ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Pedro Arrojo, relator especial, fala ao ONDAS

Exclusiva

O relator especial da ONU para os Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário (DHAES), Pedro Arrojo, concedeu em meados de junho entrevista ao Coordenador de Comunicação do ONDAS, Marcos Montenegro, durante visita deste à Zaragoza (Espanha).

Na entrevista a seguir, Arrojo avalia resultados e perspectivas abertas pela Conferência da Água da ONU, fala da situação e das disputas pela água na Síria, país que receberá a visita do relator especial neste Julho e examina também os desafios e riscos colocados aos DHAES pela mudança climática. Informa que a situação do Quilombo Rio dos Macacos está na pauta do mandato e, finalmente, retomando suas origens, fala da Fundação Nova Cultura da Água e da continuidade das lutas na bacia do Rio Ebro.

Associados do ONDAS e amigos com Pedro Arrojo, em ponte sobre o Ebro, em Zaragoza.
  1. Podemos começar com a Conferência da Água promovida pela ONU em Nova Iorque recentemente. Na sua opinião, quais são as contribuições mais importantes e que perspectivas são abertas por esse evento? 

Publiquei minha avaliação nas redes e ela estará no site do mandato. Em resumo, acredito que o fato de se realizar a Conferência, foi por si só muito positivo, depois de quase 50 anos, desde a Conferência anterior, em Mar del Plata (Argentina). Foi positivo porque mostrou a enorme lacuna que por tanto tempo a ONU deixou no front da água, tempo que o setor privado aproveitou para ocupar, com a organização periódica dos Fóruns Mundiais da Água, o espaço que a ONU deveria ocupar e gerir. Uma consequência positiva foi a convocação, assumida pela Assembleia Geral, de realizar uma convocação a cada três anos. Infelizmente, não conseguimos colocar uma abordagem dos direitos humanos no centro da Conferência. De fato, os interesses empresariais ocuparam o centro do palco, juntamente com os governos, com a Holanda como país coordenador da Conferência, com o Tajiquistão, deixando muito pouco espaço para os movimentos sociais. De qualquer forma, os movimentos sociais, por ocasião da Conferência, conseguiram se unir mundialmente no Fórum dos Povos pela Água, e responderam ao meu chamado para lançar um manifesto agrupando também as grandes ONGs (que geralmente são mais institucionais e não costumam ter uma boa relação entre si) e com os povos indígenas. No final conseguiram, e o Manifesto em Defesa da Água foi assinado por todos. Agora os movimentos tentam formar uma aliança com países amigos em torno desse manifesto, com a exigência de abrir um espaço na ONU para os Defensores da Água como Detentores de Direitos, superando esse falso jogo de pretenso diálogo com os “stakeholders”, que acabam sendo as corporações multinacionais (prestadores de serviços de água e esgoto, mineradoras, agronegócio, madeireiras…) que têm dinheiro e meios para organizar escritórios em Nova York e Genebra e manter sua ação diária de lobby… Colômbia, Bolívia, México e Espanha já se ofereceram para formar esta aliança na ONU para abrir um espaço de reconhecimento, diálogo e colaboração com  os Defensores da Água, como Detentores de Direitos, em torno do conteúdo do Manifesto em Defesa da Água. E nessa frente eu estou trabalhando e vou trabalhar. No próximo ano, teremos a Cúpula para o Futuro… Acho que os movimentos devem prepará-lo em colaboração com o maior número possível de países.

  1. A sua próxima visita como relator será à Síria. Quais são os principais desafios que irá encontrar neste país do Oriente Médio?

Sim, no próximo mês de julho irei fazer uma visita oficial à Síria. Uma visita complicada e conflituosa, a um país em guerra. Embora o interlocutor que deve abrir caminho seja o Governo da Síria, estamos falando com os curdos e até com a Turquia para poder aceder aos territórios que controlam… Recebi queixas dramáticas do nordeste, onde milícias apoiadas pela Turquia, que controlam algumas instalações de bombeamento, cortaram a água de mais de um milhão de civis curdos, como parte de suas estratégias de guerra. Por outro lado, a água do Rio Eufrates que sofre uma longa e intensa seca, e que é fundamental para a Síria e o Iraque, mal chega a esses países, após o lançamento do conflituoso Programa GAP da Turquia com 22 grandes barragens (nas cabeceiras do Eufrates e do Tigre), e mais de 1 milhão de novos hectares de irrigação. A pouca água que chega e a alta poluição que se concentra fizeram explodir uma epidemia de tifo; E ainda por cima veio o terremoto… Todos juntos… É neste contexto que farei esta visita.

  1. ONDAS traduziu seu relatório, em três partes, sobre as ameaças aos direitos humanos à água potável e ao saneamento devido às mudanças climáticas. Como o seu mandato avalia essa questão?

Trata-se de uma questão transversal fundamental no meu mandato. Insisto sempre que, passados muitos anos (demasiados), chegamos a um consenso sobre as causas das alterações climáticas, assumindo o papel fundamental do CO2, enquanto gás efeito de estufa; e neste contexto assume-se que as estratégias de mitigação devem ser presididas pela Transição Energética. Pois bem, levando em conta que as principais ameaças e impactos sociais são gerados em torno do vetor hídrico – secas, inundações, elevação do nível do mar, derretimento de geleiras nas cabeceiras dos rios… – as estratégias de adaptação devem ser presididas pela Transição Hidrológica para a Nova Cultura da Água. Uma transição que deve se assentar na pacificação das nossas relações com os nossos rios, lagos, zonas úmidas e aquíferos (este é o tema de um dos meus relatórios temáticos deste ano) e, por outro lado, na promoção da governação democrática da água, entendida como um bem comum, e não como uma mercadoria. Em suma, trata-se de fortalecer a resiliência ambiental e a resiliência social, diante dos riscos que as mudanças climáticas geram em torno da água, especialmente entre aqueles que vivem em situação de pobreza e vulnerabilidade.

  1. O ONDAS informou seu mandato sobre a violação dos direitos humanos da população quilombola do Rio dos Macacos na Bahia. O que o mandato pode fazer neste caso?

Os Relatores, diante de situações como a que me é informada sobre o Quilombo do Rio dos Macacos, podem e devem dirigir-se ao Governo do país, no caso o Governo do Brasil, levantando e exigindo atenção aos problemas em questão. A carta de denúncia pode e deve fornecer recomendações concretas. O relator deve manter dois meses de silêncio como tempo para o Governo reagir. Após dois meses, a carta do relator torna-se pública e a partir desse momento o relator tem uma posição pública e pode colaborar para dar maior visibilidade ao problema. Isso tende a empoderar os movimentos sociais, na medida em que eles geralmente têm razão. Sempre insisto que são eles, os movimentos sociais, que, com sua força e perseverança, acabam sendo o motor efetivo da mudança. Só ajudo no que está ao meu alcance.

  1. Pedro, é de muitos anos o seu envolvimento nas lutas em defesa do Ebro, um dos mais importantes rios da Espanha. Vimos que você continua sendo reconhecido por sua atuação nesta luta em defesa do rio que banha Zaragoza, a cidade onde você mora. Essa luta continua?

Houve muitas lutas e mobilizações na bacia do Ebro, embora a maior e mais conhecida tenha sido contra as transposições do Ebro ao longo da costa do Mediterrâneo, de Barcelona para Almeria… Conseguimos muitas conquistas, mas alguns desafios permanecem, enquanto outros surgem e surgirão. A luta contra as transposições com grandes mobilizações, foi ganha, ao conseguir bloquear os fundos do financiamento europeu. Diante de futuras eleições, a direita e, principalmente, a extrema direita recolocam a questão, mas é improvável que isso avance. Mas alguns conflitos ainda estão vivos, como a elevação do nível da barragem de Yesa, que é muito perigosa devido a sérios problemas geotécnicos… E com as mudanças climáticas e secas prolongadas, como a que estamos sofrendo há três anos, novas tensões surgem… Nada se ganha para sempre, porque tudo o que se ganha pode ser perdido. De qualquer forma, e embora ainda esteja em contacto com os movimentos de defesa dos rios, representados pela Fundação Nova Cultura da Água, e com a plataforma de defesa da gestão pública, a Rede Água Pública, estou focado no meu trabalho e no meu compromisso como Relator da ONU, no qual me chegam problemas de todo o mundo.

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