ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Que jogo joga o BNDES: banco público e social ou esteio do neoliberalismo?

autores: Ana Lucia Britto e Léo Heller *

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Em 18 de agosto de 2023, matéria da Folha de São Paulo traz o seguinte título “Saneamento é maior destino dos financiamentos do BNDES em 2023”[1]. Lendo apenas o título, pode-se pensar que o Banco, que traz o objetivo de desenvolvimento social em seu nome, estaria contribuindo de forma efetiva para a redução das desigualdades que marcam o acesso ao saneamento no Brasil, com políticas voltadas para os segmentos que ainda não têm o direito aos serviços, como a população urbana que vive em bairros populares e assentamentos informais e a população rural. No entanto, mesmo sendo um banco público de um governo identificado com esses grupos sociais, esse compromisso está longe de figurar na política implementada pelo Banco. É o que procuramos demonstrar com este texto.

O papel do BNDES no setor de saneamento

Gerenciando recursos do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), é somente a partir de 2004 que o BNDES passou a ter uma ação mais incisiva no setor de saneamento. Mesmo antes da aprovação da Lei 11.445 de 2007, em contexto considerado de insegurança institucional, o BNDES apoiou projetos de Parcerias público-privadas (PPP) como o de Ribeirão Preto.

Com o lançamento do PAC, em janeiro de 2007, houve um aumento expressivo dos financiamentos do Banco para o setor. A mudança ocorreu em função de uma diretiva do governo federal. Foram beneficiadas com recursos do Banco companhias estaduais de saneamento SANEPAR (PR), COPASA (MG), SABESP (SP), CORSAN (RS), CESAN (ES) COMPESA (PE), SANEAGO (GO) e CORSAN (RS). Entre 2007 e 2010, período do segundo governo Lula, verifica-se um aumento do número de contratos com entes públicos, beneficiando, além das CESBs, projetos voltados para abastecimento de água e esgotamento de governos estaduais (Sergipe, Santa Catarina, Pernambuco, por exemplo) e alguns projetos de governos municipais com serviços autônomos (Sete Lagoas – MG; Jacareí – SP, Caxias do Sul – RS, São Bento do Sul – RS).

Ao mesmo tempo, também foram firmados contratos com empresas privadas, entre elas a Águas de Niterói, Águas do Imperador (Petrópolis), Manaus Ambiental e BRK Itapemirim. Em 2008, o BNDES também entrou com recursos para financiar as PPPs de Rio Claro (SP) e Rio das Ostras (RJ), lideradas pelo grupo Odebretch, que depois foi vendido à BRK. Em Rio das Ostras, os investimentos somaram R$375,9 milhões, com R$263,1 milhões provenientes do BNDES. Em Rio Claro (SP), foram financiados pelo BNDES R$50,3 milhões dos R$80,6 milhões previstos para o projeto.

Analisando os investimentos do BNDES a partir dos dados disponíveis na base de dados Contratações BNDES Transparente, realizados entre 2002 e 2018, Werner e Hirt (2021) exibem o volume de investimentos realizados pelo Banco no setor água e esgotamento sanitário e os beneficiários. Usando a metodologia das autoras, os dados foram atualizados, tendo como referência dezembro de 2022 (Tabelas 1 e 2).

Tabela 1: Número de contratos e valores contratados em ações de abastecimento de água e esgotamento sanitário (2002 – 2018)

Fonte: Werner e Hirt (2022);

Tabela 2: Número de contratos e valores contratados em ações de abastecimento de água e esgotamento sanitário (2019 – 2022)

Fonte: https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/transparencia

O texto de Werner et Hirt analisa os dados até 2018. Nesse período verifica-se uma prevalência de contratos com CESBs, tanto em termos de número como de valor. As autoras mostram que 40,6% deles tiveram como cliente a SABESP, o que corresponde a 42,5% dos valores destinados à área de saneamento básico. Em seguida vem a Companhia de Saneamento do Paraná (SANEPAR), com 15,3% dos valores contratados pela administração pública indireta. Mesmo sendo empresas públicas, com os respectivos estados sendo os acionistas majoritários, essas duas companhias possuem capital aberto. A SABESP, com ações na Bolsa de Nova York e 50,3% das ações nas mãos do estado de São Paulo, tem sua gestão influenciada pelos interesses dos acionistas. Na SANEPAR, o estado do Paraná detém 60% do capital votante, mas em termos de capital total, esse percentual é de 20%, sendo os demais acionistas nacionais, estrangeiros, bancos e fundos de investimento.

As outras empresas estaduais que figuram no levantamento realizado por Werner e Hirt (2021) com os respectivos percentuais de valores contratos são: a CAGECE (Ceará) com 2,5%, a CAGEPA (Paraíba) com 6,0%, a EMBASA (Bahia) com 7,0%, a CAESB (Distrito Federal) com 0,9%, a COPASA (Minas Gerais) com 10,9%, a CESAN (Espírito Santo) com 4,2%, a CORSAN (Rio Grande do Sul) com 11,6% e a SANEAGO (Goiás) com 3,2%. Dessas, com exceção da COPASA, todas são empresas públicas, inteiramente controladas pelos respectivos governos estaduais. Com relação às empresas privadas, as autoras levantaram 173 contratos até 2018, que correspondem a 26,4% dos valores contratados (Werner et Hirt, 2021). Entre 2011 e 2018 observa-se que não existem contratos com municípios ou governos estaduais.

A partir de 2019, período do governo Bolsonaro e da gestão de Paulo Guedes no Ministério da Economia, (Tabela 2 e Tabela 4) observa-se uma grande redução nos número de contratos do Banco para saneamento, com relação aos períodos anteriores. Entre 2019 e 2022, pode-se verificar que foram assinados apenas dois contratos com entes públicos, os dois com a SANEPAR. Vale mencionar que o governador do estado, Ratinho Junior, era próximo ao governo Bolsonaro, tendo declarado seu apoio à candidatura do ex-presidente em 2022. Verifica-se, no contexto dos financiamentos do BNDES, o mesmo movimento que Montenegro identifica no FGTS: a dificuldade de acesso ao crédito das companhias estaduais e municipais e das autarquias municipais, ainda que apresentem baixo nível de alavancagem e elevada capacidade de endividamento (Montenegro, 2023).

Tabela 3: Percentual de participação por tipo de beneficiário do contrato (2002 – 2018)

Fonte: Werner e Hirt (2022)

Tabela 4: Número de contratos e valores contratados em ações de abastecimento de água e esgotamento sanitário (2019 – 2022)

Fonte: https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/transparencia

Uma mudança em termos de créditos concedidos acontece em 2022, quando houve aumento significativo do volume de recursos contratados, mas não houve contratos com empresas públicas, apenas empresas privadas. As somas são astronômicas, fazendo com que a situação descrita por Werner e Hirt em termos de valor de contrato se inverta, havendo uma prevalência do valor disponibilizado pelo Banco para empresas privadas. É notável que as empresas privadas ultrapassaram as públicas em valor de contratos com o BNDES em apenas dois anos (Tabela 5).

A explicação para essa mudança está no contexto das políticas neoliberais iniciadas no governo Temer, quando o papel do BNDES deixa de ser apenas o de agente financiador do setor, para ser o agente condutor da política de privatização. Em novembro daquele ano, foi lançado edital para financiar estudos sobre modelos para substituição da atuação das empresas estatais por empresas privadas na prestação de serviço de saneamento. A ideia era que a iniciativa privada passasse a explorar o serviço, por meio da privatização de empresas estatais, concessão do serviço ou PPP. Na época, segundo o BNDES, 18 Estados manifestaram interesse no programa de desestatização do serviço de saneamento: Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins.

Tabela 5: Contratos BNDES (2019-2022)

Fonte: https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/transparencia/consulta-operacoes-bndes

Para atrair o interesse das empresas privadas, o BNDES anunciou a possibilidade de financiar até 80% do investimento na ampliação das redes de água e esgoto nos Estados. Os juros anunciados eram de 7,5% ao ano, com prazo de pagamento de 20 anos.

Em novembro de 2019, o Banco realizou no Rio de Janeiro o evento BNDES com “S” de Social e de Saneamento. O evento foi aberto com palestra do então Ministro da Economia, Paulo Guedes. Segundo ele, a missão do BNDES seria priorizar o saneamento (“S de saneamento”), por meio da coordenação dos investimentos em saneamento, a serem realizados pelo setor privado. Para tanto, era requerida a mudança dos marcos regulatórios para atrair o capital privado, inclusive internacional (BNDES, 2019). Nesse evento foram apresentados os projetos de modelagem de privatização em curso: Acre, Amapá, Alagoas e Rio de Janeiro. Na modelagem, esses estados eram divididos em blocos em concessão, em uma tentativa de associar áreas com maior capacidade de arrecadação de recursos financeiros via tarifas, com áreas mais deficitárias.

Em 2020, o governo Bolsonaro deu um passo adiante no projeto de privatização do setor, com a aprovação de alterações no marco legal, a Lei 14.026/2020. A aprovação correspondeu à necessidade de mudança anunciada por Paulo Guedes. A principal justificativa para a aprovação das alterações no marco legal do saneamento básico foi justamente a de atrair investimentos do setor privado e estabelecer as condições para uma meta de universalização do saneamento a ser cumprida até o ano de 2033, com 99% da população com acesso à água potável e 90% com acesso à coleta de esgotos com tratamento. A Lei obriga os estados a definirem estruturas regionais de saneamento, que seriam a base para os blocos de concessão. Também obriga os municípios que desejam delegar a prestação dos serviços a o fazerem mediante licitação e contratos de concessão, eliminando os contratos de programa entre entes públicos que regiam a relação entre municípios e as concessionárias estaduais.

As modelagens concluídas pelo BNDES foram implementadas em Alagoas, no Rio de Janeiro e no Amapá. Em Alagoas, foram concedidos a empresas privadas em 2021 primeiramente a Região Metropolitana (2020- BRK Ambiental) e depois os dois blocos que agregam municípios do interior do estado (região leste e região oeste), arrematados pelos consórcios Alagoas, formado pelas empresas espanhola Allonda e a brasileira Conasa, e Mundaú, integrado por outra espanhola, a Cymi, e a brasileira Aviva Ambiental. No estado do Rio de Janeiro, os quatro blocos de concessão, cada um incluindo uma parte do município do Rio de Janeiro, foram arrematados pela Aegea (blocos 1 e 4), Iguá (bloco 2) e Águas do Brasil (bloco 3). No Amapá, a concessão agregou 16 municípios do estado, sendo o leilão realizado em 2021 e vencido pelo consórcio Marco Zero, que reúne as empresas Equatorial e Sam Ambiental. Todas essas concessões foram feitas através de concessão onerosa, em que o vencedor é o que oferta o maior valor de outorga, em relação ao mínimo estabelecido no edital. Esses valores ingressam nos cofres públicos – estaduais e, ou municipais – e raramente são reinvestidos nas necessidades do setor de saneamento. Por outro lado, as empresas não têm alternativa que não recuperar esses valores via tarifas, que possivelmente serão majoradas no horizonte da concessão.

Em 2022, o BNDES apoiou a estruturação de PPP para serviços de coleta e tratamento de esgoto de 24 municípios situados nas regiões metropolitanas de Fortaleza e do Cariri, no estado do Ceará. Os dois contratos foram ganhos pelo grupo Aegea. No mesmo ano, o Banco apoiou a estruturação da alienação da participação do Estado do Rio Grande do Sul no capital social da CORSAN por meio de leilão. O leilão no valor de 4.151,5 milhões, foi ganho pelo grupo Aegea com ágio de 1.15%[2].

Ainda em 2022, como mostra a Tabela 3, o BNDES deu apoio ao pagamento de outorga à Aegea na concessão dos blocos 1 e 4 no Rio de Janeiro e à BRK na concessão da Região Metropolitana de Maceió. O empréstimo concedido à Aegea/Águas do Rio permite o pagamento das outorgas (no Bloco 1 o valor pago foi de 8,2 bilhões, no Bloco 4 de 7,286 bilhões), além do apoio a investimentos.

Governo Lula, a mesma política privatista?

Durante a campanha eleitoral, o presidente Lula foi enfático na defesa da prestação pública dos serviços de saneamento e, depois da sua diplomação, em dezembro de 2022, ao anunciar o nome de Aloizio Mercadante para a presidência do BNDES, defendeu a prestação pública dos serviços. Lula disse que buscará atrair investidores internacionais para o país, mas para apostar em projetos, e não mais em processos de privatizações. Segundo o presidente eleito, nenhuma companhia estatal seria vendida em sua gestão “Nós somos iguais a todo mundo e nós queremos ser donos do nosso território. Vão acabar privatizações nesse país. Já privatizaram quase tudo. Vai acabar e vamos provar que algumas empresas públicas vão poder mostrar a sua rentabilidade”, acrescentou o presidente.[3]

Após oito meses de governo, não é esta a visão que se apresenta na política colocada em prática pelo BNDES para a área de saneamento. O Banco continua sendo o comandante das privatizações do setor. Para justificar tal opção, é recorrente o discurso de que privatizações seria o melhor caminho para a universalização dos serviços, desconhecendo advertência reiteradamente apresentada pelo próprio Ondas, do risco que esses processos trazem de retrocesso no usufruto dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário[4].

O relatório do Relator Especial das Nações Unidas para os Direitos Humanos à Água e ao Saneamento (ver nota 4) alerta que os riscos aos direitos humanos provenientes da gestão privada provêm da combinação de três fatores: (i) maximização dos lucros, intrínseca à prestação privada; (ii) monopólio natural de serviços, o que deixa os usuários reféns de um prestador por toda a duração de um contrato, em geral superior a 30 anos; e (iii) o desequilíbrio de poder, entre prestadores privados e poder público que deve regular a prestação dos serviços. Para aumentar as suas receitas, os prestadores privados podem pressionar as autoridades públicas para que revejam os preços, aumentem ou criem novas taxas de ligação de serviços, ou autorizem novas fontes de receitas, muitas vezes através de serviços não solicitados (Guasch e Straub, 2009).

Isso já ocorreu nos contratos das concessionárias que atuam no Rio, que tiveram apoio do Banco na emissão de debêntures e, no caso da Águas do Rio, no pagamento da outorga. A Iguá pediu à AGENERSA um reajuste no primeiro ano de operação de 13,30%; a Águas do Rio 1, alegou possuir 3,54% de clientes com tarifa social e demandou um reajuste de 13,30%; a Águas do Rio 4 alegou possuir 17,5% de clientes com tarifa social e demandou um reajuste de 19,21%. O valor concedido pela Agenersa ficou abaixo do solicitado (11,82% para as duas empresas).

Em seu site, o Banco anuncia que, para superar o déficit de cobertura pelos serviços, o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), elaborado pelo Governo Federal, estimou que são necessários investimentos de R$ 142 bilhões em água e R$ 215 bilhões em esgoto, uma média de R$ 27,6 bilhões por ano, a preços de 2019. Tais valores são necessários para o país atingir, até 2033, metas de atendimento de 99% de abastecimento de água, 92% de acesso a esgotamento sanitário e 93% de tratamento de esgoto coletado.

Contudo, segundo o Banco, de acordo com o SNIS 2021 (ano de referência 2020), os investimentos realizados nos últimos anos ainda correspondem a menos da metade do necessário: de 2007 a 2020 foram investidos, em média, pouco mais de R$13 bilhões por ano. Além disso, tais investimentos, além de abaixo do necessário, estão concentrados nas regiões Sudeste e Sul do país, enquanto os piores índices de cobertura dos serviços se encontram nas regiões Norte e Nordeste.

Ainda segundo o Banco, há um cenário heterogêneo em relação às capacidades técnicas, institucionais e econômico-financeiras dos prestadores de serviços de saneamento. Na prestação pública, inclusive empresas com capital aberto em bolsa, existem desde aquelas que conseguem realizar investimentos por meio de financiamentos públicos e privados, até as que demandam aportes mensais de seus estados controladores, para dar conta de obrigações correntes de custeio.

Com base nesse diagnóstico, o Banco conclui que há espaço para ampliação da participação privada no setor, tanto por meio de concessões dos serviços, quanto de parcerias público-privadas. Deriva disto a busca de novos prestadores privados para o setor e o aumento da participação dos já atuantes, através de novas concessões e PPPs, de forma a elevar e desconcentrar os investimentos no setor. A estruturação de projetos de saneamento do BNDES alegadamente cumpre o papel de propiciar a atração de prestadores de serviços capacitados para as áreas e serviços mais deficitários. Contudo, embora não indicando que esses prestadores são empresas privadas, é isto que vem ocorrendo.

Não há nenhuma menção, nos documentos do Banco, ao apoio à prestação pública, defendida pelo presidente Lula. Ao contrário, o hub de projetos indica que os projetos em estruturação pelo BNDES têm como uma de suas diretrizes promover uma participação privada em grande escala, em especial por oferecer ao mercado, no curto prazo, um pipeline de projetos regionais que agrupam vários municípios e milhões de pessoas – e que irá demandar grande volume de investimentos nos próximos anos.

O BNDES, mesmo depois da mudança de governo, tem dado continuidade no apoio a privatizações, mobilizando para isso seus recursos financeiros. Segundo reportagem da Folha de São Paulo[5], somente neste ano de 2023, os investimentos contratados em saneamento pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) já ultrapassaram em 929% a soma de todos os financiamentos no setor em 2020, ano da aprovação da lei que altera o Marco Legal do Saneamento. Em 2023, o setor tornou-se o principal “cliente” do banco público, sendo o maior destino dos financiamentos na comparação com outros segmentos. Segundo reportagem da Folha de São Paulo, dos R$5 bilhões em investimentos contratados em infraestruturas, setor que historicamente mais recebe investimentos do Banco de desenvolvimento, R$3,7 bilhões foram destinados a saneamento neste ano.

Que investimentos são esses? A quem beneficiam? Trata-se principalmente da subscrição de debêntures lançadas por empresas privadas.

A emissão de debêntures vem sendo uma alternativa importante para o financiamento de empresas de saneamento no período recente (2016-2019), como afirmam os economistas do BNDES, Pimentel e Miterhof (2022). Os autores ressaltam contudo que são poucas as CESBs que recorrem a esse recurso para financiamento. As CESBs de capital aberto (SABESP, COPASA e SANEPAR) foram as que mais mobilizaram a emissão de debêntures. Também emitiram debêntures entre 2016 e 2019 a COMPESA, CESAN e CEDAE, e em 2029 a SANEAGO.

Em junho de 2023, a Iguá Saneamento anunciou uma emissão de debêntures de infraestrutura no valor de R$3,8 bilhões. As debêntures foram amplamente demandadas, com a primeira série, no valor de R$2 bilhões e prazo de 20 anos, apresentando uma demanda 1,6 vezes superior à oferta. Já a segunda série, com prazo de 29 anos e valor de 1,8 bilhões, foi integralmente subscrita pelo BNDES. Esse valor já consta no site do BNDES, sendo destinado ao apoio ao pagamento de outorga e de serviços complementares no Bloco 2 do estado do Rio de Janeiro

No mesmo mês, a Aegea informou a realização de duas emissões de debêntures simples, que somam R$5,5 bilhões. Os recursos serão destinados à operação Águas do Rio, empresa da Aegea que venceu o leilão de dois blocos de privatização no Rio de Janeiro.[6]

O BNDES estruturou o financiamento completo ao projeto Águas do Rio, do qual a operação de debênture é parte. A oferta foi coordenada pelo Banco em conjunto com Itaú BBA (coordenador líder), XP, BTG, ABC, JP Morgan e Bradesco. O BNDES subscreveu R$1,9 bi em debêntures de saneamento

Segundo o próprio BNDES, sua opção de ancorar as emissões foi fundamental para que a operação tenha sucesso, isto é, para que outros investidores sintam que há garantia nesse investimento. Contudo, trata-se de banco público, que tem o governo por trás garantindo a segurança do investimento. Fica evidenciada a intenção do Banco de se transformar em “sócio” de empresas privadas, mobilizando para isso recursos públicos.

Nos parece fora de propósito que um banco público, que visaria o desenvolvimento social seja sócio nesse modo de gestão. É preciso lembrar que, segundo o próprio Banco, suas fontes governamentais, como o FAT e o Tesouro Nacional, responderam por 64,2% dos recursos em 30 de junho de 2023.  Seriam os recursos públicos financiando o setor privado? Mas não seria o setor privado que deveria aportar novos recursos para o saneamento?

O futuro: que jogo jogará o BNDES?

A atuação do BNDES nesses primeiros oito meses de governo suscita uma série de questões. Destacamos:

(i) Qual a política do Banco para os prestadores públicos, que ainda são majoritários no país?

(ii) Serão disponibilizados recursos do Banco para as autarquias municipais e CESBs que continuam prestando serviços?

(iii) Caso as CESBs que ainda não realizaram lançamento de debêntures incentivadas, mas que vêm cogitando recorrer a essa fonte de recursos, como a EMBASA, optem por fazê-lo, haverá o mesmo apoio dado às empresas privadas? Montenegro (2023) aponta que a opção do financiamento por meio da venda de debêntures tem sido bastante utilizada pelas concessionárias privadas, mas os prestadores estatais encontram obstáculos para sua utilização. A análise dos créditos concedidos pelo BNDES mostra que apenas dois prestadores públicos tiveram apoio do Banco para emissão de debêntures simples, a COPASA e a SABESP em 2012. Todavia, vale notar que ambas são empresas de capital aberto.

(iv)  O BNDES seguirá sendo BNDE ou efetivamente incorporará o S de social?

Em síntese, perguntas que não querem calar são: o BNDES será o braço para implementar a proposta de Lula, de fortalecimento dos serviços públicos de saneamento, ou seguirá sua tradição histórica, de ser o esteio de implementação das políticas neoliberais no setor? Em outras palavras: para que servem os recursos públicos e dos trabalhadores, gerenciados pelo Banco?

Referências

Britto, A. L e Cruxên, I. As empresas privadas atuantes no saneamento: entre a financeirização e a concentração do mercado. Texto da interação ONDAS-Privaqua, 17 de maio de 2022. Disponível em https://ondasbrasil.org/empresas-privadas-atuantes-no-saneamento-entre-a-financeirizacao-e-a-concentracao/

Guash, J. L.; Straub, S., 2009. Corruption and concession renegotiations: evidence from the water and transport sectors in Latin America. Utilities Policy, vol. 17, No. 2, pp. 185–190.

United Nations, THEMATIC REPORTS. A/75/208: Human rights and the privatization of water and sanitation services, Léo Heller, 21 july 2020. Versão em português em https://ondasbrasil.org/wp-content/uploads/2020/10/D%C3%89CIMO-PRIMEIRO-Relat%C3%B3rio-%E2%80%93-Direitos-humanos-%C3%A0-%C3%A1gua-pot%C3%A1vel-e-ao-esgotamento-sanit%C3%A1rio.pdf

Montenegro, M. H. Concessões com modelagem do BNDES não apontam para universalização e não trazem recursos adicionais para o saneamento. ONDAS, 22/08/2022. https://ondasbrasil.org/concessoes-com-modelagem-do-bndes-nao-apontam-para-universalizacao-e-nao-trazem-recursos-adicionais-para-o-saneamento/

Montenegro, M. H. As águas brasileiras não podem ser de todos. Outras Palavras, 25/08/2023. https://outraspalavras.net/direitosouprivilegios/as-aguas-brasileiras-nao-podem-ser-de-todos/

Pimentel, L. B e Miterhof, L. O financiamento dos serviços de água e esgoto: análise do passado recente (2016-2019) e desafios da diversificação de fontes para chegar à universalização. Economia e Sociedade, Campinas, v. 31, n. 3 (76), p. 735-770, setembro-dezembro 2022. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ecos/article/view/8671784

Werner, D., & Hirt, C. (2021). Neoliberalização dos Serviços Públicos: o papel do BNDES no Saneamento Básico pós-2000. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, v. 13, e20200078. https://doi.org/10.1590/2175- 3369.013.e20200078


[1]https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/08/saneamento-e-maior-destino-dos-financiamentos-do-bndes-em-2023.shtml

[2] Informação disponível em https://hubdeprojetos.bndes.gov.br/

[3] https://ondasbrasil.org/lula-anuncia-fim-das-privatizacoes-empresas-publicas-vao-poder-mostrar-a-sua-rentabilidade/

[4] Ver, dentre vários textos publicados no site do Ondas, o relatório https://ondasbrasil.org/wp-content/uploads/2020/10/D%C3%89CIMO-PRIMEIRO-Relat%C3%B3rio-%E2%80%93-Direitos-humanos-%C3%A0-%C3%A1gua-pot%C3%A1vel-e-ao-esgotamento-sanit%C3%A1rio.pdf

[5] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/08/saneamento-e-maior-destino-dos-financiamentos-do-bndes-em-2023.shtml

[6] https://agenciadenoticias.bndes.gov.br/detalhe/noticia/BNDES-subscreve-R$-19-bi-em-debentures-de-saneamento/


* Ana Lucia Britto – Geógrafa, doutora em Urbanismo, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenadora do Laboratório de Estudos de Águas Urbanas É coordenadora de Projetos do ONDAS Observatório Nacional do Direito Humano à Água e ao Saneamento.
Léo Heller
– Engenheiro, doutor em Epidemiologia, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz. Foi relator especial da ONU para os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário. É Coordenador de Relações Internacionais do ONDAS.

 

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