ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

A necessária vigilância da água

Em contribuição ao debate do tema, a partir do artigo A norma brasileira de qualidade da água para consumo humano em revisão – um convite à reflexão sob a ótica dos direitos , de autoria do professor Rafael Kopschitz Xavier Bastos
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A NECESSÁRIA VIGILÂNCIA DA ÁGUA

Telma de Cássia Santos Nery[1]

“Nós fizemos a reforma sanitária que criou o SUS, mas o núcleo dele, desumanizado, medicalizado, está errado. Temos de penetrar no coração desse modelo e mudar. Qual o fundamento? Primeiro a promoção da saúde e não da doença. O SUS tem de, em primeiro lugar, perguntar o que esta acontecendo no cotidiano e na vida das pessoas e como eu posso interferir para torna-la mais saudável.” (Sergio Arouca, 2002[2])

Importante frase de Arouca que responde a essência das atividades do SUS, do qual a vigilância da qualidade da água é parte integrante.

Hipócrates, pai da medicina, apontava que as causas das doenças e suas curas estavam relacionadas não somente às características individuais, mas também ao modo de vida e aos fatores do clima e da região. Seu tratado “Dos ares, águas e lugares” traz um conceito bastante amplo sobre saúde e doença.

O perfil epidemiológico de adoecimento no Brasil e no mundo tem se alterado. A epidemiologia ambiental nos aponta vários fatores intrinsicamente relacionados à poluição do ar e à exposição a substancias químicas, dentre outros, provocando patologias crônicas de natureza neurológica, hepática, endócrina e carcinogênica que se mostram como importantes fatores de adoecimentos e óbitos. Dada a carga multifatorial relacionada à etiologia destes problemas, todos os fatores ambientais devem ser investigados, analisados e considerados. Há inúmeros estudos que apontam para essa relação com o ambiente.

A vigilância da qualidade da água deve, portanto, ter uma atuação sintonizada com as transformações de padrões e características da produção industrial. Por exemplo, se substancias químicas, algumas delas relacionadas a patologias crônicas, estão presentes com maior incidência em regiões especificas, a qualidade da água deve se adequar para enfrentar essas substancias.

Extensivos estudos epidemiológicos evidenciam que fatores relacionados à exposição à agua podem estar direta ou indiretamente relacionados à saúde humana. A vigilância da qualidade da água deve ter um perfil ágil e de precaução para, por exemplo, identificar a presença de agrotóxicos relacionados a patologias como as malformações congênitas, câncer e outras, já reconhecidos em pesquisas disponíveis, por exemplo, no Instituto Nacional do Câncer.[3]

Apenas na atual gestão federal, mais de 600 agrotóxicos foram autorizados para o uso no Brasil, entretanto a proposta de revisão da portaria de vigilância da água aumenta de 27 para 37 os agrotóxicos objetos de vigilância. A pesquisadora Larissa Bombardi[4] comparou os indicadores de controle de algumas substancias e constatou diferenças de valores gritantes nos limites estabelecidos na legislação entre Europa e Brasil, aqui muito superiores aos de lá.

O Plano de Segurança da Água (PSA), indicado pela OMS, prevê acompanhamento de todo o “caminho” da água, considerando fatores epidemiológicos existentes neste percurso que oferecem respostas para além da agua nos reservatórios e na torneira. Um exemplo é a pulverização aérea de agrotóxicos produz impactos sazonais importantes no meio ambiente que se relacionam a impactos na saúde humana local. Outro exemplo é a presença de produtos farmacêuticos não removidos em processos convencionais de tratamento de água. É fundamental o controle e a vigilância da presença destes compostos na água, isolados ou em associação, ao lado do acompanhamento de alterações em perfis de saúde humana.

Ainda podemos aprimorar o acesso à informação. Hoje são disponibilizadas importantes e úteis informações sobe qualidade da água que podem ser utilizadas por todos, visando adotar modelos preventivos em variados problemas de saúde. O acesso aos bancos de dados, confiáveis ​​e suficientes para avaliar as variações temporais e geográficas aplicáveis ​​às áreas de estudo, facilitaria uma melhor avaliação da exposição em estudos epidemiológicos. É necessário investigar os possíveis nexos entre contaminantes emergentes (não regulamentados) para a saúde. E mais pesquisas são necessárias para investigar possíveis efeitos de vários produtos químicos regulamentados. A revisão da portaria de vigilância da água deve prever novas revisões à medida que estudos identifiquem impactos à saúde humana.

As ações de vigilância em saúde fornecem instrumentos para a adoção de medidas preventivas e de promoção à saúde. Consequentemente, a nova portaria deve estar atualizada ao conhecimento científico consolidado e ser ágil para se adaptar à medida que pesquisas identifiquem nexos relevantes para a preservação da qualidade da água e da saúde.

Referências adicionais

  1. Barlow, M. Água – Futuro Azul: como proteger a água potável para o futuro das pessoas e do planeta para sempre. Mbrooks do Brasil Editora: São Paulo, 2015.
  2. Conferência Nacional de Saúde. 12.ª Conferência Nacional de Saúde: Conferência Sergio Arouca. Brasília, 7 a 11 de dezembro de 2003. Ministério da Saúde: Brasília, 2003. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/10001018838.pdf). Acesso em: 24/05/2020.
  3. International Society for Environmental Epidemiology – ISEE. Disponível em: https://www.iseepi.org/
  4. Johnson, S. O mapa fantasma. Jorge Zahar Ed.: Rio de Janeiro, 2008.
  5. Nery, T.C.; Segatto, N. (orgs). Saúde e saneamento: chegando a um consenso. Editora Limiar: São Paulo, 2004.
  6. Nieuwenhuijsen, M. J. et al. Assessing exposure and health consequences of chemicals in drinking water: current state of knowledge and research needs. Environmental Health Perspectives, v. 122, n. 3, mar 2014. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24380896/
  7. Siegel, S. M. Faça-se a água: a solução de Israel para um mundo com sede de água Educ: São Paulo, 2017.

[1] Médica Sanitarista e Médica do Trabalho.
[2] O Pasquim 21, n. 28, edição de 20 de agosto de 2002.
[3] Instituto Nacional do Câncer – INCA. Disponível em https://www.inca.gov.br/ Acesso em: 24/05/2020
[4] BOMBARDI, L.M. Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia. FFLCH-USP, São Paulo, 2017 (revisado em julho de 2019).

LEIA:
➡️ A norma brasileira de qualidade da água para consumo humano em revisão – um convite à reflexão sob a ótica dos direitos – Artigo Rafael Kopschitz Xavier Bastos
➡️ Apresentação: Revisão do Anexo Portaria de Consolidação nº 5/2017 (antiga Portaria nº 2914 / 2011), que trata dos procedimentos de Controle e de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano – um convite à reflexão sob a ótica dos direitos
➡️ Tabela comparativa entre as portarias: Portaria 1469 /2000 (518 / 2004)/PRC nº 5/2017 Anexo XX(Portaria 2914 / 2011) Minuta 2020,elaborada pelo Professor Rafael

CONTRIBUIÇÕES AO DEBATE
➡️ Revisão da Norma de Potabilidade: inclusões com vista aos direitos humanos – Alex M. S. Aguiar
➡️ Potabilidade: por um Anexo XX da Portaria mais inclusivo – Elias Haddad Filho
➡️ Fortalecer a vigilância da qualidade da água e melhorar a transparência sobre sua qualidade da água distribuída é contribuir para garantir o direito humano à água – Silvano Silvério da Costa
➡️ A portaria de potabilidade da água: insistência em avançar em meio ao retrocesso – Érika Martins
➡️ A norma brasileira de qualidade da água: é possível radicalizar a ótica dos direitos humanos? Uma provocação – Léo Heller

1 comentário em “A necessária vigilância da água”

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