ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

A percepção dos trabalhadores de uma companhia estadual de saneamento básico (CESB) sobre a participação do capital privado

autor: Haneron Victor Marcos*

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A Lei Nacional do Saneamento Básico (LNSB), Lei nº 11445/2007, veio positivamente regular um setor que vivia sob as reminiscências do antigo PLANASA, que apesar das suas conquistas, não mais respondia às complexidades dos arranjos urbanísticos e jurídicos, e dos desafios que passaram emoldurar os serviços de saneamento.

Entretanto, nem tudo são flores; em um ambiente constitucional mais áspero do que, por exemplo, o vivenciado nos vizinhos Bolívia, Equador e Uruguai, que alçaram o saneamento a um status de direito humano, incompatível com a privatização (Carvalho et al., 2020; García Vazquez, 2020; Bertazzo, 2015), a LNSB fixou como princípio a sustentabilidade econômico-financeira, o que afetou diretamente verdadeiros institutos democratizantes, como o subsídio cruzado.

Soma-se a isso uma constante apatia dos entes constitucionalmente responsáveis (União, Estados, Distrito Federal e Municípios – Art. 23, IX), que colaborou em regra geral com a precarização dos serviços. Foi mantida a modicidade tarifária – principio legal regente – associada ao subsídio cruzado, cumpridores da responsabilidade social das CESB, sem que houvesse uma alavancagem pública disponível aos objetivos de universalização.

A universalização, uma meta óbvia de todas as CESB, que por sua vez se amoldavam aos contratos e planos municipais de saneamento, passou a ser norteada pela Lei nº 14026/2020, que alterou e engrandeceu o espírito economicista da LNSB. A meta de 99% da população com água potável e de 90% com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033 (art. 11-B) em um ambiente de grandes brechas públicas e de deliberada não resposta ao normatizado no inciso IX do art. 23, da Constituição Federal, comprimiu as CESB às alavancagens privadas e à privatização vertical (venda das ações ou do controle acionário) ou à privatização transversal (por participação público-privada ou subconcessão, por exemplo).

A estratégia do capital privado no Congresso Nacional – notadamente das transnacionais que aqui aportaram com maior apetite após a perda de mercado pelo fenômeno mundial da reestatização – se mostrou exitosa. A partir da Lei nº 14026/2020 as privatizações avançaram, e a participação desse capital privado se dá por meio de alavancagem pública, com impressionante atuação do BNDES, que mesmo após a vitória do Presidente Lula, segue sendo “o comandante das privatizações no setor”; de 2019 a 2022, de um total dez contratos, oito tiveram como beneficiários empresas privadas e somente 2 foram CESB, na ordem de R$ 20 bilhões contra R$ 566 milhões, respectivamente (Brito & Heller, 2023).

Em uma margem, o evidente privilégio do BNDES às privatizações (ignorando socorro à inúmeras CESB que comprovaram sua capacidade econômico-financeira), na outra, a curva descendente (“ladeira abaixo”) dos saldos de empréstimos para financiamento do saneamento pelo FGTS de 2004 a 2022 (Montenegro, 2023). No fluxo desse rio, a financeirização dos serviços fez escoar os compromissos sociais que foram marcas do PLANASA (Tonaco, 2023).

Os trabalhadores do setor de saneamento, que herculeamente conduziram os serviços por décadas em ambiente de deliberada precarização governamental, estavam esperançosos com a recente mudança de curso político originada com a derrota do Governo Bolsonaro e sua escolta ultraneoliberal, que constantemente flertou com a necropolítica. Porém, com um Congresso Nacional ainda majoritariamente reacionário e privatista, viram as tentativas de reequilíbrio das forças serem derrotadas com a revogação dos Decretos Federais nº 11466 e 11467 de 5 de abril de 2023, diante do fantasma do Projeto de Decreto Legislativo impulsionado pelo Congresso.

Esses trabalhadores agora presenciam a expansão dos tentáculos do capital privado sobre um direito humano, o saneamento, que, embora assim consagrado pela ONU (Resolução A/RES/64/292), enfrenta árido caminho para ser incluído do rol de direitos fundamentais em nossa ordem constitucional (art. 5º), sob a proposta de emenda constitucional (PEC) nº 6/2021.

Desde o advento da Lei nº 14026/2020 (chamada lei privatizante do saneamento), 12 leilões foram conduzidos pelo BNDES, já havendo previsão, em mesmo número, de um novo ciclo de concessões e PPPs, com iniciativas ainda mais avançadas e previsão de leilões já para o próximo ano, como são os casos de Sergipe, Paraíba e Rondônia (Hirata, 2023).

E nesse cadeirão fervilhante, qual seria a percepção dos trabalhadores que estão na ponta, na administração e operação dos serviços de saneamento? Dentro de uma pesquisa mais ampla (Marcos & María, 2023), dedicou-se especial atenção a conhecer qual a visão dos trabalhadores de uma CESB (no caso, a Companhia Catarinense de Águas e Saneamento – CASAN, 99,9% pública) sobre as formas de participação do capital privado, e a sua relevância para o enfrentamento das brechas públicas vigentes, dentro do prazo estipulado pela lei privatizante do saneamento.

Foram entrevistados entre junho e julho de 2022 um total de 345 empregados (13% do quadro), divididos em três categorias: operacionais, administrativos, chefes/diretores. As entrevistas foram realizadas mediante a aplicação de um questionário (Escala Likert) no qual eram apresentados possíveis caminhos necessários à superação do cenário (metas legais versus escassez de fontes públicas de financiamento), com opções em que os entrevistados deveriam graduá-las, sendo 5 como de máxima influência, e 1 como de nenhuma influência, além da opção “não sei”.

Sobre um maior ou menor protagonismo do capital privado, foram instados a aquilatar propostas como “realização de parceria público-privada”, “incorporação de um acionista privado estratégico”, “diminuição da terceirização”, e “privatização da companhia”.

Na perspectiva dos empregados operacionais, consolidou-se uma posição fortemente contrária à privatização. Do total, 62,50% afirmam que isso não representaria qualquer influência para o alcance das metas do setor, seguidos, na escala de representação percentual, de 20,83% dos entrevistados que não souberam avaliar essa influência. Somente 7,74% atribuíram à privatização uma máxima – e positiva – influência.

A visualização de um acionista privado estratégico enquanto solução também foi vista com contrariedade, ainda que com um maior equilíbrio dos graus de influência; como de representação máxima, 9,52% assinalaram, e como de nenhuma influência para a superação dos desafios a fração de 30,35% (quase o mesmo percentual da modalidade anterior – 22,02% – afirmaram desconhecer a influência).

Sobre participação público-privada (sem especificação de modalidade de PPP, se patrocinada ou administrativa) houve um grande equilíbrio, com exatos 19,05% considerando como de nenhuma, mínima, média ou máxima influência; 11,90% avaliaram como de grande influência, e 12,50% não souberam responder. Viu-se, que ao contrário das duas hipóteses anteriores, as PPPs se mostraram mais palatáveis para a categoria dos trabalhadores operacionais.

A terceirização, compreendida como uma forma de privatização transversa, que vai abocanhando o “organismo público” pelas beiradas, recebeu total aversão de 43,45% dos questionados, sendo que 19,64% consideraram que diminuir as terceirizações não afetaria a capacidade de resposta da CESB; os demais responderam equilibradamente entre as classificações de influência mínima, média e grande (9,52%, 13,10% e 10,71%, respectivamente).

Em relação aos empregados administrativos, esses também rechaçaram – em sua maioria – a hipótese de privatização como solução aos desafios impostos pelo mercado e pelo novo cenário legislativo. Para 58,65% há convicção de que essa alteração de titularidade não importaria em qualquer benefício, sendo que para 28,57% esse cenário ainda se mostra nebuloso, sem saber responder sobre os efeitos. Somente para 3,76% a solução se apresenta como de máxima relevância, não tendo havido entrevistado que assinalasse como de grande relevância. Os demais, 7,52% e 1,5%, comportaram-se nas faixas de mínima e média relevância, respectivamente.

Para a hipótese de incorporação de um acionista privado estratégico, ainda que tendo havido um menor percentual de rechaço (23,31%), a maioria votou pela inexistência de necessidade, seguida, em peso percentual, daqueles que não souberam opinar (21,80%). Ainda, mostrando uma maior pulverização em contraste com a privatização, 19,55% entenderam como de mínima influência, 17,29% de média influência, seguidos por 10,53% de grande e 8,27% de máxima influência.

A respeito do papel das terceirizações, mesmo que em proporção menor em comparação com os empregados operacionais, 30,83% compreendem que a sua diminuição tem máxima influência – necessidade –, enquanto 15,79% declararam que isso não guarda qualquer papel de relevância; ou seja, praticamente o dobro, havendo uma distribuição do restante dos entrevistados nos demais graus de influência. Por fim, instados os empregados administrativos a responderem sobre o papel das PPPs, inobstante uma sensível “vitória” daqueles votantes pela média influência (22,56%), houve novamente um equilíbrio entre as opções, mostrando ser uma solução a ser considerada.

Na última categorização do quadro funcional (chefes e diretores), chamou atenção, partindo-se do pressuposto que tratamos da faixa com maior acesso às informações organizacionais e de mercado (visão holística), ter sido essa a que com mais veemência se postou refratária à privatização como solução (68,18%), enquanto 20,45% dos entrevistados disseram não saber os efeitos, com participações mínimas nas demais faixas. Somente 2,27% creditaram à privatização o caminho à superação.

Aderindo às demais categorias, as posições majoritárias sobre a incorporação de um acionista privado estratégico, reconheceram essa opção como de nula ou mínima influência positiva à consecução dos objetivos (27,27% e 22,73%, respectivamente), e somente 9,09% consideraram imprescindível tal participação privada.

Ao contrário das demais categorias, foram mais acolhedores em relação à terceirização; a maioria (34,09%) entendeu que diminuir a terceirização não impacta positivamente nos resultados, ou impacta minimamente (20,45%). Sem embargo, voltam a se filiar com os demais no que corresponde à aceitação das PPPs; a maioria percebe a hipótese como de máxima importância (27,27%), seguida de forma equilibrada por aqueles que atribuem como de grande e média influência (15,91% e 22,73%, respectivamente). Apenas 4,55% consideraram que uma PPP não traria qualquer impacto positivo ou necessário à superação dos desafios.

A exploração das diferenças de perspectivas entre empregados operacionais, administrativos e chefes/diretores – com similaridade encontrada na doutrina em consulta relacionada à privatização na Grã-Bretanha (Nelson et al., 2011) – foi uma experiência reveladora de identidades importantes, como a posição de prevalência pela defesa da CESB pública.

A posição majoritária nesse sentido se consorcia com a literatura especializada que concluiu pela incompatibilidade da privatização com a natureza dos serviços públicos essenciais, especialmente aqueles prestados mediante regime de monopólio natural, que se mostra como um imã de efeitos negativos próprios da mercantilização da água (Oliveira et al., 2021; Berge, Boelens & Vos, 2020; Encarnación Tadem, 2020).

Há uma percepção, sempre presente, de que a sinergia com o capital privado não merece completa demonização – com diferenças mais sensíveis no que se refere à terceirização, pela precarização que importa – e pode auxiliar mais significativamente no ambiente das parcerias público-privadas, e menos significativamente na incorporação de um acionista privado estratégico, o que permite inferir uma preocupação constante de que essa atuação não atraia uma subordinação à lógica econômica de mercado, que acabe por afetar a missão social das CESB.

Não se pode ignorar, em encerramento, os percentuais significativos dos trabalhadores que afirmaram desconhecer o efeito das opções. A considerar a relevância das mesmas e dos desafios presentes e futuros (que envolverão a participação privada como proposta de solução), reclama uma reflexão da administração das CESB e dos sindicatos representantes, para um melhor esclarecimento e amadurecimento para as decisões vindouras.


Referências:

Berge, J. V. D., Boelens, R., & Vos, J. (2020). How the European Citizens’ initiative ‘water and sanitation is a human right!’ changed EU discourse on water services provision. Utrecht Law Review, 16(2), 48-59. https://utrechtlawreview.org/articles/10.36633/ulr.568

Bertazzo, S. (2015). Protection over the access to drinking water within the international law framework. Revista de derecho (Coquimbo), 22(2), 55-92. https://dx.doi.org/10.4067/S0718-97532015000200003

Britto, A. L., Heller, L. (2023). Que jogo joga o BNDES: banco público e social ou esteio do neoliberalismo? ONDAS. https://ondasbrasil.org/que-jogo-joga-o-bndes-banco-publico-e-social-ou-esteio-do-neoliberalismo/

Carvalho, L. G., Rosa, R. G., & Miranda, J. P. R. (2020). O novo constitucionalismo latino-americano e a constitucionalização da água enquanto um direito humano. Direitos Fundamentais, 8. https://scholar.googleusercontent.com/scholar?q=cache:T0xBmTS8TXMJ:scholar.google.com/+saneamento+direito+humano+scieloyhl=pt-BRyas_sdt=0,5yas_ylo=2020

Encarnacion Tadem, T.S. (2020). A panacea gone awry: A review of water privatization policy in the Philippines. Asian Politics y Policy, 12, 632-646. https://doi.org/10.1111/aspp.12559

García Vázquez, B. (2020). La compatibilidad del derecho humano al agua con la legislación chilena: el reconocimiento latinoamericano de este Derecho. Ius et Praxis, 26(3), 172-194. https://dx.doi.org/10.4067/S0718-00122020000300172

Hirata, T. (2023). BNDES inicia novo ciclo de leilões de saneamento Além de projetos mais avançados, nova safra de estudos do banco inclui Pará, Pernambuco, Maranhão e Santa Catarina. https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/10/06/bndes-inicia-novo-ciclo-de-leiloes-de-saneamento.ghtml

Marcos , H. V., & María , B. C. S. (2023). Perception of the Employees of a State Company About Private Capital as a Solution to the Challenges of the New Legislative Framework of Sanitation. Revista De Gestão Social E Ambiental17(9), e04153. https://doi.org/10.24857/rgsa.v17n9-016

Montenegro, M. H. (2023). Prestadores públicos sufocados pela falta de financiamento. ONDAS. https://ondasbrasil.org/prestadores-publicos-sufocados-pela-falta-de-financiamento/

Nelson, A., Cooper, C. L., & Jackson, P. R. (2011). Uncertainty amidst change: The impact of privatization on employee job satisfaction and well-being. Managerial, Occupational and Organizational Stress Research. https://www.taylorfrancis.com/chapters/edit/10.4324/9781315196244-28/uncertainty-amidst-change-impact-privatization-employee-job-satisfaction-well-being-adrian-nelson-cary-cooper-paul-jackson

Oliveira, E. S., Palassi, M. P., & Paula, A. P. A. (2021). Consciência política e predisposição à participação dos trabalhadores de uma empresa de saneamento em ações coletivas contra a privatização no Sudeste do Brasil. Cadernos EBAPE.BR [online], 19(1), 70-82. https://doi.org/10.1590/1679-395120190097

Tonaco, L. (2023). BTG, Iguá e Aegea: o que está por trás do mercado da água no Brasil. ONDAS. https://ondasbrasil.org/btg-igua-e-aegea-o-que-esta-por-tras-do-mercado-da-agua-no-brasil/


*Haneron Victor Marcos é doutor em Gestão Pública e Governabilidade (UCV/PE), mastère spécialisé em Gestão da Inovação (Emse/França), procurador e conselheiro de administração representante dos empregados da Casan (Companhia Catarinense de Águas e Saneamento), coordenador de assuntos jurídicos do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS).

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