Texto da interação ONDAS-Privaqua*
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A INTERAÇÃO ONDAS-PRIVAQUA 56 TEXTOS DEPOIS
Autor: Léo Heller – Coordenador do Projeto Privaqua – Água, saneamento e direitos humanos
O Privaqua é um projeto de pesquisa, que visa entender os processos de privatização dos serviços de água e esgotos, orientado pelo marco dos direitos humanos. Em junho/2021, em acordo com o ONDAS, passamos a postar textos curtos sobre o tema do projeto, visando divulgar nossos achados parciais, compartilhar reflexões e disseminar elementos da literatura científica sobre o tema. Nossa intenção é a de dialogar com um público não necessariamente familiarizado com a linguagem acadêmica e com os veículos tradicionais de comunicação científica. Trata-se de uma tentativa de exercitar o que se denomina de divulgação científica, para público não-especializado, transpondo os chamados “muros acadêmicos”. O desafio que sempre perseguimos nesse processo tem sido o de, sem perder o rigor, comunicar, por meio de uma linguagem que fuja o mais possível do jargão da academia, para informar sobre aspectos do tema da privatização dos serviços de saneamento, visando sobretudo qualificar as atividades da militância do setor.
No primeiro artigo – Como e por que a privatização dos serviços de saneamento afeta os direitos humanos? – fizemos votos de que a “interação ONDAS-Privaqua seja frutífera e contribua para compreender – e atuar sobre – processos que possam comprometer os direitos humanos à água e ao saneamento dos excluídos dos serviços”.
Passados mais de um ano, o conjunto de quase 60 artigos buscou abordar o tema da privatização do saneamento e sua relação com os direitos humanos sob diversos ângulos.
Na maior parte dos textos, procuramos entender o atual perfil da privatização no Brasil, sejam aqueles já existentes, sejam aqueles em curso. Examinamos alguns casos específicos, como, por exemplo, os de Manaus, analisado por Sandoval Rocha, de Ouro Preto, em dois artigos por Davi Victral, Ivanice Paschoalini, Laura Magalhães e Natália Onuzik, e de Pará de Minas, em artigo de Luis Ferreira, Juliana Braga e Artur Valadão.
Neste primeiro bloco de textos, procuramos também acompanhar os processos de privatização em curso, sobretudo após a aprovação da Lei 14.026/2020. Nesse caso, um tema que ocupou nossa atenção foram iniciativas de regionalização desencadeadas nos estados e sua aderência – ou não – com a privatização dos serviços. Assim, mantivemos um olho na Paraíba, no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Alagoas e em Minas Gerais. Sobre o Rio de Janeiro, em fevereiro de 2020, quando as novas concessões completavam 100 dias, Suyá Quintslr e Bruno Puga perguntaram: há motivos para comemorar? A resposta dos autores, com base nos comentários nas redes sociais da Águas do Rio, foi de que “uma mudança na forma de prestação – de pública para privada – está longe de conseguir apresentar melhorias significativas em um período tão curto”. Em junho de 2022, Irivaldo Silva e Laiana Ferreira atualizaram o processo de regionalização no país, apresentando o quadro nos diversos estados, assinalando que o “carro em movimento” mostrava uma institucionalidade restrita ao campo normativo, com baixo nível de implementação. A indagação para o futuro é de como na realidade os diversos atores irão se comportar e “se as possibilidades participativas se tornarão concretas para a sociedade”. Os mesmos autores – Irivaldo e Laiana – por ocasião da apreciação das quatro ações de inconstitucionalidade interpostas contra a Lei 14.026/2020, trazem uma análise da rejeição das ADIs pelo STF, em artigo com título provocativo e autoexplicativo: Quando o STF não foi Supremo.
Artigo muito interessante sobre o contexto do saneamento no Brasil e sua relação com a noção de direitos humanos foi elaborado por Ivanice Paschoalini, Natália Onuzik, Davi Victral e Priscila Neves, sob o título Enquanto os direitos humanos não vêm… Nele, os autores descrevem o caso de uma mãe que foi mantida presa por mais de 100 dias por “furto de água”. O caso ocorreu em uma cidade mineira e envolveu um casal e uma criança de cinco anos, moradores de um pequeno imóvel cedido, em que o casal havia violado por duas vezes o lacre do hidrômetro da residência, devido ao corte do fornecimento de água pela Copasa, por falta de pagamento. Os autores caracterizaram o fato como uma “combinação entre uma empresa abusando do seu papel de fornecer os serviços, sem discriminação, e uma polícia despreparada para distinguir entre o desespero de uma mãe frente ao filho de cinco anos e o desacato à autoridade”, resultando “no encarceramento de uma mulher em situação de vulnerabilidade socioeconômica por um prazo maior que o permitido no direito processual penal para o encerramento do processo criminal”. Afirmam que “se crime houve, é insignificante”.
Um segundo conjunto de artigos publicados versou sobre tendências internacionais na privatização dos serviços de saneamento e reveses que esse processo vem sofrendo.
Sobre os Estados Unidos, por exemplo, Ana Britto, desenvolvendo resenha de artigo publicado em março de 2022, anuncia que “pagam mais pela água aqueles que a recebem de prestadores privados”. O artigo original relata pesquisa que compilou as informações da conta de água de todos os 500 maiores sistemas de abastecimento do país, envolvendo população atendida de cerca de 140 milhões de pessoas. Esses serviços incluem prestadores públicos (321 governamentais e 121 cooperativas) e 58 privados. Os resultados do modelo estatístico aplicado mostraram que a prestação privada resulta em preços mais altos da água e menor acessibilidade econômica, após o controle de todos os outros fatores intervenientes.
Isadora Cruxên, sobre o Reino Unido, pergunta, em artigo publicado em março de 2022: Para inglês ver? Revisitando a experiência do Reino Unido com a provisão privada de saneamento. Realizando uma revisão do relatório de autoria de David Hall (University of Greenwich), a autora destaca dois problemas fundamentais identificados na emblemática privatização inglesa. O primeiro, relacionado aos investimentos realizados pelas empresas, é que os acionistas praticamente não fizeram aportes adicionais de capital ao longo do tempo, após o investimento inicial nas companhias. O recurso utilizado para investir em ampliação, manutenção ou melhoria da infraestrutura tem origem, em grande parte, nas receitas provenientes da provisão do serviço – em outras palavras, no bolso do consumidor. Ao mesmo tempo, apesar de as dívidas contraídas ao longo tempo terem aumentado, esse aporte financeiro tem sido usado principalmente para pagar dividendos aos acionistas. Esta é uma advertência para nós, que presenciamos a entrada de grandes companhias privadas no saneamento brasileiro. O segundo alerta refere-se a questões de accountability e déficit de transparência, na maneira como as empresas divulgam suas atividades, sobretudo os fluxos financeiros. Na verdade, as empresas usam diferentes subterfúgios e manipulações para obscurecer ou justificar o volume de dividendos que distribuem.
Um terceiro bloco de artigos tem caráter mais teórico, examinando conceitos importantes para compreender os processos de privatização. Assim, Carlos Ribeiro e Érica Tavares apresentam importante discussão, a partir sobretudo do olhar da Geografia, sobre a regionalização, situando-a como um conceito-chave para a análise do saneamento. Por outro lado, Marta Dias mobiliza a teoria de Paulo Freire, para mostrar como a abordagem de direitos humanos adotada pelo autor pode ser útil para compreender os rumos da privatização do saneamento. Marta propõe que “reinventar Freire e sua Pedagogia do Oprimido é uma pauta urgente para assegurar a vivência minimamente humana dentro da grande teia capitalista que impõe a maximização do lucro acima de tudo”. Já Ana Fracalanza e Mariana Paz trazem o conceito da água como bem comum, defendendo que essa noção implica que a “distribuição [da água] em qualidade e quantidade para usos essenciais se contrapõe com as formas capitalistas de apropriação que tratam a água como uma mercadoria e como um objeto de lucro”. Tal leitura articula-se com as noções de justiça hídrica e ambiental. Ainda, Carlos Ribeiro convoca, a partir de artigo de autoria de Adrienne Roberts, o conceito econômico marxista de acumulação primitiva, para aplicá-lo à água, sugerindo que “a comodificação da água pode ser analisada como um processo contínuo de acumulação primitiva, provocando contradições e tensões não apenas nas relações capitalistas de produção, mas principalmente nas relações sociais de reprodução”.
Um quarto grupo de artigos buscou associar o tema central do projeto com diferentes aspectos da saúde coletiva. Nessa linha, Anelise Souza mostra que ao se combinar ações do Programa Bolsa Família com intervenções em saneamento pode potencializar efeitos sobre a saúde infantil. A análise evidencia a face social do saneamento como parte de um esforço de políticas sociais, o que será um desafio difícil de ser transposto em um ambiente de privatização. Priscila Neves Silva, em seu artigo, relaciona pobreza menstrual e a privatização dos serviços, com uma reflexão suscitada pelo veto de Bolsonaro a medida prevista em PL de autoria de Marilia Arraes, que previa a distribuição gratuita de absorventes para mulheres e meninas de baixa renda. A autora questiona se “o processo de privatização dos serviços públicos de água e esgoto em curso no país será capaz de garantir o acesso adequado a instalações que permitam a higiene adequada durante o período menstrual para meninas e mulheres em situação de vulnerabilidade”, especialmente considerando que as meninas negras que vivem no Nordeste e em áreas rurais são as que mais sofrem com a falta de acesso aos serviços. Outra abordagem relacionada à saúde foi trazida por Mariana Santos, com considerações sobre as relações entre a ocorrência de esquistossomose e a era da privatização dos serviços de saneamento. A autora conclui que, sendo a infraestrutura sanitária uma das principais medidas para a interrupção da transmissão da doença, deve-se entender o saneamento básico como política de natureza social, cujos serviços relacionam-se aos determinantes e condicionantes em saúde. Assim, a privatização dos serviços pode não apresentar garantia da universalização dos serviços essenciais e a consequente não realização da meta de eliminação de infecção por esquistossomose, assumida pelo Brasil perante a OMS para os próximos anos. Em outras palavras, a lógica empresarial e de maximização dos lucros pode consagrar a discriminação de grupos afetados pela doença, que possuem menor probabilidade de arcar com os custos da privatização dos serviços.
Este artigo de balanço de uma primeira fase da interação ONDAS-Privaqua buscou mostrar a potencialidade de um diálogo frutífero entre um grupo acadêmico e um observatório da sociedade civil que se propõe a zelar e a lutar pelo cumprimento dos direitos humanos à água e ao saneamento. Tentamos ilustrar a interação resumindo algumas abordagens que os 56 textos até então publicados vêm revelando. Tanto o Privaqua quanto o ONDAS, em avaliação recentemente realizada, vêm validando a pertinência dessa cooperação, como meio de divulgação científica e de aproximação da academia com a sociedade. Evidentemente, há muito espaço para aperfeiçoamento de nossa forma de comunicação, e receberemos com muita atenção sugestões de leitores sobre caminhos para a contínua melhoria do processo.
* INTERAÇÃO ONDAS-PRIVAQUA: DE OLHO NA PRIVATIZAÇÃO DO SANEAMENTO
Privaqua é um projeto de pesquisa que obejtiva entender processos de privatização dos serviços de água e esgotos, tendo por orientação teórico-analítica o marco dos direitos humanos. Neste espaço do site do ONDAS, o Privaqua publica periodicamente textos curtos sobre a temática do projeto, visando divulgar achados parciais, compartilhar reflexões e disseminar elementos da literatura científica sobre o tema. A intenção é a de dialogar com um público não necessariamente familiarizado com a linguagem acadêmica e com os veículos tradicionais de comunicação científica. Trata-se de uma tentativa de exercitar o que se denomina de divulgação científica, para público não-especializado, transpondo os chamados “muros acadêmicos”. O desafio é de, sem perder o rigor, disseminar aspectos do tema da privatização dos serviços de saneamento, visando sobretudo qualificar as atividades da militância do setor.
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