollachi:
Este recente livro, publicado pela Fiocruz, contém reflexões fundamentais para os debates sobre as políticas públicas de saneamento e saúde neste agudo momento de tentativa de desconstrução de conquistas sociais. Por sua densidade e relevância será objeto de quatro resenhas sucessivas, cada qual dedicada a um de seus capítulos, que serão publicadas quinzenalmente entre outubro e dezembro de 2019.
Agradecemos a Sávio Mourão Henrique pelo trabalho de fôlego dedicado à elaboração das resenhas.